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Na concepção marxista-leninista das relações internacionais, oriunda da teoria do Imperialismo que prosperou a partir de 1945, a luta de clas­ 16 Sempre me admirei com a seriedade com que muitxxs brasileiros de esquerda levaram a serio essas divergências ideológicas bizantinas. Nos anas 50, ao dirigir o Departamento Cultural do Itamaraty, me intrigava a inimizade entre dois dos mais notáveis arquitetos brasileiros, atribuindo-a à natural rivalidade profissional. Qual não foi minha surpresa ao tomar conhecimento de que o motivo era apenas sef Afonso trotskista e Oscar estalinista... Nos anos 80, Luís Ignácio Lula da Silva pensou identificar seu partido com a Solidmmósti do líder operário polonês Walensa, mas foi repudiado pelo mesmo. Católico, nacionalista, anti- russo c anti-comunista, Walensa nada tinha de trotskista. Na esparrela dessa identificarão trotskista do movimento da Solidariedade polaca com o PT caiu nosso próprio SNI: ocu­ pando então a embaixada em Varsóvia, tive enfãticamcntc de repudiar um relatório do Itamaraty a respeito da situação polonesa, parcialmente inspirado em inf'orma<,'ões errónea* fornecidas por aquela agência governamental

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ses foi transferida para a esfera planetária. A idéia, aliás, já germinara na teoria do Lebensraum do fascismo e do nazismo, anterior á Guerra. As nações são as diferentes classes em conflito. Haveria, de um lado, nações ricas, desenvolvidas e capitalistas, nações da Europa (Kidental c America do Norte vivendo num estado de parasitismo internacional — que repre­ sentam a classe burguesa exploradora. Eram chamadas as nações que “possuem”: have nations. E haveria, do outro lado, nações pobres que representam o proletariado internacional: have not. iMas na aplicação da tese pelo marxismo-Ieninismo adaptado ao ambiente chinés, o mundo moderno é contemplado sob a forma de um conflito dc proporções gi­ gantescas entre o Ocidente industrializado, e a massa imensa das nações dos três continentes — o Terceiro Mundo — que se deveria unir sob liderança marxista, para levar adiante a revolução mundial e impor a Nova Ordem económica socialista.

Essa, em sua essência, a tese que, inicialmente capitaneada pela URSS, serviu posteriormente a Mao Dzedong para seus vôos de ambição paranóica, uma vez que a Rússia soviética já se enriquecera e industriali­ zara o suficiente, e tomara atitudes suspeitas de entendimento com o imperialismo euro-americano, para perder a fidelidade de uma parcela radical crescente do Movimento Comunista mundial. A linha chinesa colocou-se então, a partir da Conferência de Bandung e da Conferência Tricontinental de Havana, como alternativa válida para os mais exaltados. As concepções adocicadas e alaranjadas relativas ao “conflito Norte-Sul” constituem hoje o resquício dessa teoria que, conforme podemos consta­ tar, se enquadra nas velhas teses de Spengler sobre a “revolução mundial dos povos dc cor” e de Toynbee sobre a “revolução mundial do proletari­ ado externo”. Acrescente-se que, na teoria de um conflito mundial de classes transferido para o domínio das relações internacionais, encontra­ mos desde as posições amenas de um socialismo democrático pseudocris- tão (como na Teologia da Libertação da nossa CNB do B ou de Dom Helder Câmara), tendentes a resolver o conflito por meios pacíficos e Irgak — até a posição radical da esquerda revolucionária, representada pelos terroristas e guerrilheiros da Ação Popular ou do MR-8, para os quais, citando Mao, “o poder político é gerado no cano de um fuzil”... A

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tese hegclíana do Senhor e do Escravo é reconstruída de cabeça para bai­ xo: o escravo sc rebela c mata o senhor...

Como exposição mais clara dos princípios gerais da guerra revolucio­ nária de tipo maoísta, dominante nas décadas de sessenta c setenta, vak recordar a doutrina que encontrou sua mais perfeita formulação cm arti­ go, publicado em setembro de 1965, pelo então Ministro da Defesa e herdeiro presuntivo do camarada Mao Dzedong, o marechal Lin Piao. Para Lin Piao, “a tomada do poder pela força armada, a solução dos conflitos através da guerra é a tarefa central c a mais alta forma de expres­ são da Revolução”. A doutrina antecipava a extensão ao âmbito planetá­ rio da teoria, originada no Livrinho Vermelho dos pensamentos de Mao, relativa ao “cerco das cidades pelas áreas rurais”. Tomando o globo em sua totalidade, escrevia Lin Piao, “se a América do Norte e a Europa ocidental podem ser chamadas as cidades do mundo, então constituem a Ásia, África e América Latina as áreas rurais do mundo”. A Revolução mundial contemporânea apresentaria, conseqüentemente, o quadro de um cerco das metrópoles industriais do Ocidente pela áreas rurais do mundo subdesenvolvido tricontinental. Conduzida sob a forma de terro­ rismo e guerrilha, e segundo os princípios do próprio Mao c de seu discí­ pulo argentino Che Guevara, deveria esse tipo de guerra revolucionária ter como resultado a ruína económica, política e militar do Ocidente em virtude da “inexorabilidade das leis históricas”, tidas como “independentes da vontade dos homens”. Acontece que o próprio mare­ chal Lin morreu misteriosamente, ou executado, ou num desastre de avião de natureza suspeita, quando tentava fugir para a URSS após o fracasso de uma conspiração para derrubar o Grande Timoneiro.

