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5. CENAS DO COTIDIANO

5.6 Todo dia ele faz tudo sempre igual

5.6.1 Momento Aberto e outras políticas de portas abertas à loucura

O caso do sr. Hélio parece emblemático para refletir acerca do atendimento na DPESP (e em outras instituições), seus fluxos e possibilidades internas, sobretudo nas situações onde não se vislumbram demandas jurídicas claras, além da presença de discurso com conteúdos aparentemente delirantes. Como foi visto no relato acima, assim como ocorre em outros casos, a instituição é procurada por pessoas com as mais variadas demandas/queixas e é muito frequente também a procura por pessoas em situação de sofrimento psíquico com discursos aparentemente delirantes e persecutórios.

Na sociedade da judicialização da vida e dos conflitos (OLIVEIRA & BRITO, 2013) – na qual além de se buscar incessantemente as instituições jurídicas e suas soluções, as pessoas também incorporam e legitimam seus modos de operação, reproduzindo-se o controle, o julgamento e a punição das condutas – a loucura também quer acionar esta Justiça. Pessoas em sofrimento psíquico também a procuram. Também querem “processar alguém”.

Como já foi comentado no Capítulo 4 (p.60), a busca de pessoas com discurso aparentemente delirante é questão recorrente na Defensoria Pública de São Paulo e em outras. No caso da DPESP, inicialmente foram pensadas propostas de “avaliação” e condução para estes casos nos quais o discurso da pessoa parecesse “desarrazoado”. Vingou a proposta de atendimento integral, de escuta a essas pessoas, mesmo que aparentemente com discurso confuso ou delirante. Há de se pensar formas de ouvi-las, de estar com elas. No caso do sr. Hélio, houve processo judicial em acompanhamento em que, infelizmente, ele não obteve o que esperava (o direito ao imóvel no qual residiu por anos). Mas não deixou de ter a defesa por mostrar pensamento que não era compartilhado por muitos que lhe ouviam. Mas escutá-lo não necessariamente significava dar entrada em todas as ações que queria, afinal, algumas eram inviáveis. Mas elas foram analisadas, em caráter interdisciplinar.

Bernardes (2015), pesquisadora externa à Defensoria, em seu trabalho de doutorado acompanhou durante anos o atendimento na DPESP às demandas relacionadas ao campo da saúde mental, ouvindo profissionais da instituição, usuárias/os, Rede e representantes de movimentos sociais. Pessoas com discursos aparentemente delirantes que procuram a DPESP foram identificadas pela pesquisadora (BERNARDES, 2015, p.158). Ela foi percebendo a DPESP, sobretudo nos atendimentos nos CAMs, como um espaço de escuta e acolhimento para estas pessoas. A partir desta escuta qualificada, verificou que é possível o

aprofundamento da demanda (p.194), muitas vezes para elaboração de defesa/desenvolvimento de laudos, bem como escuta e diálogo com profissionais da rede (p.197), assim como tentamos fazer no caso do sr. Hélio. Esta porta aberta foi entendida como relevante para a garantia de direitos para as pessoas em sofrimento psíquico.

A análise dos procedimentos adotados pelos profissionais do CAM, especificamente, para o atendimento das pessoas portadoras de transtornos mentais nas diferentes regionais do estado, possibilitou identificar muitas semelhanças [...] Foram enfatizadas as atividades de atendimento e de articulação com os serviços e as políticas públicas. Entende-se que tais semelhanças são coerentes com uma proposta política de inclusão que proporciona às pessoas portadoras de transtorno possibilidade de compartilharem o ambiente e serviços de escuta qualificada, assim como de iniciativas para o acesso às diferentes políticas públicas e aos serviços da Rede, da mesma maneira que todos os outros cidadãos que buscam a DPESP.

(BERNARDES, 2015, p.225, destaques nossos)

Ela também destacou a importância do Momento Aberto, dentre outros espaços institucionais nos quais observou a participação da população:

Os espaços previstos para participação da sociedade civil na DPESP: o Momento Aberto do Conselho Superior, as Conferências Públicas e a Ouvidoria. A presença de diferentes espaços possibilita que cada movimento social com suas temáticas espacíficas possa ocupar o espaço que considere mais apropriado à sua causa.

