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O SÉCULO XIX E A TRADUÇÃO

No documento Machado de Assis, tradutor de Hugo (páginas 57-65)

4 MACHADO DE ASSIS: TRADUTOR E CRÍTICO DE

4.1 O SÉCULO XIX E A TRADUÇÃO

Antes de nos ocuparmos daquele que é objeto desta pesquisa, procuraremos traçar um panorama do que significava a tradução e ser tradutor durante o oitocentos brasileiro.

Pensar a tradução na corte brasileira durante o século XIX é pensar também um momento crucial na formação do sistema literário brasileiro, no sentido que Antônio Cândido empresta aos termos na sua Formação da literatura brasileira, ou seja, o da “formação de uma continuidade literária, – espécie de transmissão da tocha entre os corredores, que assegura no tempo o movimento conjunto, definindo os delineamentos de um todo” (CANDIDO, 2006, p. 25).

Se a literatura brasileira não começa a se formar durante o século XIX, ao menos é nele que se coloca com maior vigor o problema da sua constituição – haja vista, por exemplo, dois artigos de Machado de Assis sobre o assunto, sobre os quais nos deteremos mais tarde: “O passado, o presente e o futuro da literatura” e o famoso “Notícia da atual literatura brasileira: instinto de nacionalidade”. Em grande parte, pode-se dizer com alguma segurança que esse vigor é fruto da escola romântica. Afinal, é nesse período que se pensa em criar uma literatura brasileira independente da européia, idéia que se fortalece depois de termos alcançado a independência

[C5] Comentário: Explicar o

política. Pautando-nos por Antônio Candido, essa idéia é reforçada pelo seguinte trecho:

A Independência importa de maneira decisiva no desenvolvimento da idéia romântica, para a qual contribuiu pelo menos com três elementos que se podem considerar como redefinição de posições análogas ao Arcadismo: (a) o desejo de exprimir uma nova ordem de sentimentos, agora reputados de primeiro plano, como o orgulho patriótico, extensão do antigo nativismo; (b) desejo de criar uma literatura independente, diversa, não apenas uma

literatura, de vez que, aparecendo o Classicismo como manifestação do

passado colonial, o nacionalismo literário e a busca de modelos novos, nem clássicos nem portugueses, davam um sentimento de libertação relativamente à mãe-pátria; finalmente, (c) a noção já referida de atividade intelectual não mais apenas como prova de valor do brasileiro e esclarecimento mental do país, mas tarefa patriótica na construção nacional (CANDIDO, 2006, p. 329).

Entretanto, ainda que o nosso Romantismo tenha sido um tributário do Nacionalismo, como coloca Cândido (2006, p. 332), esse que foi “manifestação da vida, exaltação afetiva, tomada de consciência, afirmação do próprio contra o imposto” (CANDIDO, 2006, p. 333), não se pode negar o forte influxo estrangeiro que se sofreu durante esse mesmo período, um influxo que, em grande parte, foi oriundo de traduções que vieram suprir a incipiente cena cultural nacional, que agiu negativamente e serviu até mesmo de entrave para a formação de uma voz nacional, como se verá mais tarde nos escritos de Machado. Porém, há um outro lado do mesmo problema: mesmo que Machado tenha percebido este influxo estrangeiro como algo que teve ação negativa sobre a produção nacional, não se pode descartar a possibilidade de que este mesmo influxo estrangeiro, de uma forma ou de outra, tenha contribuído para a formação de talentos nacionais, a exemplo do próprio Machado. Se a tradução de diversos textos estrangeiros, cuja iniciativa pode ter partido ou não do tradutor, fez parte do crescimento intelectual de Machado de Assis – algo de cuja demonstração esta dissertação é uma pequena amostra – então, por mais reprovável que este influxo seja, ele teve o seu papel, o qual exige investigação.

