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Montagem de Marina

No documento GRACILIANO RAMOS E O CINEMA EM DUAS VIAS (páginas 133-141)

3. Nas telas de Angústia

3.2. Presença e incorporação da linguagem cinematográfica

3.2.1. Montagem de Marina

O processo de montagem de Marina, que acontece desde os momentos iniciais do romance, em que o narrador-protagonista a caracteriza em múltiplos modos e com diferentes elementos, se dá em forma de fragmentos e de relações simbólicas, dentre as rememorações de Luís da Silva em três ocasiões: “pensava em Berta, na neta de d. Aurora e na rapariga do Cavalo-Morto” (p. 46). Duas dessas, lembranças da juventude: Berta descrita como a “primeira mulher de jeito com quem me atraquei” (p. 44) e a neta de d. Aurora como a mulher que ia ao cinema e, lá, tinha contato físico com os hóspedes da pensão e que, segundo julgamento de Luís da Silva, “com certeza fazia aquilo por hábito“ (p. 43). A rapariga do Cavalo-Morto, lembrança da infância, é a mulher que “não tinha decoro, amava aos gritos” (p. 43). Junta-se a isto, as denominações dadas à Marina: “sujeitinha vermelhaça” (p. 40), “lambisgóia!” (p. 40), “guenza!” (p. 41), “coisinha loura” (p. 41), “pequena estouvada” (p. 41), “vermelha como pimenta” (p. 43), “devia ser quente demais” (p. 43), “perua” (p. 45), “sirigaita” (p. 45), alguém de “cabelos de milho, unhas pintadas, beiços

vermelhos e pernão aparecendo” (p. 45). Ao censurar o comportamento de algumas mulheres, assim como associar tais características censuráveis à Marina, o protagonista está compondo a si próprio: um homem conservador e misógino, mas que sentia atração física por características que desprezava nas mulheres: “Aquilo devia ser uma pimenta. Passei a noite imaginando cenas terríveis com ela” (p. 46).

O cinema também aparece aqui, e não de forma gratuita, já que é, também, um signo do custo de vida – ir ao cinema tem seu preço, em vários sentidos. “Os níqueis amarrados como dinheiro de matuto. Pois, numa quebradeira assim, bonde, sorvete, cinema. E ainda faltavam a passagens de volta. A fita era tão comprida! A moça tinha as pernas frias” (p. 43). No início deste capítulo, o oitavo de Angústia, Luís da Silva descreve sua situação financeira como estável na época em conheceu Marina: “meus negócios iam equilibrados, os chefes me toleravam, as dívidas eram poucas” (p. 39). Ir ao cinema pode ser visto, aqui, como um signo do que acontecerá posteriormente com Luís da Silva, ao envolver-se com Marina e desestabilizar a vida financeira, por conta de compras relacionadas ao enxoval – utiliza as parcas economias e decepciona-se.

A caracterização de Marina a partir do julgamento do narrador-personagem continua no capítulo seguinte do romance, dessa vez utilizando o cinema de forma direta, através de fala atribuída àquela personagem. Luís da Silva também permanece relacionando Marina a outra personagem feminina da narrativa – mais uma vez, uma mulher que tinha hábitos considerados indecentes pelo protagonista:

D. Mercedes é uma espanhola madura da vizinhança, amigada em segredo com uma personagem oficial que lhe entra em casa alta noite. Possui mobília complicadíssima, passa os dias olhando-se ao espelho e polindo as unhas, metida num peignoir de seda, e quando mergulha na banheira, sente-se de longe o cheiro da água-de- colônia. Marina admirava-a com exagero, arregalando os olhos: - D. Mercedes é linda. Parece uma artista de cinema.

Eu me aperreava:

- Que tolice! Você elogiando uma tipa ordinária, uma galega de arribação que ninguém sabe donde saiu! Não está direito. Uma bicha feia e velha, um couro, um canhão! (p. 48)

Importante perceber que a referência comportamental, e mesmo para uma movimentação interna de Angústia, deixa de ser apenas o romance e passa a ser o cinema. A personagem feminina não é mais leitora exclusivamente de romances, como no século 19, mas também aquela que assiste a filmes. No caso de Marina, a literatura possível é a da “biblioteca das moças”. Quando Marina compara a personagem a uma artista de cinema, fica implícito um conhecimento prévio do cinema por parte dela, ou, mais do que isso, o quanto o cinema já era um signo de glamour na década de 1930 em Maceió. D. Mercedes é admirada por Marina porque era, segundo seu julgamento, “uma senhora vistosa, bem conservada, muito distinta. E rica. Tem filhos no colégio e manda dinheiro ao marido” (p. 49), sendo essas características próximas à imagem estereotipada de pessoas que trabalhavam com interpretação em cinema, ou seja, é bela, elegante e rica (de vida “fácil”). Na construção do entusiasmo de Marina em relação a D. Mercedes, um destaque para a condição financeira desta personagem, já que o trecho em que Marina trata da questão forma um período, curto e direto, dentro de toda a frase: “E rica” (p. 49). Tal apego de Marina à ostentação é um dos motivos que a leva a desistir de casar-se com Luís da Silva.

