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2.2 Monarquia liberal democrática: os moderados

No centro do debate, entre os polos da “Ordem” e da “Republica”, estavam os liberais democratas – conhecidos como “liberais moderados”. Na cena política da Independência seus principais emissores eram a “elite brasiliense”, majoritariamente formada por homens nascidos na Colônia. Este grupo comportava leigos como Joaquim Gonçalves Ledo e Cipriano Barata, mas também padres, como Januário da Cunha Barbosa e Diogo Feijó.

Desprovidos de contatos diretos com a Universidade de Coimbra, este setor se mostrava mais aberto ao arcabouço republicano do iluminismo francês. As obras de Voltaire, Rousseau e Montesquieu adentraram os círculos coloniais no fim do século XVIII, trazidos “sob o capote para ludibriar a censura”. (NEVES, 1999, p. 09). Movimentos como a Inconfidência Mineira e a Conjuração Baiana haviam bebido desta tradição, desenvolvendo linguagens políticas que mesclavam princípios democráticos e liberais e à experiência colonial.

É importante lembrar que, no momento anterior à Independência, vários projetos eram possíveis. Aventava-se até mesmo a instituição da república democrática – sem rei, sem nobreza, com parlamento, senado e presidente eleitos como ocorria nos Estados Unidos. Muitos “brasilienses” partilhavam essa aspiração. Todavia, diante de um contexto político desfavorável, conformaram-se em disputar o regime monárquico constitucional. Contra uma regeneração aristocrática, propunham uma regeneração democrática.

Aristocracia do mérito – o cortesão parasita

“A única nobreza que a nossa Constituição reconhece é a do merecimento, mas não reconhece a nobreza de famílias. E como pode existir essa nobreza de famílias se a Constituição diz: todos são iguais?” – Pergunta o senador Nicolau de Campos Vergueiro em discurso realizado em 1829. (Anais do Senado. Sessão de 10 de julho de 1829, p. 81 apud OLIVEIRA, 2013, p. 178).7 Como suas palavras indicam, giros retóricos eram capazes de conectar princípios aparentemente opostos, como nobreza e igualdade. Claro está que, na opinião do senador, era injusto que uns nascessem fidalgos, outros, plebeus. Mas se todos nasciam iguais, como explicar a riqueza de uns e a pobreza de outros? Chega-se ao conceito de mérito individual.

7 O discurso de José Ricardo da Costa Aguiar de Andrada ia mais além: “já se passaram aqueles tempos em que

Montesquieu dizia que a moderação era o principal elemento da aristocracia; melhor julgou Voltaire [ao afirmar], que a aristocracia não era fundada sobre a moderação, e sim sobre o orgulho, a ambição e o desejo de dominar (apoiado)”. (Anais da Câmara dos deputados. Sessão de 09 de julho de 1828, p. 67 apud OLIVEIRA, 2013, p. 174).

42 No ambiente da regeneração democrática a nobreza “de famílias” (hereditária) é associada à alegoria do cortesão parasita. Este tópico era central na linguagem liberal do luxo usada por Voltaire para censurar a aristocracia francesa. Ele se insere em um contexto mais amplo de críticas dos liberais britânicos ao modo de vida virtuoso pregado pelas monarquias tradicionais.

De fato, na cultura da Ordem o luxo era usado para simbolizar hierarquias entre os extratos sociais. A suntuosidade era uma ferramenta ritual exclusiva da família real, da nobreza e do clero, enquanto o povo comum era aconselhado a viver uma vida frugal. Neste cenário o luxo da plebe era entendido como supérfluo, pior ainda, motor de pecados tais quais a vaidade, a ambição, a inveja e a corrupção.

No universo liberal britânico, por outro lado, a ciência e o comércio ultramarino criavam um horizonte de abundância, ampliando o padrão do que se considerava viver com conforto. Estas expectativas se aliam a uma filosofia da história em que o progresso das civilizações é mensurado pelo desenvolvimento material. Neste sentido, uma nação próspera e poderosa deve ser capaz de promover e democratizar o luxo entre seus cidadãos. O conceito se redefine: passa a incluir tudo aquilo que, mesmo não sendo vitalmente essencial, torna a vida humana na Terra mais confortável.

