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Roteiro: uma forma passageira

No documento GRACILIANO RAMOS E O CINEMA EM DUAS VIAS (páginas 44-48)

1. Traduttore, traditore

1.3. Narrativa como ponte: romance, filme e história

1.3.1. Roteiro: uma forma passageira

Mais um ponto de encontro entre cinema e literatura, em forma de texto narrativo, pode ser percebido na reflexão sobre o roteiro cinematográfico. Apesar de ser composto por signos verbais, o roteiro não é considerado um gênero literário, a despeito de alguns serem publicados em livros e sem as indicações técnicas de decupagem, assim como não é, ainda, filme, pois é colocado apenas como possibilidade de se tornar um. Esse texto, criado para ser utilizado pelos cineastas com sua transformação em imagens e sons, é definido pelo roteirista Jean-Claude Carrière (2008, p. 31) como “apenas uma forma passageira, destinada a se tornar ‘outra coisa’”. Carrière defende a impossibilidade de se trabalhar com alguns termos que a literatura utiliza sem maiores dificuldades e, com isso, aponta diferenças entre o texto literário (romance e outras formas narrativas) e o roteiro cinematográfico:

O cinema não é literatura. Isto me parece muito importante. A literatura é talvez o maior perigo que ameaça o roteiro, o cinema: é preciso que desconfiemos das palavras muito bonitas que são utilizadas, das frases muito bem construídas: elas não têm equivalência na tela; elas se referem a um outro registro, o do estilo escrito e não à linguagem visual (CARRIÈRE, 2004, p. 100)

sentimento, e a outras remetiam a situações específicas. Assim, ao relacionar o semblante à imagem de um prato de comida, uma criança morta ou uma mulher sensual, o espectador interpretava que ele estava com fome, triste ou demonstrando interesse em relação à mulher, por conta de uma relação simbólica entre as imagens.

Ou seja, para ele, cada meio mantém suas capacidades e especificidades, mas a literatura surge na discussão como ameaça à efetividade do roteiro. Os diálogos só acontecem, assim, com a observação e segregação de cada uma das áreas. Diferentemente do pensamento sobre a tradução enunciado por Haroldo de Campos (2006) ou Roman Jakobson (2007), para Carrière, há impossibilidade da transposição de informações estéticas da literatura para o cinema, através do roteiro, por aquela trabalhar com algumas formações frasais peculiares, construídas com o que ele chama de “palavras muito bonitas” e “frases muito bem construídas”, que não permitem uma tradução direta do meio verbal para o sonoro-visual. Algumas questões apontadas por Carrière, no entanto, são problemáticas, já que, mesmo uma ação escrita de forma bem definida e sem maiores ornamentações passa pelo crivo dos tradutores e, sendo assim, as leituras sobre um mesmo texto podem não coincidir. Além disso, a informação estética é algo inerente ao suporte, por tal motivo, quando há a adaptação de um romance ou conto ao cinema, o processo se dá através dessa leitura do adaptador e o que o espetador terá acesso através do meio sonoro-visual é uma nova informação estética, que dialoga com o texto literário que lhe deu origem, mas que não pretende sê-lo. A ideia de uma tradução direta, verdadeira ou exata, assim, é algo que não se sustenta, que não resiste a um exame minucioso.

Além do mais, segundo os preceitos da tradução com os quais trabalhamos anteriormente, a partir da ação do tradutor, quaisquer literaturas, inclusive as do gênero lírico, podem ser traduzidas e podem instigar a cinematografia. Obviamente, como anunciou Jakobson (2007), o trabalho com signos estéticos acarreta certa complicação, mas isso não torna tal transposição um trabalho impossível de se realizar. Se a linguagem da obra tiver indicações herméticas, inexatas, oníricas ou “complicadas” – usando o termo jakobsoniano – para serem visualizadas ou transformadas em roteiro, elas podem ser levadas em conta no momento da tradução para a construção do discurso visual ou sonoro da obra. Podemos pensar a partir de um trecho do romance Vidas secas, que está presente na adaptação fílmica de Nelson Pereira dos Santos: “O menino mais velho esfregou as pálpebras, afastando pedaços de sonho” (VS, 2007, p.14). Na película aparece apenas o menino com a mão nos olhos, gesticulando e bocejando, inexistindo qualquer referência direta a “pedaços de sonhos”. Para a criação do roteiro cinematográfico o trecho da ação é priorizado (e era isso o que Carrière enfatizava), mas os realizadores vão além e não

ignoram a metáfora, já que construções de aclimatação e características psicológicas como essas são trabalhadas pelo cinema tanto pelas ações, como também com recursos de luz e cor, sombras, enquadramentos e angulações, o foco, trilha sonora, tempo de execução de cada take etc. A informação estética de Graciliano Ramos não foi anulada porque os “pedaços de sonhos” não foram materializados em uma suposta tradução direta, tampouco essa espécie de desvio ou estranhamento na linguagem, que beira o fantástico, está totalmente ausente da narrativa fílmica, pois, como é possível verificar nesse filme de Nelson Pereira dos Santos, algumas situações técnicas são criadas pelo cinema na tentativa de traduzir determinada atmosfera que o romance permite – sobretudo a partir da fotografia superexposta e dos elementos acústicos escolhidos para o desenho de som. Ou seja, como indica Campos (2006), conforme discutimos anteriormente, há a possibilidade, também, de se traduzir o tom do texto pelo cinema.