Luís da Silva assinala, ainda de forma depreciativa, outras caracterizações de Marina, ao constatar que ela era leitora da biblioteca das moças e de notas sociais e elenca mais alguns adjetivos para esta personagem: “frívola, incapaz de agarrar uma ideia” (p. 48), “estúpida” (p. 50), “peruinha, cabritinha desgraçada” (p. 51), “bichinha sem-vergonha” (p. 51), “burra!” (p. 51), “total: rua da Lama” (p. 51). O narrador elenca ofensas bastante misóginas, como visto acima, em que a personagem feminina perde a aura de perfeita. Luís da Silva sofre pelos defeitos que percebe em Marina e sofre mais ainda por ainda desejar tê-la, apesar de conhecer todos os seus defeitos. Ele a despreza, mas também, e principalmente, despreza a si mesmo por não ser capaz de tornar-se indiferente a essa mulher tão imperfeita.

Outro fragmento específico, localizado no primeiro capítulo do romance, também possibilita observar o quanto a montagem – isto é, a seleção e ordenação de determinados signos e sua consequente ressignificação pela soma/embate com outros signos com os quais são convocados a se relacionar (EISENSTEIN, 2002) –, está presente na obra, de forma elaborada e com apuro técnico na elaboração:

Em duas horas escrevo uma palavra: Marina. Depois, aproveitando letras deste nome, arranjo coisas absurdas: ar, mar, rima, arma, ira,

amar. Uns vinte nomes. Quando não consigo formar combinações

novas, traço rabiscos que representam uma espada, uma lira, uma cabeça de mulher e outros disparates. Penso em indivíduos e em objetos que não têm relação com os desenhos: processos, orçamentos, o diretor, o secretário, políticos, sujeitos remediados que me desprezam porque sou um pobre-diabo. (p. 8)

Nessa passagem, a montagem é explicitada pela transformação, subdivisão da palavra Marina em outros signos. A princípio, esta atitude por parte do narrador/personagem indica a confusão mental em que se encontrava, já que o presente nesta narrativa indica o tempo exatamente posterior ao crime que Luís da Silva é levado a cometer, devido a circunstâncias que ele relata posteriormente.

Ao elencar, ainda que em condições de consciência anormal, dentre outras, as palavras “arma”, “ira” e “amar”, Luís da Silva congrega os próprios significados destes vocábulos à personagem Marina. Para o leitor, esta (des)montagem de Marina em outros termos funcionará como prolepse, já que tem ligação direta com o que será narrado no romance, existindo uma espécie de sinopse da história; para Luís da Silva, porém, estas palavras são rememorações: o amor frustrado, a ira ocasionada por tal frustração, a arma que comete o homicídio. Em outro momento do romance, a prática deste “passatempo estúpido” (p. 9) se repete:

Juntava letras das palavras mais compridas e formava nomes novos. Esse exercício tornou-se em mim um hábito de que não me posso libertar. [...] Faço assim com os letreiros das casas de comércio, com os cartazes de cinema, com os títulos dos jornais e dos livros. Esse passatempo idiota dá-me uma espécie de anestesia: esqueço as humilhações e as dívidas, deixo de pensar. (p. 189)

Para este caso, não há indicação das palavras escolhidas para o exercício, mas o destaque acontece pela sugestão, mais uma vez, do cinema como atividade cotidiana ou algo comum em seus hábitos (ou nos hábitos da cidade, já que o narrador cita os cartazes de cinema) e, principalmente, por assinalar um movimento de repetição. Uma entre várias repetições do romance que, a despeito

do suposto desleixo na correção por parte do escritor, em decorrência da impossibilidade em fazê-la, por conta da detenção, evidencia a complexa teia estrutural e relacional de Angústia.

Além disso, a retomada do jogo de montagem/desmontagem do nome de Marina, em distintos momentos do romance, também indica um procedimento de montagem/desmontagem da trama de Angústia, em que nada se fixa, na medida em que o que foi anteriormente narrado pode ser, a qualquer momento, retomado e ressignificado pelo movimento do narrador, ilha de edição das imagens, ações, traços das personagens, tempos, espaços.