(BERNARDES, 2015, p.239, destaques nossos)

Quanto à normativa que organiza o atendimento às pessoas em sofrimento psíquico (a já referida Deliberação CSDP 291/2011), apesar de suas limitações – como qualquer protocolo – importante destacar seus avanços, se compararmos a propostas de avaliação, estigmatização ou não escuta/barreiras, que foram inicialmente propostas no âmbito da DPESP89. Ao invés de se colocar psicólogas/os para avaliarem supostas demandas delirantes e defensoras/es encaminharem pedidos de interdição das usuárias/os, esta perspectiva contempla – assim como exemplificamos com o caso do sr. Hélio – a escuta qualificada, o atendimento compartilhado interdisciplinar e intersetorial, a flexibilidade de dia/horário de atendimento (diferenciado do horário padrão da triagem), o respeito à procura espontânea da pessoa em sofrimento e, inclusive, seu direito a comparecer em outros espaços (como o

Momento Aberto). Nessa linha, Bernardes (2015) identificou “premissas da reforma psiquiátrica como referência para a construção da normativa para o atendimento” (BERNARDES, 2015, p.261), tais como a abertura à vida em comunidade e a livre circulação. Isso não garante por si só os direitos das pessoas que nos procuram, mas parece uma abertura inicial importante.

Esta pesquisadora também ressaltou, nestes casos, a fundamental articulação com rede e acompanhamento das situações. No caso em tela, descrevemos a tentativa de articulação com CAPS que, embora inicialmente parecesse interessante ao acolhimento do usuário, mostrou práticas limitadas, protocolares e engessadas, que acabaram afastando o usuário do serviço, ao impor a participação em uma determinada atividade (grupo terapêutico) como critério para que o usuário pudesse escolher a que lhe cativara o interesse (no caso, a oficina de composição musical).

Endo (2017) descreve uma sensação de letargia e uma “escuta burocratizada” nos profissionais de saúde, inclusive do CAPS, indo na contramão do que seria a proposta da Reforma Psiquiátrica, pois não permite a troca com as/os usuárias/os. Ela alerta para o fato de que os estados melancólicos estão presentes no cotidiano das práticas do SUS:

A construção melancólica das práticas assistenciais não é uma produção atual, tem raízes profundas na história dos afetos e humores humanos, desde a criação dos asilos e hospitais, os chamados morredouros [...]. Ser confrontado cotidianamente com a dor do outro não é tarefa fácil, principalmente se a prática se confunde com assistir, ressaltando a noção

passiva desta ação, sem outro projeto para escura terapêutica.

(ENDO, 2017, p.74)

E não se trata aqui de simplesmente criticar as/os profissionais dos CAPS. Afinal, estamos todas/os sujeitos a oferecer esta escuta burocratizada. É um constante cuidado a ser tomado e se faz necessária uma contínua reflexão acerca de nossas práticas. Também se mostra fundamental olhar o contexto em que estas práticas se dão: equipamentos muitas vezes sucateados, profissionais desmotivados, falta de formação continuada e políticas públicas muitas vezes com pouco investimento (assim como relatamos no capítulo 5.2.2). Endo (2017) destaca que a urgência de resolubilidade institucional, a pressão pela produtividade e a adaptação a modelos/protocolos têm afetado o trabalho clínico e o contato com as/os pacientes:

Desde a chegada do paciente, há tentativas de rapidamente o inserir em algum grupo, assembleia, oficina, atividade desportiva ou outra, para que ele comece imediatamente a responder conforme as expectativas de recuperação, estabilização, e inserção social preconizadas no seu projeto terapêutico singular. Neste modelo, o CAPS segue à risca as diretrizes ministeriais para a atenção em saúde mental no território nacional.

Na sequência destas práticas, a clínica veio perdendo espaço nas discussões de caso, nos fóruns de debate e na relação com o paciente.