Devemos nos lembrar de que nesse período, segundo Lia Wyler, o início do século XIX, tem-se a vinda da corte portuguesa para o Rio de Janeiro, cuja permanência em nossas terras ocorreu entre os anos de 1808 a 1821. Isso levou a uma profunda transformação no nosso cenário cultural: tem-se a criação da Imprensa Régia, em 13 de maio de 1808, que veio pôr termo a três séculos de proibição da imprensa (WYLER, 2003, p. 77), o que, por sua vez, apontou para uma ampliação significativa do número de publicações nacionais e, em especial, de traduções para a nossa língua.

Lia Wyler sugere, ainda, na sua pesquisa historiográfica sobre a tradução em terras brasileiras, Línguas, poetas e bacharéis: uma crônica da tradução do Brasil, que “nunca se traduziu tanto quanto no século XIX, seja pelo prazer de traduzir ou de partilhar traduções com os amigos ou até com o público” (WYLER, 2003, p. 83). A pergunta que se impõe, então, é a seguinte: quais as condições que levaram a uma prática tão intensa da tradução durante aquele período de nossa história?

Itamar Even-Zohar, pesquisador israelense da Universidade de Tel-Aviv, oferece uma possível resposta àquela pergunta em seu artigo The position of translated literature within the literary polysystem. Segundo o pesquisador, “when new literary models are emerging, translation is likely to become one of the means of elaborating the new repertoire” (EVEN-ZOHAR, 2000, p. 193). Even-Zohar identifica, também, três condições que podem favorecer uma prática acentuada da atividade tradutória, que são as seguintes:

(a) when a polysystem has not yet been crystallized, that is to say, when a literature is “young”, in the process of being established; (b) when a literature is either “peripheral” (within a large group of correlated literatures) or “weak”, or both; and (c) when there are turning points, crises, or literary vacuums in a literature. (EVEN-ZOHAR, 2000, p. 193-194).

A nossa situação durante o século XIX parece enquadrar-se particularmente bem no terceiro dos casos propostos por Even-Zohar – embora os outros dois não sejam de menor importância para a nossa situação de então –, já que, apesar de a formação da nossa literatura ter se iniciado séculos antes, com o advento do Romantismo e, consequentemente, do Nacionalismo literário, coloca-se em questão a própria existência dessa literatura, e chega-se mesmo à elaboração de projetos para que uma literatura genuinamente brasileira se constitua. A pesquisadora Ofir Bergmann de Aguiar, em sua tese de doutorado Uma reescritura brasileira de Os miseráveis, segue esta mesma hipótese, e também identifica a realidade brasileira do século XIX com o terceiro caso proposto por Even-Zohar, ao afirmar que as traduções de folhetins “vieram preencher um vazio na literatura brasileira”, e que a posição primária ocupada pelas traduções é confirmada pela proposta de novos padrões e a introdução de um novo gênero (AGUIAR, 1996, p. 90). Contudo, independente de qual tenha sido o caso do sistema literário brasileiro, testemunhou-se uma atividade tradutória tão intensa que, ao estudarmos as traduções deste período, somos levados a pensar em uma expansão do nosso conceito de tradução, o que também é explicado por Even-Zohar, pois quando a tradução assume uma posição central, como o foi no nosso caso, o seu conceito torna-se difuso, passando a incluir também o que o autor chama de semi-traduções e quase-traduções (EVEN-ZOHAR, 2000, p. 196), ainda que, para que se afirme algo com algum grau de certeza, seria preciso recorrer a estas traduções e estudá-las atenciosamente de forma a dar corpo a esta proposta teórica.

No que concerne à tradução literária, o romance-folhetim e as peças de teatro tiveram destaque na preferência dos nossos tradutores. Os estudos de Wyler

