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2.1 Monarquia liberal aristocrática: a linguagem da Ordem

A cultura monárquica prega valores como a ordem, a hierarquia, a harmonia social e o respeito às autoridades. No âmbito desta cultura nada mais terrível que a revolução. Associada ao caos e à violência das convulsões sociais, a revolução estaria na antípoda de valores monárquico-aristocráticos como a moderação e o comportamento cavalheiresco em que o respeito à fé cristã e à dignidade da Coroa são indispensáveis.

Mas à medida que o desgaste entre “brasileiros” e as Cortes Vintistas se intensificava, crescia a tentação de romper com Lisboa e forçar a independência do Brasil sem no entanto recorrer às ações revolucionárias. Paulatinamente o projeto restaurador deu lugar à ideia de regeneração, segundo a qual o Brasil se tornaria uma monarquia constitucional independente, pautada por princípios econômicos liberais, calcada na “boa e antiga” herança lusitana que fora corrompida por vícios violentos (e ultrapassados) do “espírito de conquista”. (ARAUJO, 2008).

37 Diante da impossibilidade de conter a Independência, homens como o Visconde de Cayru abraçaram a causa da monarquia constitucional como um “mal menor”. Neste momento o príncipe D. Pedro não é representado por meio da alegoria do mentor, mas como o verdadeiro herói que se sacrifica por um bem maior: ele abre mão de parte de seu poder, num gesto voluntário e altruísta, justificado por ser a única forma de conter o surto revolucionário que assolava a América. O jovem rei seria o libertador e unificador do Brasil, evitando que a nação se desintegrasse “em dezenove repúblicas e dezenove Bolívares”. (LISBOA, 1827, p. 20 apud SILVA, 2010a, p. 101).

Cayru não era um pregador solitário no deserto. Argumentos típicos da cultura da Ordem estão presentes em inúmeros artigos na imprensa durante e após a Independência.

O corpo humano: o rei é a cabeça, o guia

A associação entre a sociedade e o corpo humano é um tema tão profundo na cultura monárquica lusa que um conceito foi cunhado especialmente para explicá-la: o corporativismo cristão. (HESPANHA & XAVIER, 1993). Sob esta perspectiva, povo, nobreza e rei compunham um todo harmônico e coeso. Durante o processo de Independência jornal O bem da Ordem caracterizava D. Pedro I como “a cabeça e parte essencial deste corpo moral”, um “pai no meio de seus filhos”. (O bem da Ordem. Edição 5, 1821). O Brasil poderia se emancipar enquanto nação, mas o povo continua a ser visto como um ente dependente do Soberano. (PEREIRA, 2013, p. 36).

O rei como mentor: o pai do povo

A figura do pai é medular na cultura ocidental. Ao longo de milênios ele é representado como um mentor que protege a prole e guia os mais jovens, transmitindo-lhes a dádiva de sua sabedoria. Na monarquia esta imagem se transfere simbolicamente aos reis. O jornal O bem da Ordem explicava que a sociedade portuguesa se originou da autoridade paternal típica do núcleo familiar. A soberania do pai é vista como lei da natureza: tão espontânea quanto o fogo que queima, teria se prolongado ao todo social dando origem à comunidade monárquica. (O bem da Ordem. Edição 4, 1821).

Mas, de acordo com este idioma, o crescimento do Império Ultramarino impôs desafios árduos demais até mesmo para este grande mestre. Por isso, às vésperas da Independência, o jornal representa D. João VI por meio da alegoria do mentor caído. A ideia, grosso modo, é simples: o rei deseja guiar e ajudar seus súditos, mas um obstáculo inesperado o impede de

38 trilhar o caminho correto. Quando a sociedade lusa se expande, explica o redator, o monarca já não pode ouvir a todos. Por isso delega poder aos ministros, sendo estes os responsáveis pelo despotismo. (O bem da Ordem. Edição 4, 1821).