(ENDO, 2017, p. 84). E na Defensoria Pública, seria também espaço para este encontro com a/o outra/o, para essa escuta qualificada, para essa conversa mais alargada? Penso que sim. Mas não sem o compartilhar de certos limites, sobretudo acerca das possibilidades institucionais (ex: nas demandas inviáveis/incabíveis). Mas até para diferenciarmos o que é possível de se fazer, as portas precisam estar abertas, para além do Momento Aberto do Conselho, aqui tomado mais como espaço emblemático de escuta e participação.

Bernardes (2015) vai entender os espaços de participação da DPESP, tais como este Momento Aberto do Conselho, como espaços de continuidade da participação popular que impulsionou a implantação do órgão (Movimento pela Criação da Defensoria Pública do Estado de São Paulo, conforme referido na p.141). Desta forma, relaciona a possibilidade da presença de pessoas em sofrimento mental que cotidianamente procuram a instituição à existência destes espaços.

A instituição foi criada e organizada tendo grande participação social em suas origens, com espaços previstos para a continuidade desta participação. Incorporou em sua estrutura dimensões para que vozes até então silenciadas, realidades sociais invisibilizadas, chegassem ao sistema de justiça. Neste contexto, as demandas de saúde mental começaram a se fazer presentes.[...] Pessoas portadoras de transtornos mentais com queixas de perseguição ou violência, pensamento confuso, solicitando defesa.

(BERNARDES, 2015, p.289) Parece coerente com os princípios da DPESP manter o espaço de escuta e acolhimento às pessoas em sofrimento mental, ouvindo seus discursos por vezes julgados como desconexos ou delirantes. O cuidado de se manter a devida atenção a essas pessoas estigmatizadas em nossa sociedade. Promover o direito à escuta deste sofrimento, diretamente na DPESP ou nos serviços da Rede. Marcos Rondon Silva, Defensor Público no estado do Mato Grosso, vai falar em “direito ao grito”(SILVA, 2019). O psicólogo da Defensoria de São Paulo, Paulo Kohara, vai falar em “direito à loucura”(KOHARA, 2019).

Oliveira (2015), que em sua pesquisa de doutorado estudou o trabalho interdisciplinar na DPESP e os encontros (e desencontros) “psi-jurídicos”, vê os casos de sofrimento mental e a loucura como produtora de uma zona de perturbação e de certa des-disciplinarização nos modos de saber-fazer, ou seja, traz demandas que nenhuma das áreas (Direito, Psicologia, Serviço Social) se mostra suficiente por si só, clamando por um trabalho interdisciplinar mais flexível e integrado. “O analisador saúde mental sinaliza algumas pistas para pensarmos a construção de uma assistência jurídica que tenda para a atenção integral” (OLIVEIRA, 2015, p.17). Além disso, esta autora destaca que as situações de sofrimento mental – como esta e as outras narradas – pelos desafios que trazem, acabam fomentando as práticas interdisciplinares, intersetoriais ou mesmo o uso de outras ferramentas menos usuais, inclusive as coletivas ou formativas.

A “saúde mental” nos aponta certas condições de possibilidade para a realização de práticas orientadas por arranjos entredisciplinares, entreprofissionais, intersetoriais e integrais potencializadas pela Deliberação que legitima o fazer com, entre defensores e profissionais do CAM, o fazer

em Rede, entre Defensoria e políticas públicas e sociais, e o saber-fazer com

ou o desfazer, ao construir políticas formativas que operam deslocamentos da intervenção tradicional nas áreas específicas que tende, historicamente, a ser voltada ao plano individual e não ao público.

(OLIVEIRA, 2015, p.115) Retomando o caso do sr. Hélio, para além dos atendimentos que teve, cabe refletir se o espaço do Conselho seria o apropriado para esta escuta. Tendo em vista que foi o lugar escolhido pelo usuário e que se propõe, como o próprio nome diz, a ser Momento Aberto, então penso ser adequado. Neste espaço onde, conforme a narrativa, sr. Hélio compartilhava no local suas ideias, seus comentários sobre o que viu nos jornais, queixava-se do processo judicial que perdera, conhecia pessoas de outros movimentos sociais e outras pessoas que se manifestavam no local.