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5. CENAS DO COTIDIANO

5.3 Fugiu do CAPS e foi à Defensoria

5.3.1 Mulher, negra e pobre: o retrato das pessoas atendidas na Defensoria Pública

Grafite simboliza bem as pessoas atendidas na DPESP: mulher, preta e pobre. “Quase pretas de tão pobres”67 são outras. No trabalho anterior (CAVALCANTE, 2016), já houve referência à pesquisa desenvolvida pela equipe da Ouvidoria da Defensoria Pública de São Paulo68, a qual verificou que 73% da população atendida na DPESP são mulheres (no Estado de São Paulo, essa proporção é de 51,5%, segundo o Censo 2010, do IBGE). Os dados sobre raça foram obtidos por meio da autodeclaração das entrevistadas. Lembrando que 69,5% da população geral do Estado se declara branca e 34,5% se declara como pretas ou pardas (IBGE), temos um quadro na Defensoria que chama atenção: 48% das/os usuárias/os se autodeclaram brancas e 47% se autodeclaram negras ou pardas. Também averiguaram que 5,5% das/os usuárias/os da DPESP entrevistadas/os não sabiam ler nem escrever, índice maior do que o percebido no Estado, que concentra 4,5% de analfabetas. A renda também é abaixo da média do estado de SP - renda domiciliar/ familiar de até 2 salários mínimos (54%), para famílias que, em média, possuem de 3 a 4 integrantes (média de 3,5 pessoas/ núcleo familiar ou residência).

Gênero, raça e classe. Recentemente, autoras/es têm utilizado o conceito de interseccionalidade que busca “capturar as consequências estruturais e dinâmicas da interação entre dois ou mais eixos da subordinação em nossa sociedade” (ASSIS, 2018, p.555). Grafite encarna todas estas características. E mais: Grafite tem em sua história a marca de ter passado a maior parte de sua vida em um SAICA, tendo sido afastada muito cedo de sua família de origem, muito provavelmente pobre, como tantas outras que atendemos. Estudos mostram a desqualificação que sofrem as famílias pobres brasileiras que, com suporte falho do Estado e de suas políticas públicas, são acusadas de negligência e viram alvo de ações de controle, ações de destituição do poder familiar e têm suas/seus filhas/os acolhidas/os, geralmente “para sempre”. É a criminalização da pobreza e a judicialização da vida agindo nestas histórias (NASCIMENTO, 2012; NASCIMENTO, CUNHA & VICENTE, 2008). Em nome do cuidado às crianças e adolescentes, vínculos são rompidos e crianças institucionalizadas por meses, anos, na esperança de uma adoção. Muitas, como Grafite, não têm para onde ir. Não

67 Referência à letra da música de Caetano Veloso, “Haiti”.

68 Disponível em: http://www.defensoria.sp.gov.br/dpesp/Repositorio/23/

têm mais vínculos; não têm família. Quase não têm Rede de atendimento. Não é intuito deste trabalho aprofundar estas discussões, mas faz-se necessário demarcá-las.

Grafite também sofre com a dificuldade de garantir direitos que, embora constem na Constituição Federal – direito à Saúde, à Assistência Social, à moradia dígna, à renda – sabemos que muitas vezes não se veem efetivados. Embora houvesse indicação para que ela fosse para uma Residência Inclusiva, vimos a demora para que isso ocorresse. Não há vaga para todas. Neste serviço e em outros. O desespero enquanto aguardava esta vaga quase a fez tirar a própria vida.

Segundo a Organização Mundial de Saúde (OMS), em todo o mundo, 75% dos suicídios ocorrem em países de baixa e média renda. Isso demonstra que as motivações para a prática suicida estão relacionadas também às relações de violência e opressão que se manifestam nos espaços laborais, sociais e familiares, na exploração econômica, na falta de acesso à educação, cultura e saúde69, assim como ocorreu no caso de Grafite.

