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2.3 Regime democrático: linguagem republicana moderna

O republicanismo Clássico propagava um ideal de sistema misto, pautado pelo equilíbrio entre elementos monárquicos, aristocráticos e democráticos. Mas o republicanismo moderno, cunhado na França e nos Estados Unidos, tratava-se de um regime democrático em estado puro. Este modelo não concebia a existência de rei ou nobreza, sustentando o princípio de que todos eram iguais. Por isso ele se opunha a qualquer regime monárquico, fosse este absolutista, parlamentarista ou constitucional. Neste contexto linguístico o povo é soberano. Suas decisões se expressam por meio do voto direto e da eleição periódica de representantes.

A criminalização do republicanismo

Mapear o republicanismo moderno no Brasil Oitocentista é uma tarefa desafiadora. Os discursos da Ordem lograram reduzir a Revolução Francesa ao Terror jacobino e a República se tornou um inimigo tão terrível quanto o absolutismo para aqueles que se consideravam moderados. Ser republicano passa a se confundir com a defesa do radicalismo e da violência. A defesa pública do regime se torna motivo de perseguição, resultando na auto censura de seus simpatizantes.

Em 1822 Joaquim Gonçalves Ledo afirmou em carta que estava sendo alvo de intrigas. Em suas palavras, José Bonifácio o estava perseguindo “por saber que ainda no ano passado eu era republicano e que agora trabalho por uma monarquia constitucional sem nobreza outra senão a dos sentimentos”. (apud ASLAN, [1975], p. 274).

Anos depois, Gonçalves Ledo, Januário da Cunha Barbosa e José Clemente Pereira foram exilados, acusados de republicanos e traidores por tramarem uma suposta conspiração destinada a destronar Pedro I. (OLIVEIRA, 2013, p. 94). Mais tarde, defender a República

45 (democrática) na imprensa se torna crime previsto em lei, tanto pelo Código Criminal de 1830, quando no Código do Processo de 1832, além de ser inconstitucional. (FONSECA, 2006, p. 338).

Neste cenário expressões como medidas liberais mais amplas, liberalismo exaltado, liberalismo radical, pretensões muito liberais ou utopias eram em geral eufemismos para se referir aos usuários da linguagem republicana moderna.

Participar da política é um direito natural

Neste horizonte o conceito de súdito como “parte do corpo” é substituído pelo de cidadão independente. A “liberdade”, a “soberania do povo” e a “vontade geral” são sempre reivindicados. O povo se liga ao rei apenas por sua vontade, utilidade ou bem estar, e não por uma obrigação natural ou histórica. (PEREIRA, 2013, p. 40-41).

Entretanto, uma vez que estes pressupostos poderiam ser associados a princípios revolucionários, percebe-se o esforço em buscar entre os autores da Antiguidade Clássica as referências capazes de autorizar os ideais republicanos de bem comum, política pública, virtude cidadã, mas também os ideais democráticos vinculados à soberania popular:

Os cidadãos têm o direito natural de participar da política. Os direitos do rei se originam da delegação do povo. Essa não é uma doutrina dos

ímpios da França, mas sim de Sócrates. Os súditos que não os exercem

não são mais que uma tropa de homens ou escravos. (Revérbero Constitucional Fluminense. Edição de 20 de agosto, 1822, grifos meus).

Igualdade: toda aristocracia é um mal

A ideia de que todos os cidadãos nascem iguais é um preceito basilar do pensamento de Rousseau e uma referência para o republicanismo moderno. Rousseau associa o “grau” de civilização de um Estado a capacidade de gerar igualdade social, econômica e política entre os cidadãos. Neste contexto discursivo a riqueza é incompatível com o bem comum, pois sempre depende de um contraponto: a pobreza.