O plano era, de qualquer forma, completamente irrealista. Para co­ meçar, na Argentina, Uruguai, Brasil c vários outros países latino- americanos, a população urbana já era maior do que a rural. Em seguida, as “cidades” industrializadas possuem uma superioridade técnica militar que, de muito, excede qualquer combinação possível de potências “rurais" subdesenvolvidas. Quando os americanos foram derrotados na Guerra do Vietnam, não pelo Vietcong, mas por sua própria opinião pública, vulne- tabílizada pela propaganda — uma vez que o conflito tomara o aspecto de tuna campanha colonial, injustificada — isso fez crer à “nova esquer­

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da” maoísta que era fácil eliminar seus adversários pela guerrilha e o ter­ rorismo. A suposição também não era válida. Os americanos só haviam empenhado uma fração diminuta de seu poder real de fogo. Mas a dou­ trina do comunismo rural foi responsável não só pelo horroroso genocí­ dio na Camboja, provocado por Pol Pot, um intelectual que se formara em Paris — que em certo momento ameaçou a própria sobrevivência do povo Khmer — mas outros do mesmo estilo na África, particularmente em Angola, Moçambique e na Etiópia sob o regime do sanguinário coro­ nel Mcngistu Haile Mariam. Na América Latina também conhecemos tentativas semelhantes de revolução guerrilheira aqui c acolá — na Gua­ temala; no Salvador (onde outro quase genocídio foi praticado); na Nica­ rágua com seus Sandinistas e seus padres promotores do Cristomarxismo da Teologia da Libertação; na Colômbia com o padre Camilo Torres, logo fuzilado; no Peru com seu sanguinário Sendero Luminoso; e no pró­ prio Brasil com a patética aventura do pateta capitão Lamarca, logo sufo­ cada. No momento em que escrevo, a guerrilha zapatista no estado me­ ridional de Chiapas, no México, também financiada por organizações católicas européias, a Miserere e a Caritas alemãs, e dirigida pelo bispo marxista Samuel Ruiz, constitui outro exemplo da ação.

A contradição resultava de uma circunstância do mundo moderno que não fora prevista, nem por Marx, nem muito menos por Lêninc: o empate nuclear. Mao Dzedong havia declarado que a bomba atômica era um “tigre de papel”. Em caso de conflito nuclear, poderia a China perder algumas centenas de milhões de seus cidadãos e ainda sairia mais populo­ sa do que seus possíveis inimigos, resolvendo ao mesmo tempo seu pro­ blema demográfico — uma teoria obviamente absurda. Ao suceder a Mao, o novo hierarca Dcng Xiaoping acolheu uma visão mais realista e mais aberta da situação internacional. Os partidos comunistas de linha chinesa, maoísta, foram abandonados à própria sorte.

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Lukács

Na vida comum, por mais que sejamos levados por nossas imagina­ ção, desejos e julgamentos (o wishful-thmking dos anglo-saxõcs), costu­ mamos dobrar-nos aos fatos. Os que não o fazem, são considerados alie­ nados. Há povos, como os anglo-saxões, os neerlandeses e os suíços, que construíram sua prosperidade sobre o pragmatismo responsável. Possuem um extraordinário respeito pela realidade empírica, objetiva; e reconhe­ cem que aquilo que os psicólogos franceses denominam la jònction du récl representa uma necessidade existencial. Rousseau, Hegel e Marx trouxe­ ram no entanto, para a vida coletiva, uma postura de grande ambigüidade no relacionamento entre teoria e realidade fatual ou prática de ação — o que teve as mais lastimáveis conseqüências sobre a história mundial. Rousseau, Hegel e Marx poderiam ser classificados como filósofos ro­ mânticos — aqueles em que a emoção afeta o raciocínio. Acredito que isso explicaria o sucesso do Marxismo em nosso meio intelectual, cujo pragmatismo pode ser posto em dúvida.

