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Modos de transformação da obra: analítica da tradução e

No documento Machado de Assis, tradutor de Hugo (páginas 47-53)

3 METODOLOGIA DE ANÁLISE DE TRADUÇÕES

3.4 O CONFRONTO DOS TEXTOS

3.4.1 Modos de transformação da obra: analítica da tradução e

Para o efetivo confronto de textos, acreditamos que aquilo que interessará ao crítico de forma mais imediata é a forma como a obra em questão se transforma quando é vertida para uma outra língua. Compreender e avaliar esta transformação, portanto, constituirá o cerne de sua tarefa, quando seu interesse recai sobre a obra ou sobre quem a traduz. Por isso, uma vez que travamos conhecimento com o que Antoine Berman escreveu em La traduction et la lettre ou l’auberge du lointain, torna-se imperativo levá-lo em consideração, dado o grau de relevância de sua contribuição, o qual se fará patente, esperamos, após esta breve exposição das suas tendências deformadoras que fazem parte do que chamou de sistemática da deformação, peculiar a toda e qualquer tradução. Desta forma, passaremos rapidamente por cada uma destas tendências analisadas por Berman com o mero intuito de descrevê-las, já que serão de relevância inquestionável para o nosso estudo comparativo futuro.

Das treze tendências trabalhadas por Berman, a primeira delas é a racionalização, a qual “re-compose les phrases et séquences de phrases de manière à les arranger selon une certaine idée de l’ordre du discours” (BERMAN, 1999, p. 53)31. Seguindo esta tendência, o tradutor interferiria, negativamente talvez, na maneira como o discurso original está organizado, dando a este discurso feições que não lhe são próprias em nome de uma compreensibilidade mais imediata. Conseqüentemente, as arborescências sintáticas do original seriam linearizadas (BERMAN, 1999, p. 54).

Em seguida, há a clarificação, um corolário da racionalização segundo Berman, que consiste, como o próprio nome antecipa, em tornar mais claro, mais evidente, aquilo que está como que obscurecido no original. Ainda que tornar explícito o que antes era obscuro constitua característica inerente a todas as traduções, este tipo de clarificação estaria, ao contrário, relacionado a tornar explícito o que o original não pretendia que estivesse de tal forma explicitado (BERMAN, 1999, p. 54-55).

Uma outra tendência deformadora é o alongamento, que representa uma disposição de toda tradução de ser mais longa do que o original, algo que, de certa forma, resulta do que foi apresentado acima a respeito da clarificação e da racionalização. O que Berman afirma querer dizer com alongamento é que “l’ajout n’ajoute rien, qu’il ne fait qu’accroître la masse brute du texte, sans du tout augmenter sa parlance ou sa signifiance” (BERMAN, 1999, p. 56)32, ou seja, como resultado da linearização do discurso do original e da explicitação do que antes se encontrava recôndito, da

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"recompõe as frases e sequências de frases de maneira a organizá-las de acordo com uam certa idéia de ordem do discurso".

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"o acréscimo não acrescenta nada, nada faz a não ser aumentar a massa bruta do texto, sem aumentar sua massa bruta, sem aumentar sua eloquência ou significância".

[C2] Comentário: O que

implica em um problema teórico caro aos questionamentos acerca da interpretação da obra literária.

necessidade mesma de se fazer compreensível, a tradução tende a se alongar. Entretanto, isso não quer dizer que toda tradução deva ser assim e que todo tradutor, inevitavelmente, proceda desta maneira. Há, certamente, os que conseguem ser até mais sintéticos e breves do que o original.

A próxima tendência deformadora é o enobrecimento, que Berman considera o ponto culminante da tradução platônica, e que se caracteriza por ser nada mais que “une ré-écriture, un ‘exercice de style’ à partir (et aux dépens) de l’original” (BERMAN, 1999, p. 57)33. São casos em que o tradutor, não raro com a intenção de ser “fiel” e “respeitar” o original, faz uso de uma linguagem que prima pela altivez, clareza ou elegância que o original não possui, eliminando traços da oralidade do original, por exemplo, em favor de algo mais padronizado segundo as normas correntes da cultura receptora. Esta tendência, de acordo com Berman, encontra seu oposto na vulgarização do original, em que, ao tentar reproduzir a sua oralidade, o tradutor opta por aclimatá-la, transpô-la para a realidade do leitor, o que pode levar ao ridículo (BERMAN, 1999, p. 58).

As duas tendências seguintes estão relacionadas ao empobrecimento do texto, o empobrecimento qualitativo e o empobrecimento quantitativo. Em tradução, o primeiro destes resulta do emprego de estruturas de linguagem que não têm a mesma qualidade ou riqueza sonora, significante ou icônica do original, resultando, portanto, numa perda de conteúdo estético (BERMAN, 1999, p. 58). Trata-se, certamente, de uma tendência deformadora tão comum em tradução quando difícil de ser evitada. O outro tipo de empobrecimento, o quantitativo, está relacionado à

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"uma re-escritura, um 'exercício de estilo' à partir (e às custas) do original".

[C3] Comentário: Exemplos:

traduções de Rosa (Grande Sertão) e a Odisséia (Donaldo Shuller).

perda de significantes na tradução, a qual se tenta mascarar através do alongamento da mesma. Berman afirma que “la grande prose romanesque ou épistolaire est ‘abondante’” (BERMAN, 1999, p. 59). O que acontece, na tradução, é o enfraquecimento desta abundância significativa frente a adições que não contribuem para a riqueza do texto.