Também se argumentava que todo luxo objetiva simbolizar distinções e hierarquizar pessoas, promovendo uma sociedade em que o interesse pessoal é superior ao bem público. Refém de satisfazer desejos materiais, os cidadãos se tornavam vulneráveis a vícios da corrupção e do servilismo, renunciando à liberdade e autonomia. A verdadeira civilização favorece a igualdade: que nenhum homem seja opulento a ponto de poder comprar outro. Que ninguém seja tão pobre a ponto de ter que se colocar à venda. (LEITE, 2014, p. 119-120).

46 Outro ponto importante é a alegoria do luxo como disfarce para o vício. Rousseau argumentava que os homens se valem de riqueza e honras para disfarçar quem realmente são e em geral detrás do esplendor se escondiam as mais vis personalidades. As diferenças entre o camponês, o nobre e o rei eram apenas de indumentária, não de caráter ou mérito. Os aristocratas “são lixo, são piores que lama” – dizia o jornal Tribuno do Povo. – “Não valem nada porque o Brasil não quer cá títulos feudais e faz tanto caso de um Marquês como faz de um cão morto. Ordens, fora, fora títulos, valha o homem pelo que é na realidade não pelo que quer valer com fitas”. (Tribuno do Povo. Edição 40, 1831 apud FONSECA, 2006, p. 354, grifos meus).

Uma vez que as coisas são colocadas nestes termos, é fácil questionar a legitimidade da nobreza, mas também do rei. “Aponta-se o fato de que aquilo que faz o rei é simplesmente a coroa, no entanto, o que significa esse símbolo, além de ser um objeto que pesa sobre a cabeça de alguém?”. (LEITE, 2004, p. 117) Abre-se caminho para deslegitimar todo o regime monárquico.

Estes tópicos poderiam se conectar à tradição republicana Clássica ou ao constitucionalismo britânico, mas, em casos como a nobilitação, o recurso ao arcabouço francês parecia incontornável. A expressão mais notória desta apropriação à época da Independência foi o Manifesto contra a criação da Nobreza Brasileira, publicado por Joaquim Gonçalves Ledo no periódico Sentinela em 1822. O autor deixava clara sua “repugnância ou aversão à fidalguia”, a seu ver nociva à nação por sobrepor interesses particulares à identidade nacional. “Cheio de ufania” e sendo “incapaz de fazer o útil, porque tudo considera como indecoroso ao seu estado”, o aristocrata se tornava “necessariamente um sanguessuga da Sociedade”. (LEDO, 1822 apud OLIVEIRA, 2013, p. 85).9

A linguagem republicana implica o rompimento definitivo com qualquer ética nobiliárquica. Se o liberalismo democrático tinha uma visão crítica sobre a nobilitação, a imprensa republicana (exaltada) era radicalmente antiaristocrata, contrária a todo tipo de privilégio.

9 A transcrição completa do Manifesto contra a criação da Nobreza Brasileira foi disponibilizada por Marina

Garcia Oliveira (2013, p. 205-209). De acordo com Nicola Aslan ([1975], p. 274), em carta a Araújo Lima, Gonçalves Ledo afirmara que o imperador lhe ofereceu o título de Marquês da Praia Grande um mês após a publicação do Manifesto: “O Conselheiro José Bonifácio, sabendo que ainda o ano passado eu era republicano [...], decerto teve parte neste convite que reputo ofensivo à minha dignidade”. No mesmo período, Francisco Gomes Brandão recusou a concessão do título de Barão de Praia Grande. Em correspondência ao marquês de Rezende, afirmou ter exposto a Bonifácio “que tal despacho me poria em dificuldades na província da Bahia, fazendo-me perder as afeições do partido liberal exaltado; ao mesmo tempo que criaria ciúme na classe rica e poderosa da província, ciúme que poderia entorpecer o entusiasmo patriótico tão necessário na crise em que estávamos.” (REZENDE, 1917, p. 495).

