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4.4 QUESTÕES POLÊMICAS SOBRE O ANPP

4.4.1 Momento de proposição do acordo de não persecução penal

Como já mencionado, o CNPG-GNCCRIM confeccionou enunciados que elucidam a aplicação do pacote anticrime. O Enunciado n. 20 trata do momento de ofertamento do acordo, o qual dispõe que “cabe acordo de não persecução penal para fatos ocorridos antes da vigência da Lei n. 13.964/2019, desde que não recebida a denúncia” (CONSELHO NACIONAL PROCURADORES-GERAIS, [s. d.]).

Contudo, a premissa não possui pacificação doutrinária ou jurisprudencial. Isso porque trata-se de norma penal híbrida benéfica, visto que gera efeitos tanto na seara processual (ao obstar o oferecimento da denúncia), quanto na material (ao gerar a extinção da punibilidade) (PEREIRA, 2020).

Assim, trata-se de hipótese de retroatividade da norma, tendo a alegação amparo na Constituição da República Federativa do Brasil, a qual, em seu art. 5º, inciso XL, dispõe que “a lei penal não retroagirá, salvo para beneficiar o réu” (BRASIL, 1988).

Urge destacar que se excogita a possibilidade do ofertamento até mesmo após a sentença. Neste contexto, oportuna se faz a citação do art. 2º, parágrafo único, do Código Penal, o qual consagra que “a lei posterior, que de qualquer modo favorecer o agente, aplica-se aos fatos anteriores, ainda que decididos por sentença condenatória transitada em julgado” (BRASIL, 1940).

Sobre o tema, o Superior Tribunal de Justiça, por sua vez, entra em contradição. Isso porque, a discussão acerca do tema ocasionou julgados divergentes entre as turmas criminais do supremo: a Quinta Turma entende ser cabível até o recebimento da denúncia:

EMBARGOS DE DECLARAÇÃO NO AGRAVO REGIMENTAL NOS EMBARGOS DE DECLARAÇÃO NO AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL. PUBLICAÇÃO DE PAUTA DO JULGAMENTO EM SESSÃO VIRTUAL. FEITO LEVADO EM MESA. SESSÃO REALIZADA POR VIDEOCONFERÊNCIA. DIVERSO DO JULGAMENTO VIRTUAL. INAPLICABILIDADE DOS ARTIGOS 184-A a 184-H DO REGIMENTO INTERNO. NÃO PRERROGATIVA DE SUSTENTAÇÃO ORAL. ALEGADA OMISSÃO. PRETENDIDA APLICAÇÃO RETROATIVA DA REGRA DO § 5º DO ART. 171 DO CÓDIGO PENAL, ACRESCENTADO PELA LEI N. 13.964/2019 (PACOTE ANTICRIME). INVIABILIDADE. ATO JURÍDICO PERFEITO. CONDIÇÃO DE PROCEDIBILIDADE. ACORDO DE NÃO PERSECUÇÃO PENAL. APLICAÇÃO DO ART. 28-A DO CPP. INOVAÇÃO RECURSAL. IMPOSSIBILIDADE. IRRESIGNAÇÃO DA PARTE COM DECISÃO EMBARGADA. INVIABILIDADE. EMBARGOS PARCIALMENTE ACOLHIDOS PARA SANAR OMISSÃO, SEM EFEITOS INFRINGENTES. I -