Hegel postulou que o atual e o racional coincidem. A dialética foi elaborada por Marx e por seus sucessores de tal modo que se tornou pos­ sível a completa confusão de categorias, tão decisivamente distinguidas por Kant quando separou o Sein e o Sollen — aquilo que é e aquilo que deveria ser. A confusão atingiu o máximo de obscuridade metafísica no pensamento de Jorge Lukács, provavelmente o maior filósofo marxista deste século e fiel estalinista. Em sua já citada obra sobre Aí Principais

Correntes do Marxismo, Kolakowski encabeça o capitulo sobre Lukács com

o título “A Razão a serviço do Dogma”. Na verdade, o pensador húngaro traduziu em termos abstrusos de filosofia moderna o credo quta absurdum

da fé escolástica — criando uma metafísica mais espessa do que a gororo­ ba cozinhada durante a decadência do Tomismo. O conceito tradicional de Verdade — o nosso conceito de senso comum que define a Verdade como uma correspondência lógica do julgamento com a realidade empíri­ ca, objetiva, percebida pelos sentidos e a razão — é inteiramente subver­ tido no processo de fusão entre theoriae praxis. Lukács manda às favas a

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correspondência. A Verdade não é mais aquilo que a maioria de bom senso admite ser verdadeiro: torna-se relativa à classe social. Lukács ter­ mina afirmando que a verdade é aquilo que Stáline diz ser a verdade. Os fascistas italianos também gritavam: “Mussolini tem sempre razão”. Acontece que nem Lukács, que era filho de um rico banqueiro judeu de Budapeste, nem os outros marxistas, inclusive os nossos intelectuários brasileiros, todos eles oriundos da classe média, explicam como podem os intelectuais ideológicos escapar do condicionamento de classe. A posição do filho de banqueiro húngaro é, nesse ponto, vaga e ambígua. Ele nega a concepção pragmática da Verdade, alegando que o pragmatismo torna o homem a medida de todas as coisas, mas não o pode transformar diale- ticamente — ao mesmo tempo em que se vale de argumentos pragmáti­ cos para chegar a tais conclusões. O Marxismo, afirma Lukács, não decla­ ra ser a Verdade relativa, mas argumenta que o significado de “diferentes verdades” só se torna aparente no processo social. O pensamento é um fator do progresso da História. A História é o desenvolvimento de "'formas de objetividade”. O que é que isso quer exatamente dizer não nos parece de modo algum preciso e claro para nós, burgueses formados no método cartesiano. Se nada é verdadeiro , curvamo-nos à palavra dos líderes operários. Podemos exemplificar: para as classes trabalhadoras russas ou polonesas, que pareciam bem alimentadas pois bebem vodea e comem muita batata, lingüiça c chucrute, a Verdade é que a agricultura socialista é eficiente. Ocorre que essa “Verdade” também afeta muito intelectual brasileiro. Os fatos constatados na perspectiva da consciência de classe burguesa é, no entanto, que a agricultura socialista, não obstante sustentada por 40 ou 50 milhões de camponeses, não conseguia alimentar seus respectivos povos. Tornava-se necessária a importação maciça de cercais produzidos por apenas oito ou dez milhões de agricultores capita­ listas da Austrália, Argentina, Canadá e Estados Unidos. Os fatos podem ir ao diabo...

Lukács fora discípulo de Dilthey e Wilhelm Windelbrand, fundador da Escola de Baden. Mas a ortodoxia estaliniana tardia obviamente com­ prometeu o que de neokantismo podia haver em seu filosofar. A “unidade do sujeito e do objeto” no processo de conhecimento segundo Kant — que constitui o cerne do discurso hegeliano-marxista de Lukács — cor­

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responde à “unidade da teoria e da praxis” (idéia que também entusias­ mou nossos “teólogos da libertação”). Com seu peculiar desprezo pela lógica, o húngaro não esclarece os limites entre o objeto coletivo social ou humano, que se confunde com o subjetivo, e o objetivo natural, não- humano, físico ou cósmico. Em sua obra História e Consciência de Classe, Lukács criticou o empirismo. Enquanto nos mantemos numa postura empírica, não podemos entender a totalidade da História. O empirismo seria apenas sinal de imaturidade da consciência humana. Condenando a dialética da natureza de Engels e a teoria da “reflexão” de Lênine — pelo que, posteriormente teve de retratar-se — o “filósofo” chega à conclusão que, quando os fatos não correspondem à teoria, “os fatos que se da­ nem”. Se o proletariado está sempre com a razão — uma vez que está de posse da “totalidade” histórica na teoria e na prática, e como o PC é o partido que interpreta a vontade do proletariado, sendo o Secretário Ge­ ral do partido a sua personificação — conclui-se que a verdade seria aquilo que Stáline afirma ser verdadeiro... Mas a resposta não é fácil de encontrar. Sicofanta da pior espécie, Lukács sempre conseguiu manter-se, com acrobacias de circo, nas boas graças do Secretário Geral do Partidão. Mas, quando Stáline morreu, não soube colocar-se corretamente diante da totalidade da História em sua própria pátria. Por ocasião do levante de Budapeste de 1956, aderiu à revolta. A alternativa era entre a classe ope­ rária húngara e o SG soviético, já então Kruschev. Foi um dos poucos que escaparam com vida do dilema. Desde então preferiu dedicar-se à filosofia estética, até morrer...