No decorrer da história portuguesa os reis muitas vezes foram ilustrados por meio dessa imagem de mentor caído que faz o possível para manter o reino em Ordem e harmonia apesar dos obstáculos que o cercam: poucos recursos, ministros corruptos, consequências geradas por guerras entre os grandes reinos da Europa que acabam respingando, etc. A construção “o rei contra todos” revela uma faceta frágil do sujeito por trás da Coroa, promovendo a identificação entre o súdito e o homem. Ela incentiva o vassalo a perdoar equívocos, apoiar seu Soberano, em última instância, lutar por ele.

A edificação da imagem harmônica da monarquia requeria estratégias para preservar a imagem do rei. Uma delas é esconder seus deslizes ou atribui-los a bodes expiatórios, como faz o redator de O bem da Ordem. Para os setores que orbitam a governança a questão era de ordem prática: livrar-se de um ministro era mais fácil que destronar a majestade.

O tropo do funcionário corrupto que trai a confiança do rei inocente estava disponível no contexto linguístico da Ordem antes, durante e depois da Independência. Na perspectiva desta tradição adotar o regime monárquico constitucional não se justificava porque participar da política era um direito natural, mas para remendar a Ordem tradicional que fora subvertida. Como se vê, a ideia de regenerar estava muito mais próxima de restaurar uma estrutura anterior considerada salutar, reconquistando o direito do povo de estar próximo a seu rei.

Para este setor a Independência não significava transformação radical da sociedade, menos ainda de suas tradições e costumes. Inúmeros jornais comparavam o momento a uma etapa natural da evolução familiar em que o filho (Brasil) atinge a maturidade e se emancipa do pai (Portugal) para construir sua própria linhagem. A célebre metáfora de pais e filhos continua presente, agora para representar a relação entre Brasil e Portugal. (ARAUJO, 2008).

Horror à Revolução

No contexto linguístico da Ordem a adoção do regime monárquico constitucional foi vista mais como concessão do rei justo que ouve as demandas do “filho” que como uma conquista do povo ativo e soberano. Mas todos sabiam que as Cortes Vintistas inauguravam uma novidade: não eram apenas consultivas como as anteriores, mas soberanas, dotadas de poderes deliberativos e legislativos. (PEREIRA, 2013). Esta ousadia popular marca os limites do liberalismo defendido pelos falantes deste idioma.

39 De fato, homens como o Visconde de Cayru criticavam as Cortes Vintistas por defenderem um projeto econômico monopolista, isto é, pouco liberal. Porém, sob o aspecto sócio-político, as Cortes eram censuradas pelo excesso de liberalismo. Em termos mais precisos: considerava-se que estavam sendo adotados princípios demasiadamente democráticos.

Nas palavras de Cayru as Cortes Vintistas eram uma “Cabala Jacobina” que incentivava “delírios iluministas e revolucionários” e agora queria impor “uma tirânica soberania do povo sobre o rei”. (LISBOA, 1829, p. 9-12). Estas comparações revelam uma característica persistente na cultura da Ordem: por mais que seu discurso fale em nome da harmonia e da moderação, é recorrente a criação de espantalhos retóricos para amedrontar o leitor. Para censurar a comedida Revolução do Porto valia até mesmo associá-la aos jacobinos, o setor mais radical da Revolução Francesa, responsável por perseguições políticas e execuções em massa na guilhotina.

No contexto da Ordem a independência do Brasil é ilustrada como a antípoda da revolução: consistia em um ato patriótico, voluntário. Nas palavras de Cayru a emancipação fora feita “sem violência, respeitando a ordem e jurando fidelidade, guiada pelo próprio príncipe herdeiro, pois os homens bons não suportam nenhuma nódoa de ideias revolucionárias”. (LISBOA, 1829, p. 9-12, grifos meus.).

