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2º momento: Contradições entre democracia formal e real na sociedade capitalista e desdobramentos para a educação escolar

A garantia da gestão democrática em termos legais não significa garantia real de sua implementação. Há limites na democracia burguesa, que é uma democracia apenas formal. Assim, precisamos situar a democracia no contexto do capitalismo. Primeiramente, há uma violência estrutural que funda a sociedade capitalista: a classe trabalhadora é explorada e expropriada pela classe que detêm o capital.

O Estado na sociedade capitalista tem sua origem na propriedade privada e na existência de classes sociais. Cabe nos perguntar, portanto, qual seria, grosso modo, o papel do estado na nossa sociedade. E a resposta, no campo marxista, é que o Estado é um instrumento do capital: “Sem a interveniência do Estado, com seu aparato político, jurídico, militar, burocrático e ideológico, o capitalismo simplesmente não poderia funcionar”. (TONET, 2009, p.7)

A democracia na sociedade capitalista é, portanto, ao mesmo tempo expressão da desigualdade social e condição de sua reprodução (TONET, 2009). Pauta-se na igualdade formal e na desigualdade real. Ou seja, é uma democracia necessariamente limitada.

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América Latina: pesquisas, impasses e desafios 145 Na democracia burguesa, a liberdade, entendida como liberdade de mercado ou como liberdade individual, tem prioridade sobre a igualdade e não temos acesso igualitário às conquistas humanas. Em Asbahr et.al (2017) analisamos essa questão com mais profundidade, tomando a sociedade brasileira como exemplo:

No Brasil, ainda impera a hierarquia do autoritarismo social, que se exprime em nossa sociedade por meio da violência concretizada no racismo, no machismo, nas discriminações de classe social, na exclusão cultural e política, ou seja, em problemas sociais de tamanha proporção e profundidade que tornam a democracia concreta um sonho ainda muito distante.

Essa conjuntura redunda da polarização social entre a carência das classes populares e os interesses das elites dominantes a qual se configura em um entrave para alcançarmos a esfera dos direitos, os quais uma democracia de fato deveria necessariamente garantir. Na esfera política o que temos em última instância são instituições que mimetizam formalmente a lógica democrática, mas que ainda atuam dentro do modelo autoritário em defesa de uma minoria privilegiada. (p.101-102)

Em síntese, onde impera o capital não pode haver democracia de fato: é o capital que dá as ordens. Mesmo que a sociedade burguesa tenha encontrado formas aparentes de relações democráticas, mesmo que as relações de trabalho, em alguns contextos, sejam “respeitosas”, “mais humanas”, o cerne da questão é que o trabalho está subordinado ao capital.

E no caso da educação? Quais são as possibilidades de uma gestão democrática na/da escola pública? Ou ainda, que democracia educacional queremos? A escola pública como instituição do Estado também reproduz, em parte, os ditames do capital. A grande questão é que a educação pública traz uma contradição fundamental.

A contradição da escola consiste em que, ao disseminar a ideologia liberal, traz a possibilidade de fornecer, também, os elementos intelectuais que permitem à classe trabalhadora compreender a própria realidade social contraditória e injusta vivida por nós. Assim, ao mesmo tempo em que a escola contribui para a adesão da população aos interesses da classe burguesa, também, contraditoriamente, pode proporcionar à população os instrumentos intelectuais imprescindíveis à luta pela superação dessa sociedade. (PARO, 2000)

Como a escola faz isso? Ensinando a obediência, a submissão, criando o desinteresse pelo conhecimento, produzindo a crença na incapacidade das crianças. E ao mesmo tempo, como possibilidade, ensinando a pensar e a questionar, e aqui reside o potencial caráter revolucionário da escola. Para que possa ser instrumento de transformação social é urgente que haja um movimento de afirmação da escola enquanto instância privilegiada de apropriação do conhecimento (SAVIANI, 2000).

de uma escola que se quer democrática. Assim, precisamos resgatar, afirmar e construir uma escola que seja de fato preocupada com o acesso ao conhecimento humano em suas diferentes vertentes: científico, filosófico, artístico.

Mas para além do acesso ao conhecimento formal há outro papel importante da escola que diz respeito ao processo de educação democrática (ou educação para a democracia), como postula Paro (2000), e aqui a gestão democrática tem um papel central.