Descabida a alegação de nulidade do acórdão embargado, na medida em que as normas que regem o julgamento virtual dos embargos de declaração, agravo regimental e agravo interno não se aplicam ao julgamento realizado mediante vídeoconferência, o qual é presencial e segue as regras correspondentes. II - Ademais, no que diz respeito ao possível interesse em realizar a sustentação oral, diviso que o reclamo não merece prosperar, pois dessume-se do artigo 159 do RISTJ que não é cabível tal pedido em sede de agravo regimental. III - Importante destacar que não se admite inovação recursal consistente na discussão, em agravo regimental e/ou embargos de declaração, de teses que não foram objeto do recurso especial, haja vista a devolutividade deste. IV - Outrossim, quanto a pretendida aplicação retroativa da regra do § 5º do art. 171 do CP, acrescentado pela Lei n. 13.964/2019, esta colenda Quinta Turma já decidiu que "além do silêncio do legislador sobre a aplicação do novo entendimento aos processos em curso, tem-se que seus efeitos não podem atingir o ato jurídico perfeito e acabado (oferecimento da denúncia), de modo que a retroatividade da representação no crime de deve se restringir à fase policial, não alcançando o estelionato processo", pois, "do contrário, estar-se-ia conferindo efeito distinto ao estabelecido na nova regra, transformando-se a representação em condição de prosseguibilidade e não procedibilidade". V - Ainda, da simples leitura do art. 28-A do CPP, se verifica a ausência dos requisitos para a sua aplicação, porquanto o embargante, em momento algum, confessou formal e circunstancialmente a prática de infração penal, pressuposto básico para a possibilidade de oferecimento de acordo de não persecução penal, instituto criado para ser proposto, caso o Ministério Público assim o entender, desde que necessário e suficiente para reprovação e prevenção do crime, na fase de investigação criminal ou até o recebimento da denúncia e não, como no presente, em que há condenação confirmado por Tribunal de segundo grau. Precedentes. VI - Por fim, inconformado com o resultado do julgamento, busca o embargante rediscutir a matéria apreciada e já decidida pela Quinta Turma, providência para a qual os aclaratórios não se prestam. Embargos de declaração parcialmente acolhidos, tão somente para sanar omissão, sem, contudo, atribuir-lhe efeitos infringentes (BRASIL, 2020).

A Sexta Turma, por sua vez, admite a possibilidade até o trânsito em julgado da demanda:

AGRAVO REGIMENTAL NO HABEAS CORPUS. FRAUDE À LICITAÇÃO. FALSIDADE IDEOLÓGICA. ACORDO DE NÃO PERSECUÇÃO PENAL. PACOTE ANTICRIME. ART. 28-A DO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL. NORMA PENAL DE NATURA MISTA. RETROATIVIDADE A FAVOR DO RÉU. NECESSIDADE DE INTIMAÇÃO DO MINISTÉRIO PÚBLICO. DECISÃO RECONSIDERADA. AGRAVO REGIMENTAL PROVIDO. 1. É reconsiderada a decisão inicial porque o cumprimento integral do acordo de não persecução penal gera a extinção da punibilidade (art. 28-A, § 13, do CPP), de modo que como norma de natureza jurídica mista e mais benéfica ao réu, deve retroagir em seu benefício em processos não transitados em julgado (art. 5º, XL, da CF). 2. Agravo regimental provido, determinando a baixa dos autos ao juízo de origem para que suspenda a ação penal e intime o Ministério Público acerca de eventual interesse na propositura de acordo de não persecução penal, nos termos do art. 28-A do CPP (introduzido pelo Pacote Anticrime - Lei n. 13.964/2019) (BRASIL, 2020). À vista disso, o ministro Gilmar Mendes levará o tema para discussão no Plenário do STF, visando sanar a divergência jurisprudencial:

No âmbito do Habeas Corpus n.º 185.913/DF, o Ministro Gilmar Mendes constatou que há divergência nos Tribunais infra e a potencial – já não potencial, porquanto factual – grande discussão sobre qual será o termo final para o oferecimento do ANPP,

e, invocando a segurança jurídica, levará a discussão ao Plenário do Supremo Tribunal Federal por ser “questão afeita à interpretação constitucional, com expressivo interesse jurídico e social, além de potencial divergência entre julgados” (PEREIRA, 2020).

Nessa linha, o entendimento do Tribunal de Justiça de Santa Catarina é pela retroatividade da norma, mesmo que em sede de sentença, convertendo o julgamento em diligência:

APELAÇÃO CRIMINAL - POSSE ILEGAL DE ARMA DE FOGO DE USO PERMITIDO E PORTE ILEGAL DE MUNIÇÕES (LEI N. 10.826/03, ARTS. 12 E 14) - SENTENÇA CONDENATÓRIA - INSURGÊNCIA DEFENSIVA - ANÁLISE DO RECURSO SUSPENSA - INOVAÇÃO LEGISLATIVA - ACORDO DE NÃO PERSECUÇÃO PENAL (CPP, ART. 28-A) - CONVERSÃO EM DILIGÊNCIA NECESSÁRIA (SANTA CATARINA, 2020).