O objetivo destes argumentos era frear o potencial democrático que as doutrinas liberais poderiam desencadear. Embora acatassem a monarquia constitucional, a Ordem requeria a criação do poder moderador, que dava ao rei dois poderes cruciais sobre o parlamento: sancionar ou vetar leis. A justificativa era a vigilância do Soberano sobre o povo, que não sabia (ainda) governar a si próprio.

Ética nobiliárquica: a Alta Aristocracia do Brasil

Devemos lutar pela igualdade dos cidadãos ou existem diferenças entre eles? Se há distinções, a que se devem: ao nascimento ou ao mérito?

Ainda no século XVIII a aristocracia colonial (Baixa Nobreza) começava a ganhar seus primeiros genealogistas. O Frei Antônio de Santa Maria Jaboatão chegou a elaborar o catálogo genealógico das principais famílias que precederam dos Caramurus na Bahia e dos Albuquerques e Cavalcantes, em Pernambuco. (SILVA, 2005, p. 33-39). Quando se soube que a Coroa portuguesa vinha aos trópicos, em 1808, a nobreza colonial passou a sonhar com voos mais altos.

40 Marina Garcia de Oliveira nos mostra que essas expectativas eram acertadas. Durante sua estadia na América, D. João VI concedeu inúmeros títulos nobiliárquicos de Alta Nobreza. Essa estratégia visava assegurar a fidelidade dos principais agentes metropolitanos, mas alguns poucos coloniais também receberam honras. Assim se fizeram os primeiros Condes brasileiros. (OLIVEIRA, 2013).

D. Pedro I utilizou o mesmo artificio ao costurar apoios para seu governo após a Independência. A prática da nobilitação foi assegurada pela Constituição de 1824. Títulos, honras, comendas e distinções visavam recompensar certos cidadãos por grandes serviços feitos ao Estado. As concessões cabiam ao Executivo, isto é, aos ministros diretamente nomeados pelo rei.

É importante lembrar que, na tradição ibérica, títulos de Alta Nobreza traziam extensos privilégios. Além de serem hereditários, vinham sempre acompanhados de mercês pecuniárias: grandes porções de terra, pensões anuais, julgamento em tribunal especial, preferência para cargos de prestígio nos tribunais, concelhos e mesas etc.

Mas a cultura colonial do mérito demonstrou ser um forte obstáculo à concessão de tantos privilégios. A opinião pública condenou a hereditariedade e os benefícios pecuniários, reduzindo os títulos de Alta Nobreza do Império a premiações simbólicas e vitalícias apenas. Elas visavam reconhecer o mérito individual e não deveriam implicar em gastos públicos.

No contexto linguístico da Ordem não se questionava a prática da nobilitação em si, mas sua banalização era recriminada por meio de argumentos típicos na cultura monárquica. José Bonifácio de Andrada e Silva censurava o número e a velocidade com que os títulos que estavam sendo concedidos, isto é, a negligência com o tempo lento necessário para a naturalização da nova Alta Nobreza no seio da sociedade. A ausência de mercês pecuniárias era outro ponto de crítica para José Bonifácio que em carta indagava: “Que valem os títulos, dignidades e honras dados sem justiça e como paga servil da escravidão dos vícios? Ninguém os quererá se não vierem acompanhados de dinheiro ou ofícios!”. (apud DOLHNIKOFF, 1998, p. 219, grifos meus.).

A verdade é que, neste período, tornara-se difícil argumentar em defesa da nobiliarquia hereditária na nação brasileira que surgia. Ao menos em teoria, o mérito vencera o nascimento.

Porém, havia o “jeitinho”. A Constituição de 1824 previa mercês pecuniárias para condes, marqueses e duques que tinham assento no Conselho da Fazenda. D. Pedro I concedeu estes títulos aos senadores que lhe davam sustentação política. Em seguida, indicou-os para o Conselho, garantindo-lhes pensões. Explorando brechas na Constituição o rei distribui 27 títulos de marquês, sendo 22 deles acompanhados de pensões pagas pelo Conselho da Fazenda.

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