Em casos específicos, Luís da Silva faz observações sobre o próprio ato de estar na sala de cinema. Mesmo sem revelar necessariamente o que está acontecendo em tela, no sentido do contexto narrativo, pois apenas afirma que não vê a tela, o que pode ser interpretado tanto como uma desatenção ao que está sendo exibido, como permite a interpretação de uma suposta precariedade na projeção, já que Graciliano Ramos, em algumas crônicas (como vimos no segundo capítulo, entre as páginas 107 e 112), relata ter vivenciado a precariedade em alguns cinemas. O protagonista de Angústia comenta sobre a duração do filme e repete descreve o comportamento da personagem que o acompanhava. Além disso, o protagonista ressalta algo sobre o fazer cinematográfico que tem relação direta com a história que está narrando:

A neta emproava-se, a vaidade pingava do leque, do torgnon, dos olhos. Na sala de projeção a gente não via a tela. Horas horrivelmente cacetes, em que pedaços de duas pessoas se encontravam. Só uns pedaços, os outros estavam longe. As pernas da moça eram frias. Onde andaria o pensamento dela? (p. 121)

Uma construção em fragmentos, os “pedaços de duas pessoas se encontravam” (p. 121). Esta técnica, explanada pelo narrador como característica do cinema, é mimetizada e incorporada pela narrativa literária, como demonstrado na montagem de Marina e conforme afirmações diretas do narrador. Nos momentos iniciais do romance, quando Julião Tavares e Luís da Silva conversam pela primeira vez, este age de forma vacilante: “mostrou desejo de saber o que eu era. Encolhi os

ombros, olhei os quatro cantos, fiz um gesto vago, procurando no ar fragmentos da minha existência espalhada” (p. 53). Em outra ocasião, em que a personagem Julião Tavares passa a frequentar a casa de Luís da Silva, o protagonista relata características de outras personagens, seus amigos mais próximos, a partir do teor das opiniões de cada um: “as de Moisés são francamente revolucionárias; as minhas são fragmentadas, instáveis e numerosas; Pimentel às vezes está comigo, outras vezes inclina-se para Moisés” (p. 57).

A todo o momento esta característica se revela. Desde a formação de suas opiniões, enviesadas e, às vezes, contraditórias, até a própria estrutura de seu relato, sempre entrecortado por momentos anteriores de sua vida. Ele também cria fatos em pensamento, a partir de suas opiniões estilhaçadas, agora não mais uma subdivisão de Marina enquanto conceito, “arma”, “ira” ou “amor”, tal qual o passatempo relatado no início do romance, mas ativando outras sensações:

Veio-me o pensamento maluco de que tinham dividido Marina. Serrada viva, como se fazia antigamente. Esta ideia absurda e sanguinária deu-me grande satisfação. Nádegas e pernas para um lado, cabeça e tronco para outro. A parte inferior mexia-se como um rabo de lagartixa cortado. Mas eu não reparava na parte inferior, que tanto me perturbara: recebia as faíscas dos olhos azuis e desejava enxugar com beijos a saliva que umedecia os beiços um pouco grossos da minha amiga. (p. 73)

Antes de eu conhecer a mocinha dos cabelos de fogo, ela me aparecia dividida numa grande quantidade de pedaços de mulher, e às vezes os pedaços não se combinavam bem, davam-me a impressão de que a vizinha estava desconjuntada. Agora mesmo temo deixar aqui uma sucessão de peças e de qualidades: nádegas, coxas, olhos, braços, inquietação, vivacidade, amor ao luxo, quentura, admiração a d. Mercedes. Foi difícil reunir essas coisas e muitas outras, formar com elas a máquina que ia encontrar-me à noite, ao pé da mangueira. (p. 82 e 82)

Em ambos os trechos citados, o narrador-personagem imagina Marina em fragmentos, sendo cada um desses pedaços dos estilhaços um signo que constitui esta personagem. No primeiro caso, é interessante notar que há um direcionamento da atenção e do olhar, pois Luís da Silva nota um dos pedaços de Marina, a sua

parte inferior que se mexia como rabo de lagartixa cortado, mas é atraído e, consecutivamente, levado a observar os olhos e lábios da mulher.