mostram que, no período que vai de 1839 a 1854, foram publicados pelo menos 74 romances-folhetins franceses nos vários periódicos do Rio de Janeiro, em uma média de cinco romances por ano (WYLER, 2003, p. 92). O fenômeno do folhetim, conforme se vê no estudo de Marlyse Meyer Folhetim: uma história, também tornou necessária a publicação quase simultânea destes romances na França e aqui, algo que se vê já na publicação do primeiro romance-folhetim entre nós, O capitão Paulo, do já consagrado Alexandre Dumas, publicado na França e no Brasil no mesmo ano de 1838, devendo sua tradução e publicação ao Jornal do Comércio (MEYER, 1996, p. 60). Ao tratar da vinda do folhetim para o Brasil, a autora também nos mostra um anúncio de jornal, em francês, que trata da chegada das novidades parisienses, enfatizando a rapidez com que chegam: “Mongie continue à recevoir avec telle exactitude que MM. les abonnés pourront lire deux mois après leur publication à Paris. Prix de l’abonnement: 2$ par mois” (MEYER, 1996, p. 282). Mais à frente, Meyer dá mais indícios da popularidade do folhetim que acarretou na quase simultaneidade de sua publicação na Europa e aqui:

A pesquisa mostrou também, nessa época pioneira, certos aspectos divertidos do afã da publicação concomitante cá e acolá da última novidade de Paris, sede-mor. Há casos em que repercutem imediatamente aqui os insucessos franceses, o que leva à sua suspensão. [...]

Às vezes, pelo contrário, o sucesso é tal e a pressa em traduzir é tanta que a publicação antecede a chegada do paquete. Lê-se no Jornal do Comércio de 13 de agosto de 1845:

Somos obrigados a descontinuar hoje a publicação do Conde de

Monte Cristo [iniciada em 15 de junho de 1845] por não ter chegado

ainda de Paris a continuação deste folhetim. Durante esta forçada interrupção, publicamos a Alameda das Viúvas, folhetim de um gênero diferente do Conde de Monte Cristo, mas que em nada lhe cede em interesse e movimento. (MEYER, 1996, p. 287-288).

O preço dessa concomitância e dessa “pressa em traduzir” certamente levou a traduções cuja qualidade deve ser bastante questionável, além do emprego de tradutores cuja qualificação também deveria ser igualmente questionável, sem mencionar o fato de que a “pressa em traduzir”, na maioria dos casos, leva a resultados medíocres, ainda que dificilmente mais medíocres do que a maioria dos

textos que deram origem a estas traduções, algo reforçado pela invisibilidade dos responsáveis por estas traduções. Lia Wyler também faz observações neste sentido quando sugere que

nesse período o mais comum é encontrarmos apenas os títulos das obras traduzidas, sem o nome do tradutor, nem o do editor, nem a data de publicação, embora isso fosse um segredo de polichinelo, pois entre os colegas literatos todos deviam saber quem fazia o quê (WYLER, 2003, p. 93)

Tal popularidade levou vários de nossos escritores a fazerem incursões no gênero, seja na tentativa de criar folhetins que alcançassem tanto sucesso quanto os vindos da França, seja adotando as técnicas folhetinescas em suas obras de ficção. Poderíamos citar, por exemplo, Teixeira e Sousa que, para Antonio Candido, embora seja um autor de qualidade literária “de terceira plana”, ao menos deve ser considerado na sua importância histórica,

menos por lhe caber até nova ordem a prioridade na cronologia do nosso romance (não da nossa ficção), do que por representar no Brasil, maciçamente, o aspecto que se convencionou chamar folhetinesco do Romantismo. Ele o representa, com efeito, em todos os traços de forma e conteúdo, os processos e convicções, os cacoetes, ridículos, virtudes (CANDIDO, 2006, p. 444).

Mas não foram somente escritores de pequena monta que se dedicaram ao gênero. Mesmo Machado de Assis não só traduziu para o gênero – não nos esqueçamos de que a tradução de Les travailleurs de la mer surge primeiramente neste formato – como também, “ainda que desprezasse Rocambole”, escreve Marlyse Meyer, “soube utilizar para efeitos machadianos a ciência do corte nos seus contos publicados em folhetim, com seus fins abruptos de capítulos e machadiana deriva na retomada da seqüência” (MEYER, 1996, p. 313). Marlyse Meyer chega a sugerir que a influência do folhetim ultrapassa o âmbito do século XIX para chegar até nós, naquele que ela considera o “sucedâneo atual do folhetim, a telenovela” (MEYER, 1996, p. 315), cujo fanatismo a que alguns telespectadores são levados é tão grande que, mesmo sendo possível saber de antemão, por meio de suplementos de TV, o que

acontecerá no capítulo seguinte, ainda assim não se furtam ao direito de acompanhá-la dia-a-dia (MEYER, 1996, p. 316). O argumento de Lia Wyler é definitivo quanto ao papel exercido pelo folhetim entre nós. Afinal, como escreve a autora, “O romance-folhetim foi o fio que conduziu o romance popular europeu, vendido de porta em porta, à nossa novela televisiva e assegurou, juntamente com o teatro, o desenvolvimento da tradução no século XIX” (WYLER, 2003, p. 91).