A proposição e o exercício de práticas democráticas são imprescindíveis na criação de utopias ou para anunciar um valor no sentido da promoção de uma educação que possibilite aos sujeitos serem capazes de pensar, estudar, dirigir e controlar quem dirige (GRAMSCI, 1991). Aqui reside outro aspecto contraditório da educação escolar.

Por isso a defesa da participação efetiva de todos os segmentos da escola nas decisões tomadas e nas ações executadas é fundamental. Ou seja, a gestão democrática pode contribuir na construção de uma cultura democrática, produzindo:

• Vivências de experiências de participação colaborativa, de problematizações, decisões grupais e democráticas.

• Encontro de alternativas coletivas, desde a infância: participar democraticamente é um aprendizado.

• Fortalecimento do respeito ao espaço público como bem coletivo e de utilização democrática de todos/as.

No movimento de pensar e construir a gestão democrática na escola, algumas questões são fundamentais: Como romper com práticas autoritárias e centralizadoras nos vários âmbitos da educação, da sala de aula à gestão dos municípios e estados? Como romper com a lógica da participação restrita que constituem mecanismos que legitimam as decisões já tomadas e não garantem o controle e a transparências nos processos educacionais? Como gerar participação coletiva de fato?

Na prática esses desafios traduzem-se nas contradições entre o que falamos e o que fazemos. Por exemplo, na escola defendemos a existência de grêmios e outros espaços de participação estudantil, mas não criamos mecanismos efetivos para que as crianças aprendam a participar e muitas vezes é boicotada ou desencorajada a realização de assembleias escolares. Ou, defendemos a participação das famílias na escola, mas produzimos discursos e práticas que deslegitimam suas ações. Ou seja, a participação da comunidade é impedida. Defendemos a igualdade dos funcionários na escola, mas diariamente criamos situações de desrespeito e invisibilidade frente a seu trabalho.

Precisamos compreender e encarar estes desafios e contradições se quisermos de fato construir uma educação democrática, para além da democracia burguesa. Ressaltamos, assim, dois instrumentos fundamentais nesse aprendizado da gestão

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América Latina: pesquisas, impasses e desafios 147 democrática: o conselho escolar e os grêmios estudantis. São nesses espaços que as relações de poder podem ser horizontalizadas. São locais de debate, de tomada de decisão e avaliação, de desconcentração de um poder autoritário. São locais a serem construídos e fortalecidos no exercício do fazer democrático.

Mas quando mencionamos esses instrumentos não estou me referindo a sua organização formal, para obedecer a uma necessidade legal, e sim como espaços comprometidos com o projeto de emancipação do homem pela via da educação. São espaços que trazem fundamentalmente a possibilidade de trabalhar no sentido de produzir de forma intencional uma ética do coletivo e da solidariedade tão necessária a educação que se pretende transformadora. Focaremos brevemente o exemplo dos grêmios estudantis.

Em Bauru, um dos projetos de extensão do LIEPPE intitula-se “Formação de grêmios estudantis em escolas públicas municipais de Bauru” cuja existência completa

oito anos (2012-2020). O projeto é uma parceria entre a Secretaria Municipal da Educação (SME) do município de Bauru e o departamento de Psicologia da Universidade Estadual Paulista (UNESP) da mesma cidade. Foi idealizado pela Professora Marisa Eugênia Melillo Meira (uma das fundadoras do Lieppe) e Solange Castro (profissional do Sistema Municipal de Educação de Bauru). Nesse momento, todas escolas de ensino fundamental municipais atuam no projeto, abarcando dezesseis unidades escolares, cinco delas de Ensino Fundamental anos iniciais e finais e onze apenas de Ensino Fundamental anos iniciais. Ou seja, há grêmios estudantis atuantes e democraticamente eleitos na totalidade das escolas municipais de ensino fundamental de Bauru.

O objetivo principal do projeto é contribuir para a efetiva organização dos alunos das escolas de ensino fundamental, por meio da implementação de grêmios estudantis, tendo em vista a construção de uma gestão escolar democrática e participativa.

O funcionamento do projeto pode ser conhecido em algumas publicações que já fizemos sobre seu percurso e organização (ASBAHR et.al., 2017; BULHÕES et.al, 2018). Focaremos as pesquisas atuais do Lieppe na UNESP/Bauru sobre o tema. A atuação com os grêmios tem gerado muitas inquietações e produzido questões para investigação, em um movimento interessante de articulação entre a extensão universitária e a pesquisa acadêmica.