Na segunda menção ao texto de Angústia, há ligação direta com a ideia de que “pedaços de duas pessoas se encontravam”, a que se referiu o protagonista, como destacamos anteriormente. Com esta afirmação, Luís da Silva revela uma característica que já era pertencente à cinematografia neste período, que foi a possibilidade de narrar uma história a partir da junção de fragmentos das imagens – não simplesmente a junção dos fragmentos, mas de imagens selecionadas para constituírem tais fragmentos. Isto é, em cinema, mostrar os pedaços de uma pessoa, ou objeto, ou cenário ou quaisquer outros elementos passíveis de participar do cinema como imagem, sendo esta focalização mais distante ou mais aproximada, estando ou não em relação a outros fragmentos de imagem, levando em conta a angulação de tais pontos de vista etc., são subsídios que constituem a montagem. Este dado, porém, não é algo intrínseco ao cinema, ou, melhor afirmando, o cinema não surgiu para esse uso e com essas capacidades. Em suas origens, a constituição da linguagem era, ainda, algo em processo. Os filmes eram muito mais uma extensão da capacidade narrativa do teatro, recebendo, por tal motivo, a alcunha de “teatro filmado” – pois os registros fílmicos se resumiam na disposição de uma câmera, a partir da visão do espectador, que capturava a dramatização sem variações neste ponto de vista. Apenas com a percepção, por parte de cineastas, de que cada enquadramento/ângulo de câmera teria uma função específica na narrativa, e dialogaria com outros enquadramentos e planos, formando sequências e cenas, que, por sua vez, dialogariam com outras sequências e cenas, levando em conta os tempos específicos em que tais diálogos aconteceriam, é que o cinema abrangeu suas possibilidades narrativas.

Ao mesmo tempo em que imagina as partes do corpo de Marina, sobretudo aquelas que estão relacionadas diretamente ao seu desejo, “nádegas, coxas, olhos, braços”, Luís da Silva se lembra das características da individualidade desta personagem, ora as que lhe traziam repúdio, como a fraqueza intelectual, ora as que lhe agradavam, como o fato de que a vizinha “era meiga, muito limpa. Passava uma hora no banheiro, e a roupa branca que vestia cheirava” (p. 82). Mas a montagem acontece com todas as peças e o narrador relata ter consciência deste dado, ao

afirmar “Logo que se juntaram para formar com o resto uma criatura completa, achei- os naturais, e não poderia imaginar Marina sem eles, como não a poderia imaginar sem o corpo” (p. 83). Isto é, a estrutura da personagem é criada em fragmentos, mas acontece que tais fragmentos se unem, montam-se, e formam um conceito mais complexo do que é a própria personagem.

Em outro momento, mais uma vez tendo o cinema como elemento central na construção “cênica”, a reflexão de Luís da Silva é a respeito do olhar, tanto no sentido da utilização dos olhos para enxergar imagens, como no sentido de tê-lo como instrumento intermediário para interpretar as informações recebidas:

Estive olhando sem ler os cartazes do cinema, entrei maquinalmente. O porteiro sabe que trabalho na imprensa e não pediu bilhete de ingresso. Na sala de projeção fiquei de pé, ao fundo, por baixo da cabina, sem ver a tela. Nunca presto atenção às coisas, não sei para que diabo quero olhos. Trancado num quarto, sapecando as pestanas em cima de um livro, como sou vaidoso e como sou besta! Caminhei tanto, e o que fiz foi mastigar papel impresso. Idiota. Podia estar ali a distrair-me com a fita. Depois, finda a projeção, instruir-me vendo as caras. Sou uma besta. Quando a realidade me entra pelos olhos, o meu pequeno mundo desaba. (p. 95 e 96)

O olhar é automático, isto é, a personagem olha rapidamente e sem atenção, não se detém às informações dos cartazes do cinema. Luís da Silva adentra a sala de cinema sem saber qual o filme está sendo exibido (mas pode, também, estar mentindo, ao afirmar que não sabe), o que para ele seria uma informação irrelevante, já que, mesmo dentro da sala, não está disposto a investir atenção na narrativa fílmica – e aqui não importa se existem problemas financeiros em sua vida, já que, como funcionário da imprensa, tem acesso ao cinema sem pagar. A explicação para tais atitudes se revela pela colocação final do parágrafo, ao afirmar que quando a realidade entra pelos olhos seu mundo desaba. Não prestar atenção nos cartazes, na narrativa e no rosto das pessoas é, também, uma forma de selecionar, através da omissão: de evitar que a realidade, de fato, lhe entre pelos olhos. É um indício de que, apesar de mostrar-se descontente com o que vê, ele compreende a serventia de sua visão e a utiliza para dar forma à sua narrativa.

No documento GRACILIANO RAMOS E O CINEMA EM DUAS VIAS (páginas 133-141)