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MONTANDO A MOLDURA

No documento O reverso da cura = erro médico (páginas 57-62)

ENQUADRAMENTO CONCEITUAL: OBJETO DE ESTUDO

2. ERROS E EFEITOS ADVERSOS

2.1 MONTANDO A MOLDURA

O erro médico pode ocorrer em qualquer etapa do processo de tratamento ao paciente, que vai da consulta inicial até a alta. Durante a consulta médica é procedida a anamnése e o exame clínico. A anamnése é uma entrevista conduzida pelo médico com o objetivo de recordar os eventos relativos à saúde do paciente, e o exame clínico é composto pela observação dos sinais físicos do paciente, como apalpação e ausculta, e a cada retorno do paciente à consulta médica exames clínicos e complementações de anamnése devem ser refeitos.

Esse processo terapêutico pode incluir uma série de etapas que vão desde as prescrições medicamentosas, orientações comportamentais (alimentação, desempenho de atividades, vida sexual), exames laboratoriais para complemento diagnóstico, procedimentos invasivos (exames, cirurgias e microcirurgias, aplicação de medicamentos injetáveis, utilização de drenos e sondas), períodos de internação até chegar à alta médica, a qual, quando não prescrita no momento certo e com as indicações corretas de procedimentos pós-tratamento, pode vir a configurar um erro. O número de etapas, ou procedimentos, a que é submetido o paciente depende da moléstia e do grau de gravidade da mesma, e há indicações na literatura12 (MENDES et al., 2005) de que o risco de ocorrência de erros cresce à proporção do tempo de

12 Os autores fizeram um levantamento dos estudos sobre erros e eventos adversos publicados em

vários países do mundo, como Estados Unidos, Inglaterra, Nova Zelândia, Canadá. Apesar de notarem metodologias diferentes, que produz resultados diferentes na detecção dos erros e eventos adversos, em comum estes estudos são todos centrados em hospitais, demonstram que quanto maior o tempo de hospitalização, o número de procedimentos e o número de pessoas que manipulam o paciente, maiores os riscos de eventos adversos sobre o paciente.

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tratamento, complexidade e número de intervenções.

A fim de compreender os condicionantes do trabalho médico que podem levar ao erro, procederemos nossa análise estabelecendo dois tipos empíricos de erro: os erros diagnósticos e os erros de procedimento. Em cada uma das duas categorias de análise, iremos tipificar as causas de ocorrência dos erros, a fim de melhor compreender os condicionantes da ação dos sujeitos envolvidos: médicos, demais profissionais de saúde, pacientes e familiares.

A justificativa para fazer uma distinção entre os tipos de erro, estabelecendo as duas categorias, quais sejam o erro diagnóstico e o erro de procedimento, se dá pelo seguinte motivo: consideramos que erro diagnóstico é o erro típico do trabalho médico, no qual o profissional tomará contato com o paciente e irá, através do saber médico e das tecnologias disponíveis para o seu trabalho, verificar qual é o mal, ou a doença, que acomete o paciente. Uma vez que essa primeira etapa do processo terapêutico estiver errada, todo o restante do tratamento poderá ser comprometido. Estamos colocando essa consideração no sentido condicional, porque pode ocorrer13 de diagnósticos errados se utilizarem de terapêuticas que propiciam resultados favoráveis ao paciente.

O processo diagnóstico demanda uma avaliação acurada da gravidade do quadro clínico em relação à queixa do paciente. Nesse sentido, é preciso fazer uma distinção do tipo de atendimento prestado no momento da consulta; se o atendimento é emergencial, consultas rotineiras, ou se é uma consulta para investigação de uma

13 A fim de compreender como a medicina brasileira interpreta o erro diagnóstico, fizemos um

levantamento de artigos científicos nas revistas médicas sobre erros diagnósticos de diversas especialidades, observando orientações de especialistas para diagnósticos corretos, e quais os procedimentos ou interpretações, tanto de quadro clínico, quanto de exames complementares que poderiam levar aos erros diagnósticos. Chamou a atenção, um artigo sobre erro diagnóstico em pneumonia, no qual os autores revisam 129 prontuários e exames de raio x de pacientes atendidos em Pronto Socorro, com o diagnóstico de pneumonia. O artigo demonstra dos prontuários analisados, 48,8% apresentavam diagnóstico correto (63 prontuários), 48,8% apresentavam diagnóstico errado (63 prontuários) e 3 não foram identificados. A causa de erro foi dificuldade de leitura do Raio X. entre os normais dos 63 Raio x examinados e que tinham sido diagnosticado erradamente, 40 apresentavam resultados normais e 23 apresentavam outras moléstias e não pneumonia. Entre os prontuários que apresentavam diagnóstico errado, 8 pacientes foram medicados adequadamente, o que significa que apesar de a proposição diagnóstica ter sido equivocada não houve prejuízo ao paciente porque a conduta médica adotada era compatível com o tratamento da enfermidade corretamente diagnosticada. Mais informações podem ser obtidas em Morrone et al.(1987), Matos (2006), Amaral e Granzotti (2003), Silva Neto (2008), Castro (2008), Piovezan et al. (2008) e Mory et al. (2002).