Quanto ao surgimento do nosso teatro, o desenvolvimento deste, em parte, deveu- se, durante o século XIX, à prática tradutória, traduzindo-se ou adaptando-se em especial peças de origem européia, sobretudo francesas, mas também italianas, espanholas e alemãs que estavam em voga. O decreto de 28 de maio de 1810, que afirma ser necessária a criação de um teatro nacional, foi responsável pela construção de várias casas de teatro no país (WYLER, 2003, p. 98), o que gerou, conseqüentemente, uma enorme demanda por peças de teatro. Como a produção nacional não era suficiente para suprir essa demanda, a tradução, servindo tão- somente, na maioria dos casos, aos interesses empresariais, veio acudir essa necessidade. Houve então, segundo Lia Wyler, uma proliferação de peças teatrais “imitadas de”, “traduzidas livremente de”, “parodiadas de”, “inspiradas em” ou “acomodadas à cena brasileira”, situação tornada possível pela inexistência de leis que regessem os direitos autorais no Brasil, o que só foi consolidado pelo Código Civil Brasileiro de 1916 (WYLER, 2003, p. 98). Conseqüentemente, há também a propagação de peças mal traduzidas por profissionais que, em geral, não assinavam suas traduções, além do pouco incentivo que os dramaturgos nacionais recebiam, visto que era sempre mais rentável apresentar uma peça que já granjeara certa

[C6] Comentário: Comentar

notoriedade na cena européia (WYLER, 2003, p. 98-100). Conforme escreve Lia Wyler, ao comentar a falta de incentivo dada aos escritores nacionais,

Mesmo o repertório da Imperial Academia de Música e Ópera Nacional, fundada em 1857 com a finalidade de preparar e aperfeiçoar artistas melodramáticos nacionais e dar concertos e representações de canto, era constituído de uma ou outra peça brasileira entre dezenas de outras vertidas para o português. (WYLER, 2003, p. 99)

Se por um lado os tradutores dramáticos eram muitos e, possivelmente em boa parte desqualificados para o ofício, por outro nossa cena teatral também contou com tradutores que se tornariam nomes respeitados da nossa literatura, jornalismo e política, como Machado de Assis, Arthur Azevedo – responsável, segundo Lia Wyler, por mais de trinta traduções, paródias e adaptações de peças francesas –, e Quintino Bocaiúva (WYLER, 2003, p. 99). Diante do nosso incipiente teatro, fez-se necessária a criação do Conservatório Dramático Brasileiro que, entre 1843 e 1871, buscou regulamentar a utilização da língua portuguesa nas peças nacionais assim como nas traduzidas – este, contudo, não foi o único propósito do Conservatório, nem o principal deles: a preocupação, pelo contrário, estava mais voltada para a manutenção da moral e dos bons costumes, e, acima disso, para a preservação da imagem da Igreja Católica e da Família Real –, do qual fizeram parte escritores e tradutores como Machado de Assis, Martins Pena, Odorico Mendes, entre outros (WYLER, 2003, p. 100-101).

Este foi um panorama forçosamente superficial daquilo que pudemos encontrar a respeito de como era a vida literária, especialmente no que toca à prática da tradução, durante o oitocentos brasileiro. Este foi o contexto em que Machado de Assis viu colocar-se o problema da formação da nossa literatura, o contexto em que

viu as condições em geral deploráveis em que se encontravam o nosso teatro, o contexto para cuja mudança procurou contribuir.

No documento Machado de Assis, tradutor de Hugo (páginas 57-65)