Assim, admite-se que há algumas questões que devem ser priorizadas na escrita do roteiro, mas afirmar categoricamente que a literatura é inimiga do cinema é algo que não se sustenta, levando-se em consideração, sobretudo, todos os diálogos entre essas duas formas artísticas. No campo do roteiro, inclusive: sabe-se que quando o cinema se tornou uma indústria em ascensão, alguns escritores foram recrutados pelo cinema para atuarem como roteiristas e também se interessaram em colaborar com suas técnicas e histórias para roteirizar filmes. Tiveram que passar, eles também, por adaptações, já que o escritor de roteiro necessita dominar as técnicas e os elementos específicos do cinema. Obviamente, uma escrita clara e de fácil leitura ajuda na imaginação do que será realizado, mas é fundamental que o roteirista “pense cinematograficamente”. Nenhum desses dois aspectos, porém, inviabiliza o diálogo com autores e obras cujas linguagens sejam criativas, pois os preceitos da tradução desses textos e dos diálogos intersemióticos – e escrever um roteiro adaptado já é iniciar essa intersemiose – reconhecem suas dificuldades. A partir dessa consideração da semiose enquanto movimento e ação dos signos, temos também o conceito de Haroldo de Campos, que denomina o processo de tradução de textos criativos como recriação:

Parece-nos que esta engendra o corolário da possibilidade, também em princípio, da recriação desses textos. Teremos, como quer

Bense, em outra língua, uma outra informação estética, autônoma, mas ambas estarão ligadas entre si por uma relação de isomorfia: serão diferentes enquanto linguagem, mas, como os corpos isomorfos, cristalizar-se-ão dentro de um mesmo sistema (CAMPOS, 2006, p. 34).

Se a recriação existe como leitura crítica do original, os sentidos que ela terá em sua nova roupagem vão depender da ação direta do adaptador/tradutor. A base original será uma guia, pela qual quem está adaptando optará seguir ou não, de acordo com o que julga ser coerente com seu objetivo de se aproximar ou se afastar do que é proposto esteticamente pelo original. Nesse sentido, refletindo sobre os questionamentos feitos por Jakobson (2007) no final de seu texto a respeito da tradução, poderíamos sugerir que a procura por um diálogo com o texto original não é um fator totalmente refutado pelos tradutores, assim como pelos cineastas, no caso de adaptações cinematográficas. Tal busca, porém, acontece dentro de um limite de leituras do adaptador, assim como pelas peculiaridades do processo de tradução – incluindo as aproximações e especificidades dos suportes.

As reflexões aqui elencadas a respeito da tradução, como se viu até o presente momento, contemplam em maior ou menor grau parte dos estudos em níveis interlinguais, intralinguais e intersemióticos (no sentido indicado por Jakobson, de meios verbais a meios não verbais), assim como à ideia de tradução como crítica, abordada por Haroldo de Campos; sendo a ênfase maior no nosso trabalho pensar a relação entre literatura e cinema. O que se tem, porém, é um número relativamente extenso de estudos6 sobre adaptações da literatura ao cinema e pontos de vistas

divergentes de abordagem, o que indica, sobretudo, um desenvolvimento na forma de encarar a matéria, mas raras abordagens sobre o movimento contrário, isto é, a propósito da incorporação do cinema pela literatura, sem maiores especificações.

Como um de nossos objetivos principais na presente pesquisa é indicar como Angústia (1936), de Graciliano Ramos, tem no cinema um aporte para construção

6 Basta que lembremos, aqui, de alguns dos trabalhos sobre adaptação cinematográfica de

textos literários citados anteriormente, como George Bluestone (1957), indicado como uma das primeiras incursões no tema; Randal Jonhson (1982), que apesar de ser estadunidense, foi um dos primeiros estudiosos com texto publicado no Brasil sobre adaptação; Ana Maria Balogh (2005) e a reunião de textos de vários estudiosos, organizados por Tânia Pellegrini (2003), sendo esses dois últimos exemplos de experiências nacionais na questão. Além disso, há a constatação indicada na introdução da presente tese, em que, a partir de buscas na web, o número de referências à “literatura através do cinema” é bem maior do que “cinema através da literatura”.

de sua linguagem, utilizaremos as contribuições realizadas por esses estudiosos sobre a tradução e adaptação na tentativa de elaborar nosso método de abordagem sobre a relação entre literatura e cinema, buscando compreender como os meios narrativos verbais traduzem os signos sonoro-visuais.

No documento GRACILIANO RAMOS E O CINEMA EM DUAS VIAS (páginas 44-48)