Ainda, no mesmo sentido, outro entendimento na mesma perspectiva, conforme se vê na decisão:

APELAÇÃO CRIMINAL (RÉUS SOLTOS) - DELITOS DE FURTO QUALIFICADO (CP, ART. 155, § 4º, II) IMPUTADO AO RÉU E DE RECEPTAÇÃO SIMPLES (CP, ART. 180, "CAPUT") À RÉ - SENTENÇA DE PARCIAL PROCEDÊNCIA - ABSOLVIÇÃO DELE E CONDENAÇÃO DELA. RECURSO DO MINISTÉRIO PÚBLICO. APELO EM RELAÇÃO A C. S. DA S. (CP, ART. 180, "CAPUT") - QUESTÃO SUSCITADA PELA PROCURADORIA GERAL DE JUSTIÇA - ACORDO DE NÃO PERSECUÇÃO PENAL (CPP, ART. 29-A) - RÉ C. S. DA S. QUE, NUMA ANÁLISE DE PLANO, PREENCHE OS REQUISITOS LEGAIS - PENA MÍNIMA INFERIOR A QUATRO ANOS, ACUSADA PRIMÁRIA E SEM INDICATIVOS DE HABITUALIDADE CRIMINOSA - ADEMAIS, AUSÊNCIA DE NOTÍCIAS ACERCA DO USUFRUTO DE BENEFÍCIOS SIMILARES NOS CINCO ANOS QUE ANTECEDERAM OS FATOS - DETERMINAÇÃO, DE OFÍCIO, DA SUSPENSÃO DO JULGAMENTO, CISÃO DO PROCESSO E RETORNO DOS AUTOS À ORIGEM PARA INTIMAÇÃO DO MINISTÉRIO PÚBLICO ACERCA DA BENESSE. Constatado, de plano, que a acusada preenche os requisitos legais para o acordo de não persecução penal (CPP, art. 28-A), o Ministério Público deve ser intimado a analisar a possibilidade de oferta do benefício (SANTA CATARINA, 2020).

Cumpre, também, analisar o Enunciado n. 98 da 2º Câmara de Coordenação e Revisão do Ministério Público (BRASIL, 2020), o qual dispõe que:

“É cabível o oferecimento de acordo de não persecução penal no curso da ação penal, isto é, antes do trânsito em julgado, desde que preenchidos os requisitos legais, devendo o integrante do MPF oficiante assegurar seja oferecida ao acusado a oportunidade de confessar formal e circunstancialmente a prática da infração penal, nos termos do art. 28-A da Lei n° 13.964/19 (Aprovado na 182ª Sessão Virtual de Coordenação, de 25/05/2020)”.

É cabível o oferecimento de acordo de não persecução penal no curso da ação penal, isto é, antes do trânsito em julgado, desde que preenchidos os requisitos legais, devendo o integrante do MPF oficiante assegurar seja oferecida ao acusado a oportunidade de confessar formal e circunstancialmente a prática da infração penal, nos termos do art. 28-A do CPP, quando se tratar de processos que estavam em curso quando da introdução da Lei nº 13.964/2019, conforme precedentes, podendo o membro oficiante analisar se eventual sentença ou acórdão proferido nos autos configura medida mais adequada e proporcional ao deslinde dos fatos do que a celebração do ANPP. Não é cabível o acordo para processos com sentença ou acórdão após a vigência da Lei nº 13.964/2019, uma vez oferecido o ANPP e recusado pela defesa, quando haverá preclusão (Alterado na 187ª Sessão Virtual de Coordenação, de 31/08/2020).

Observa-se, na última versão, que o próprio Enunciado se contradiz, pois afirma ser cabível o acordo quando preenchidos os requisitos legais antes da sentença penal condenatória, mas ao mesmo tempo limita o cabimento ao dar a faculdade para o Parquet analisar se será adequado e proporcional ao deslinde dos fatos. Tal análise deveria partir do defensor, considerando que possui a função primordial de observar os interesses do acusado (PEREIRA, 2020).

Enfatiza-se, também, o caráter retroativo da norma, que advém do princípio da retroatividade da lei mais favorável. “Aplica-se o que for mais benéfico ao réu pelo fato de a norma híbrida influenciar no poder de punir do Estado, ainda que reflexamente” (LIMA, 2020a). Ora, a norma que estipulou o ANPP limita o jus puniendi do Estado, que abre mão da persecução penal ao pactuar com o acordante.

Melo e Broeto (2020) entendem ser imperativo o caráter retroativo da norma, considerando que limita o poder estatal quando implemente nova causa extintiva de punibilidade, favorecendo o status libertatis do investigado.

Dessa forma, em consonância com o art. 2º, parágrafo único do Código de Processo Penal, bem como com o princípio da retroatividade da lei mais benéfica, entende-se que a aplicação do acordo de não persecução penal deve retroagir, até mesmo em sede de sentença condenatória transitada em julgado.