47 Tais debates se prolongaram durante o período regencial. É sintomático que, já em 1831, em meio às esperanças e urgências impostas pela vacância do trono, os deputados consideraram prioridade definir se a Regência tinha a prerrogativa de conceder títulos nobiliárquicos. (OLIVEIRA, 2013, p. 156-160). Ainda que não pareça à primeira vista, a gravidade do tema é compreensível. A nobilitação era a ponta de um iceberg concreto. A verdade é que liberais (moderados e exaltados) perceberam que a Alta Nobreza senatorial apoiara as medidas centralizadoras de Pedro I, vistas como absolutismo e recolonização. “Não passara despercebida a íntima relação entre títulos de nobreza, bens vinculados, mercês pecuniárias e o fortalecimento do monarca”. (OLIVEIRA, 2013, p. 184).10

Os restauradores eram maioria no Senado vitalício e no Conselho da Fazenda, razão pela qual essas instituições foram associadas aos interesses pessoais (do rei ou de seus componentes). De fato, o Senado inviabilizou reformas constitucionais descentralizadoras e/ou democratizantes, ora rejeitando-as, ora as procrastinando indefinidamente. Em contraposição, a Câmara dos Deputados era majoritariamente composta por liberais que se entendiam como porta vozes do interesse público. (OLIVEIRA, 2014, p. 126).

Neste cenário os partícipes do governo temiam que as facções se aproveitassem do poder regencial para nobilitar seus sequazes. A participação dos liberais exaltados no debate, por outro lado, aprofundou a crítica à nobreza e aos protocolos ritualísticos da monarquia constitucional. Esta preocupação se acentuou à medida que as Regências fortalecem os protocolos e rituais em torno da figura do príncipe. Associadas a costumes de cortesãos europeus, a ritualística monárquica era considerada pelos exaltados como “imprópria para povos americanos livres”. (FONSECA, 2006, p. 344).

Anacronismo: a monarquia como regime obsoleto

Aos poucos a linguagem republicana moderna agrega entre seus temas o argumento do anacronismo. A nobreza e a monarquia vão sendo apresentados como instituições típicas de

10 Segundo Marina Garcia Oliveira a Constituição atribuía ao Executivo o arbítrio na concessão de Títulos,

Honras, Ordens Militares e Distinções em recompensa de serviços feitos ao Estado. Por isso, nesta questão os protagonistas eram o imperador e os ministros, especialmente a pasta do Império. (OLIVEIRA, 2013, p. 13; p. 106). Apesar da Constituição determinar no artigo 102 que a concessão de mercês pecuniárias agregadas aos títulos de nobreza dependia da aprovação do legislativo, o § 11 liberava estas concessões se já estivessem determinadas por lei, como era o caso dos assentamentos pagos do Conselho da Fazenda. Este rendimento poderia ser concedido para os títulos de conde, marquês e duque e Pedro I os distribuiu para os senadores que lhe dariam sustentação política em oposição às demandas descentralizadoras que partiam da câmara dos deputados. Explorando estas brechas da Constituição, o monarca pôde manter os privilégios pecuniários da nobreza senatorial e formar com ela o Conselho da Fazenda. Dos 27 títulos de marquês concedidos por Pedro I, 22 eram acompanhados por assentamentos pagos pelo Concelho da Fazenda e um ao título de duque. (OLIVEIRA, 2013, p. 124, 76).

48 um estágio anterior da humanidade – um tempo arcaico, primitivo e ultrapassado chamado vagamente de “Antigo Regime”. Posto isso, a manutenção deste modelo e seus atores seria inapropriada, “fora do tempo correto”, sintoma de atraso civilizacional.

O jornal O Republico incitava a legislatura regencial a promover “o completo aniquilamento dos princípios da Velha Europa cá na América” e questionava: “Ontem leu-se na Câmara dos deputados o projeto que diz que a Regência pode dar títulos. A ser assim, ainda se pretende que o Brasil da América haja títulos”? (O Repúblico. Edição 64, 1831).