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determinada moléstia. Em qualquer dos tipos de consulta é possível ocorrer erros diagnósticos, porém, as consultas emergenciais, devido à sua natureza, têm a função de resolver o problema quando ele se apresenta, enquanto os demais tipos de atendimento permitem uma melhor investigação do quadro clínico. Em qualquer caso, é função do médico verificar a necessidade de procedimentos complementares ou de encaminhar a um especialista, no caso de suspeita de moléstias que demandem um tratamento específico. Exemplificando: se um paciente procura o serviço de emergência, com uma crise forte de enxaqueca (migrânea), deve ser medicado, a fim de aliviar a dor e orientado a procurar o tratamento para a moléstia.

Muitos pacientes procuram o médico por uma determinada queixa que não se configura em moléstia de gravidade significativa (para aquele paciente, naquela manifestação), mas apenas em incômodos episódicos. Estamos falando de ‘mal- estares’ passageiros que desapareceriam, mesmo sem intervenções médicas, no caso de cessar a fonte de incômodo. É o caso de problemas ocasionados por algum excesso comportamental cometido pelo paciente (alimentação, exercícios, exposição ao sol, entre outros), reações ao estresse, exposição a algum elemento irritante no meio ambiente (ruído, insetos, cheiros, etc.). Nesses casos, o atendimento médico e a ação medicamentosa têm a função de diminuir o desconforto e promover o bem-estar sem a necessidade de maiores encaminhamentos.

Porém, mesmo nos casos dos males acima mencionados, se confundidos com uma moléstia de maior gravidade, o médico estará incorrendo em erro diagnóstico, caso se disponha a tratar o paciente sem uma investigação mais acurada; assim como o caso de um diagnóstico correto, mas cujas prescrições medicamentosas forem erradas, pode ser configurado como erro de procedimento. Estamos considerando como erros de procedimento todas as ações, ou ausência dessas, que causam prejuízo ao paciente durante o processo terapêutico. Esse tipo de erro é caracterizado por poder ser cometido ou ter a concorrência de outro ator envolvido no processo de tratamento, ou seja, uma vez que se trata de um procedimento terapêutico é comum que, durante sua execução, outros profissionais, além do médico, interajam com o paciente e entre eles, participando, portanto, do episódio que dá origem ao erro.

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tipos de fenômenos: por alguma situação envolvendo as relações de trabalho14, como excesso de trabalho, ausência de equipamentos ou estrutura de suporte para o apoio diagnóstico, grande tensão no ambiente de trabalho, ou seja, causas que envolvem a organização do trabalho ou podem ser ocasionadas por elementos que compõem o comportamento do médico e a sua relação com o trabalho. Assim, estamos denominando esses dois níveis como: 1) Situacional, que seria dado por condições de trabalho específicas, e 2) Subjetivo, que diz respeito a um comportamento, momentâneo ou corriqueiro, que no relacionamento com o outro ocasiona erros de julgamento. Essa distinção foi inspirada nos estudos sobre acidentes de trabalho de Dwyer (2006, p.141), que vai propor uma análise sincrônica e diacrônica das causas dos mesmos, observando que:

(...) os acidentes de trabalho ocorrem em três diferentes níveis de realidade social – recompensa, comando e organizacional – e no nível não social do indivíduo-membro. Em cada um desses níveis, empregados e trabalhadores lutam pelo controle e fazem acordos sobre a forma de administrar as relações de trabalho; como conseqüência, produzem-se bens e serviços assim como acidentes.