O documento do CFP (2013) também destaca, dentre os indicadores associados a este tipo de morte a experiência da privação, condições socioeconômicas precárias, vivências de violências, abandono ou negligências, falta de acesso a serviços, dentre outros, conforme pode-se ver abaixo:

Os indicadores mais diretamente apontados pelas pesquisas como associados a esses modos de morte são também de ordem comportamental, emocional ou psicológica e estão associados ao contexto familiar, ambiental, social, econômico e cultural. Exemplos comuns de fatores de risco incluem a experiência de privação, negligência ou abuso na infância, violência doméstica, condição socioeconômica precária, falta de acesso à educação de qualidade e à oportunidade, problemas graves em pelo menos um dos cuidadores (alcoolismo, doenças mentais, ausências prolongadas, desemprego etc.), ser vítima de bullying, isolamento ou problemas interpessoais graves, transtornos mentais diagnosticáveis, uso de drogas e álcool, impulsividade e hostilidade e a vivência de afetos intoleráveis (desespero, depressão, desamparo, desesperança, abandono, humilhação, vergonha, ódio, inveja, entre outros).

(CFP, 2013, p.46-47) Pode-se pensar: mas é papel da Defensoria promover este tipo de atenção/cuidado? Não seria papel do serviço de Saúde? Sim e sim, penso eu. Por óbvio é papel do serviço de Saúde – que logo foi acionado, conforme relato. Porém, entendo que é papel da Defensoria

69 Informações disponíveis em: https://site.cfp.org.br/prevencao-ao-suicidio-desafios-para-psicologia-e-saude-

também este acolhimento. Afinal, Grafite nos procurou. Estabeleceu um vínculo conosco, uma ligação. Era atendida por nós também. Estabeleceu uma relação de confiança. Será que poderíamos lhe “fechar as portas”, simplesmente e pedir que aguardasse a vaga que estava sendo pleiteada pela Defensora? Será que promover a assistência jurídica integral, o acesso à justiça é “só” isso? Simplesmente direcioná-la ao serviço de Saúde sem um mínimo de escuta do seu sofrimento, da sua angústia, sendo que ela depositava em nós a expectativa de acolhimento? Fazer um encaminhamento para o CAPS e lhe entregar? Penso que promover direitos passa também por esta escuta, este espaço de acolhimento, dentro das necessidades de cada pessoa, dependendo do dia, da situação. Não se pode perder de vista a perspectiva intersetorial deste cuidado, mas ele deve ser delicadamente construído e articulado, a depender do caso.

Ao discutir o conceito de território, muito utilizado no campo da Saúde Mental, Feuerwerker, Bertussi & Merhy (2016), destacam que este termo é muitas vezes erroneamente entendido como físico, rígido e geográfico quando, na verdade, os vínculos das pessoas são relacionais e constroem territórios que lhe fazem sentido, territórios existenciais.

Na realidade, os indivíduos enquanto usuários dos estabelecimentos de saúde, em geral, buscam formas de vínculos relacionais com vários possíveis territórios de modos muito singulares, tomando essa construção como algo subjetivante. Território, então, é existencial e situacional. Tem muitos sentidos e o é em produção.

(Feuerwerker, Bertussi & Merhy, 2016, p.14)

Nessa linha, as/os autoras/es destacam que as pessoas vão estabelecer conexões e, consequentemente, procurar serviços que lhe fazem sentido, com quem construíram esta ligação. E estes locais não necessariamente serão os locais onde foram orientadas a procurar atenção.

Assim, os usuários das redes de saúde como um todo, mesmo que fortemente vinculados a certas equipes de saúde, não são usuários exclusivos desses locais, apesar de haver grande territorialização. Consomem e produzem outros laços. São “nômades” no sentido de que são produtores de redes de conexões existenciais não previstas e conhecidas no mundo do cuidado, redes de conexões que fogem dos lugares que os serviços de saúde instituem como seus.

Atravessam, furam itinerários e trajetórias conhecidas.

(Feuerwerker, Bertussi & Merhy, 2016, p.14, destaques nossos)

Por último há de se destacar que a atuação em Rede foi fundamental neste caso, assim como em outros tantos. E a Defensoria na Rede, não encastelada como tantas vezes age a

justiça. A DPESP integrada, com outro serviço, com a/o usuária/o. A DPESP olhando nos olhos e até segurando a mão (literalmente, em um caso extremo como este). Não só vendo os papéis de um processo. Pensando junto, atuando em conjunto. No prédio, no serviço, mas também na rua se preciso for. Esta é a potência de um trabalho que visa garantir direitos. Penso que atender bem e garantir direitos também passa por estes aspectos.