Uma outra tendência deformadora é a homogeneização, que para Berman resulta de todas as outras tendências que precederam a esta. Na verdade, cabe ressaltar que as tendências propostas por Berman estão intimamente ligadas umas às outras, e que, possivelmente, existam ainda outras tendências deformadoras que não foram abordadas em La traduction et la lettre. De volta à homogeneização, esta quer dizer que há uma tendência “à unifier, à homogénéizer ce qui est de l’ordre du divers, voire du disparate” (BERMAN, 1999, p. 60). Isso significa que as marcas do que Mikhail Bakhtin considera a polifonia característica dos romances desaparece em favor de uma unificação, por vezes até uma pasteurização, do discurso romanesco, atendendo, não raro, ao que se considera a norma culta da língua e cultura receptoras.

As tendências que seguem estão relacionadas à destruição de aspectos peculiares à prosa romanesca. A primeira destas tendências é a destruição dos ritmos. Muito acertadamente, Antoine Berman considera que a prosa literária não é menos rítmica do que a poesia; ao contrário, afirma haver ali uma multiplicidade de ritmos entrelaçada, que seria afetada ao se modificar, por exemplo, a pontuação do texto original (BERMAN, 1999, p. 61), ou a extensão e organização das orações e

parágrafos que o compõem, com a intenção de adornar o texto, mas que resultaria numa alteração da tonalidade do mesmo.

Uma outra tendência deformadora é a destruição das redes significantes sub- jacentes. Para Berman, “toute oeuvre comporte un texte ‘sous-jacent’, ou certains signifiants se répondent et s’enchaînent, forment des réseaux sous la ‘surface’ du texte, je veux dire : du texte manifeste, donné à la lecture” (BERMAN, 1999, p. 61). Como exemplo de tal deformação, Berman cita o romance Sept Fous, de Arlt, no qual, no original espanhol, se encontra uma série de palavras com a característica de serem aumentativos, o que corrobora com toda dimensão de grandiosidade da obra, mas que não foi mantida na sua tradução para o francês (BERMAN, 1999, p. 62). A manutenção desta rede significante subjacente exige, antes de qualquer outra coisa, que o tradutor perceba a sua existência e, em seguida, que tenha tempo para encontrar uma forma de recriá-la satisfatoriamente, o que nem sempre acontece.

Depois, há a destruição de sistematismos que, ultrapassando o nível dos significantes, como no caso visto acima, estende-se sobre os tipos de frases e construções utilizadas no original, relacionando-se também com o emprego dos tempos verbais, de construções subordinadas, etc. (BERMAN, 1999, p. 63). A conclusão a que Berman chega a esse respeito é a de que, mesmo que a tradução seja mais homogênea do que o original, como vimos anteriormente, ela acaba sendo também mais incoerente, por não reproduzir estes sistematismos que lhe são característicos, e por despir a obra da pluralidade de escrituras que a compõe (BERMAN, 1999, p. 63).

Segundo Berman, e essa é também uma idéia cara a Bakhtin, toda prosa inclui uma visada polilíngüe e uma pluralidade de elementos vernaculares que, se não respeitada, resultaria em uma outra tendência deformadora da tradução, a destruição ou exotisação de redes linguageiras vernaculares, o que seria, também, um grave ataque à textualidade da obra (BERMAN, 1999, p. 64). Se, como propõe Berman, somente as formas cultas das diversas línguas podem traduzir-se entre si, para os outros casos, aqueles em que o tradutor se depara com uma outra variação lingüística que não encontra equivalente em seu sistema, uma possível saída seria a exotisação dessa rede vernacular menor, adotando soluções tipográficas como o itálico que irão isolar aquilo que não está destacado no original (BERMAN, 1999, p. 64).

Um desdobramento desta tendência resulta em uma outra, que é a destruição de locuções. Um dos grandes problemas pelo qual passam todos os tradutores é decidir o que fazer com idiomatismos que, via de regra, não possuem equivalentes exatos quando da passagem de uma língua para outra ou que, quando o possuem, o resultado da substituição de um idiomatismo pelo seu equivalente seria um etnocentrismo que pode levar ao ridículo em que personagens estrangeiros, em terras estrangeiras, se expressam da mesma forma que os falantes da cultura receptora (BERMAN, 1999, p. 65). A saída, para Berman, residiria na manutenção do que ele chama de “consciência-de-provérbio” através de uma tradução que respeite a imagística do idiomatismo original, o qual ainda seria reconhecível como tal.

[C4] Comentário: Contradiçã

Por fim, a última das tendências que veremos é o apagamento de superposições de línguas. Se toda prosa, sobretudo a romanesca, é constituída de dialetos que coexistem com um coiné ou de diversos coiné, como afirma Berman (1999, p. 66), seria preciso manter esta característica ao traduzir. No entanto, este é considerado talvez o mais grave problema da tradução de prosa, porque a tendência de toda tradução é apagar esta diferença, tendência esta que se faz mais manifesta nas traduções mais comerciais e pasteurizadoras, mas a que toda tradução está sujeita.

No documento Machado de Assis, tradutor de Hugo (páginas 47-53)