Estes preceitos propiciam a distinção entre dois tipos de aristocracia: a nobreza moderna, meritocrática, e a nobreza cortesã – acomodada, conservadora, parasitária. Esta nobreza moderna está ligada ao comércio, ao espírito burguês. Voltaire lembra que a aristocracia britânica contribuía para a grandeza do Estado e bem-estar dos cidadãos, pois os negociantes, industriais e inventores que enriquecem seu país são úteis à humanidade. Nesta perspectiva o comércio internacional tornaria os homens mais tolerantes, reuniria os hemisférios e criaria um mundo cosmopolita. (LEITE, 2014, p. 79-83).

Em contraposição a este cenário Voltaire situa a nobreza cortesã. O argumento central é que o estilo de vida dos cortesãos não lhes permitia inscrever sua riqueza como recurso capaz de multiplicar a grandeza estatal. A mera ostentação do luxo não propiciava melhoria na vida das pessoas, alimentando somente a vaidade de um pequeno grupo. Voltaire ressaltava que a nobreza francesa só se importava com rituais fúteis e prazeres da Corte, levando uma vida de tédio que destoava da miséria popular. (LEITE, 2014, p. 83-85).

Outro argumento poderoso desta alegoria é a causalidade entre a existência do cortesão parasita e a pobreza do povo. Voltaire repetia que a aristocracia francesa era onerosa ao Estado e sua sustentação sobrecarregava a população com altos impostos. Isso não só representava

43 um abuso cruel como impedia o povo de alcançar autonomia econômica, aproximando-o da mais amarga servidão.

A alegoria do cortesão parasita foi bastante utilizada no Brasil oitocentista, especialmente entre aqueles que defendiam o projeto de monarquia liberal democrática. Este segmento podia concordar com a existência de uma Alta Nobreza nos trópicos, desde que fosse meritocrática, vitalícia e simbólica, isto é, que não onerasse economicamente o Estado. Em paralelo, a alegoria os ajudou a se contrapor a adoção de títulos de nobreza hereditária com pensões agregadas. De todo modo, a desigualdade social se justificava pelo esforço individual e a soma das conquistas pessoais é o que torna a nação mais próspera.

O rei dessacralizado

A vertente liberal democrática sustenta um modo laico de lidar com a esfera política que atinge também a figura do rei. O paternalismo monárquico comum na cultura da Ordem é repudiado. “O monarca não é Senhor, não é o Pai, mas sim o primeiro magistrado da República” – diz o editorial do periódico Revérbero Constitucional Fluminense. (Edição de 22 de janeiro, 1822, grifos meus.).8 A relação paternal dá lugar a um rei secularizado. Ainda assim, o tom é formal, moderado, respeitoso, diferenciando-se do clamor virulento que caracteriza o discurso jacobino.

Descentralização política e virtude republicana

Para aqueles que nasceram nos trópicos a Independência era a oportunidade de reclamar uma demanda colonial mais antiga: a soberania das câmaras locais, gradualmente solapada desde o século XVII, poderia agora ser reconquistada com a instituição de uma monarquia descentralizada. Afinal, regenerar o Brasil era também escolher que acertos do passado deveriam ser mantidos.

A defesa que os liberais moderados fazem da criação do cargo de juiz de paz é bem reveladora desta logica. Este posto é quase uma cópia do antigo cargo de juiz local das câmaras que, para desconforto das elites coloniais, fora substituído pelo juiz de fora, nomeado pela Coroa.

Todavia, em um momento marcado pela ojeriza ao “Antigo Regime”, estas reivindicações já não podiam ser justificadas por argumentos tradicionais da cultura monárquica portuguesa. Por isso se recorre ao liberalismo, às “luzes”, à virtude republicana:

44 “o eleitor do mundo rural, lentamente a partir da eleição do juiz de paz, será incentivado a cuidar dos assuntos públicos com o mesmo zelo utilizado em sua fazenda”. Ou seja: os novos tempos requeriam outro tipo de cidadão, ativo, participativo, não um súdito que obedece sem questionar. (COSER, 2011, p. 194).

O liberalismo democrático está sempre diante de uma porta entreaberta que leva à expansão do discurso no sentido da democracia plena. Durante os anos 1820 este grupo começa a se dividir entre “moderados” e “exaltados”, a época chamados de “republicanos”. Quando se atinge este estágio, já não se restringem à ideia de regeneração monárquica. A linguagem republicana já não quer regenerar, e sim romper, criar algo novo: o regime democrático.