Nossa distinção em relação às denominações de Dwyer é estabelecida devido à peculiaridade da atividade que estamos observando, na qual a ação individual, com seus componentes emocionais, é constitutiva do trabalho, uma vez que se trata de uma função na qual a interação com o objeto de trabalho está envolto em subjetividade. A fim de compreender a produção social do erro em suas múltiplas dimensões, nos apoiaremos na fenomenologia de Schutz (1979). Uma das bases dessa teoria compreende que o homem vivencia o mundo social como um sistema de signos que internaliza e passa a ter como pressuposto na definição de sua situação. Isso lhe permite compreender e ser compreendido. O homem, enquanto ser social, por meio de um conjunto de condutas, estabelece estratégias de como lidar com as pessoas e as coisas de forma a obter, em cada situação, os melhores resultados possíveis. Cada indivíduo pertence a um determinado número de grupos sociais,

14 Como veremos no capítulo V apesar de a profissão médica ser a que melhor remunera, os médicos

fazem parte da categoria profissional que apresenta a maior jornada de trabalho, o que evidentemente pode se traduzir em erros devido à redução da capacidade física e mental para o trabalho.

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sendo que cada um desses tem para os seus membros um sistema comum de tipificações e relevâncias.Vejamos como Schutz compreende o sistema de relevância:

O sistema de tipificações e relevância compartilhado com os outros membros do grupo define os papéis sociais, as posições e o status de cada um. Essa aceitação de um sistema comum de relevâncias leva os membros do grupo a uma autotipificação homogênea. (...) Isso pode levar a conflitos de personalidade gerados, principalmente devido ao esforço de preencher as várias, freqüentemente incompatíveis expectativas de papéis correspondentes à participação do indivíduo nos diversos grupos sociais (SCHUTZ, 1979, p. 82- 84).

A partir das contribuições teóricas citadas, compreendemos que no nível situacional há problemas, como o tempo necessário para a consulta médica, o saber para interpretar resultados de exames diagnósticos e, até mesmo, do quadro clínico, a existência e o uso de equipamentos diagnósticos, os protocolos de atendimento e a existência de quadros epidêmicos que podem induzir determinados resultados. Nesse nível, estamos incluindo a capacidade técnica ou o montante do saber médico, uma vez que entendemos esse saber como um produto social, adquirido a partir de relações sociais.

No nível subjetivo, observamos a capacidade de avaliação e interação com o paciente. Essa relação social conta com a interferência de demais atores envolvidos no processo diagnóstico, como familiares e outros profissionais de saúde, cujo trabalho influencia no processo diagnóstico e terapêutico. Essa capacidade agora não é mais vista como técnica e, sim, por meio de habilidades sociais do médico, como a sua habilidade de comunicação com o paciente, durante a qual é preciso avaliar as condições sociais e subjetivas desse e com os demais colegas, podendo ser avaliado seu desempenho para obter a cooperação adequada. Assim, a interpretação equivocada da queixa do paciente pode constituir um importante elemento causador de erro e essa dificuldade de comunicação pode acontecer devido à incapacidade de compreender o universo cognitivo e cultural do outro, ou devido às condições subjetivas do próprio médico num determinado momento.

Na fala a seguir, obtivemos um exemplo de como fatores pessoais podem influenciar no trabalho, e os riscos que eles colocam:

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Minha irmã queria fazer uma lipoaspiração, era pouca coisa. Um colega que é cirurgião geral disse que faria, foi meio um favor, porque somos amigos, ele conhece minha família (...). Ele pretendia voltar para a residência e fazer plástica (...). Minha irmã ficou com ‘ondas’ nas pernas... (ela) ficou furiosa... Agora ela faz massagens. Ele fez com boa intenção (...). A gente tem de ficar na nossa área. Eu fico no meu canto, se não conheço o problema, não dou palpite. (Clínico Geral e Dermatologista).

Esse exemplo demonstra que qualquer médico pode avaliar equivocadamente a complexidade do trabalho de outro especialista, ou pressupor que a condução de um determinado caso é simples e esse mostrar-se complexo. Ao tratar o erro diagnóstico e o de procedimento, a questão dos limites do conhecimento e dos limites da atuação profissional deve ser recolocada. O saber superficial, ou especializado, é igualmente danoso, na medida em que o sujeito não conhece seu próprio limite de atuação, ou por um interesse qualquer, por exemplo, humanitário, financeiro, dispõe-se a atuar além de sua esfera de competência.

Apesar de estarmos tipificando as causas de erro médico, a exemplo da análise de tipo ideal de Weber (1992), estabelecemos, para fins de análise, dois tipos ideais de erros que serão analisados a seguir. Consideramos raro um processo, que leva ao erro, ter uma única causa. Nossa tipificação tem função exclusiva de compreensão e análise, uma vez que, inserido no mundo da vida, a complexidade desse leva o sujeito a reconstruir sistematicamente seus critérios de relevância que o levam a agir, havendo, múltiplas causas para a sua ação.

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