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REVOLUÇÃO — DEFINIÇÕES E TEORIAS

ntre todos mitos políticos do século XX, nenhum se tem talvez reve- lado tão impressionante e historicamente ativo quanto o Mito da Revolução. Como fenômeno social, as Revoluções não têm sido suficien­ temente estudadas, independentemente de seu conteúdo ideológico, so­ cial ou econômico, ou como acontecimento histórico determinado em lugar e época. Muitos autores estenderam-se sobre as Revoluções ingle­ sas, a Revolução que assegurou a Independência dos EUA, a Revolução francesa, a Revolução russa, a Revolução chinesa e as outras muitas, em países menos importantes, que de tumulto e sangue encheram os séculos XIX e XX. Outros se debruçaram sobre os conflitos religiosos, nacionais ou de classes que conduziram a esta ou aquela transformação de base. Poucos, porém, investigaram o fenômeno em si, o processo revolucioná­ rio do ponto de vista sociológico e de filosofia política, e do ponto de vista psicológico. Entretanto, o Mito da Revolução existe como arquétipo dinâmico de transformação violenta, quaisquer que sejam os objetivos políticos ou sociais dos revolucionários. Como bem acentua Raymond Aron ao apreciar o tema em seu relevante L'Opium des Intellectuels, possui o mito um significado ora complementar, ora oposto ao do Progresso, que inspira a civilização ocidental desde o século XVIII.

Em nossa época ou, peio menos, na época imediatamente passada, adquiriu o mito romântico da revolta um sentido transcendente, como a forma mais violenta e radical de transformação do mundo, no impulso humano universal pelo desenvolvimento, a evolução e o progresso. Ser da esquerda revolucionária sempre constituiu um motivo de glória para o intelectual, um imperativo de bon ton para o artista cabotino e uma ânsia libidinosa para o jovem. Salientou Romain Rolland que a palavra Revo­ lução “sempre exerceu uma influência prestigiosa sobre a jovem geração”. Estaríamos no meio de uma “revolução mundial” — idéia que é familiar aos espíritos mais avançados, desde o período entre as duas guerras. Fo­

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ram dois dos mais prestigiosos filósofos da história em sua época, Spen- gler e Toynbee, que proclamaram essa situação — uma revolução cujos fins não podemos, entretanto, vislumbrar nos programas e receitas ofere­ cidas à nossa perplexa consideração. O ímpeto desagregador alcançou certas alas da Igreja, sem que se consiga exatamente entender o que se esconderia nessa “revolução cristã” que, como promessa, já não se tenha integralmente realizado há mil novecentos e tantos anos...

Numa carta a Bernstein de agosto de 1882, escreve Friedrich Engels com ironia sobre a mania revolucionária dos “povos românticos”, ou o que hoje chamaríamos os Latinos. Estranho, acentua ele: “todos os revo­ lucionários românticos queixam-se de que todas as revoluções que fize­ ram foram sempre para o benefício de outras pessoas. Isso é facilmente explicável: é porque sempre se sentiram impressionados com a frase 'revo­ lução'. E no entanto, logo que uma baderna rebenta em qualquer lugar, todo o mundo revolucionário romântico se sente arrebatado sem nenhum senso crítico em relação ao evento. A mística da Revolução é de fato po­ derosa, tão poderosa que domina o século XX como a mística da evolução dominou o século XIX — embora haja indícios de que tenha entrado em declínio a partir da década de 80. Nossa idade é revolucionária, consubs­ tanciando a transmutação e ambivalência de todos os valores anunciada por Nietzsche. Fruto da rebordosa liberal-romântica de origem jacobina, que tem perturbado a alma do Ocidente com sua ideologia contraditória e violenta e se estendido por todo o mundo africano e oriental, o propósi­ to da Revolução é criar heróis e mártires, vilões e traidores, barricadas e hinos marciais, terroristas da bomba e da pistola, multidões embriagadas de ódio e de entusiasmo, correndo a esmo sob o tremular de bandeiras vermelhas ou marchando, disciplinadamente, atrás de agitadores histéri­ cos, para derrubar bastilhas e quebrar algemas, e, logo em seguida, re­ construir os campos de concentração e forçar mais estreitas correntes policialescas em inimigos reais ou supostos. É toda uma legenda épica e lírica. Os episódios enchem textos escolares, fazem arvorar bandeiras rubras, cerrar os punhos zangados e levantar horrendos monumentos de pedra, arcos de triunfo e placas de bronze. Fazer revolução é pregar teses contra o Papa no portão da igreja de Wittemberg, como fez Lutero em

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é derramar no mar o chá importado da Inglaterra, como os americanos no Boston Tea Party de 1773; é colocar a cabeça decapitada da princesa de Lamballe numa ponta de lança e passear, com o troféu, diante da janela da rainha. Os franceses, entre os que mais contribuíram para a vulgariza­ ção do mito, não se sentiram satisfeitos com a carnificina de 1789 a 94, e recomeçaram o exercício nas Trois Glorimses de 1830, e novamente em 1848 e 1851 e 1871 — só que, neste último caso, as barricadas da Co­ muna foram seguidas pelos paredões de fuzilamento do Père Lachaise. Os

événements de maio de 1968 em Paris talvez tenham sido a derradeira e

absurda manifestação histérica dessa tensão juvenil incontida na furia

jrancese. Insistamos no caráter simbólico decisivo de tais eventos.

Sempre implica o mito revolucionário em liquidar com a autoridade tradicional constituída, substituindo-a pela própria. É um mito edipiano. Trata-se de matar o Pai. Iremos percorrer, em outra oportunidade, esse tema arquetípico até seu final teológico em nossa própria época. Isso, muito embora tais movimentos revolucionários sempre hajam conduzido a uma forma de tirania mais opressiva do que a do regime anterior. O Absolutismo de Carlos Io sempre tinha o Parlamento com quem se dispu­ tar, mas foi substituído pela ditadura de Cromwell em que o exército dispensou Lordes e Comuns, tendo seu comandante fechado as portas da Casa com palavras de desprezo. Os exaltados jacobinos de 1793 decapita­ ram a família real. Acabaram guilhotinando-se uns aos outros; e os que sobraram foram arregimentados no Grande Exército de Napoleão para tentar impor, à custa de um milhão de mortos, o domínio imperialista francês sobre toda a Europa. Quanto aos russas das jornadas heróicas de Petrogrado, o maior número foi trabalhar e morrer no Arquipélago Gu- Iag... Hoje, os que aplaudiram o jovem estudante metamorfoseado em guerrilheiro nas florestas de Cuba, emigram em massa graças a balsas improvisadas em direção à península da Flórida.

O que é então, exatamente, a Revolução? Prossigamos na tentativa de definir o termo. Há revoluções políticas, há revoluções sociais, revoluções culturais, revoluções científicas e tecnológicas, revoluções econômicas, revoluções espirituais. Há revoluções internas e revoluções contra opres­ sores externos. A expressão pode ser malbaratada. A mística da Revolu­ ção, entre nós e no Terceiro Mundo, representa em geral a herança rc>

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mântica da Revolução francesa que a Revolução russa reviveu. No âmbito político, estamos subjugados por essa mitologia espúria. Ela configura a exaltação mórbida do ímpeto utópico, a aceleração frenética da noção de progresso e a expressão do protesto antinômico — de dissidência e de contestação — que, nos últimos séculos, tão bem define nossa civilização ocidental: o triunfo do espírito rebelde de Lúcifer. Na Revolução, a mente utópico-progressista descobre a panacéia universal para suas expec­ tativas mais alvissareiras: a Salvação pela política. A Revolução deverá suprimir definitivamente os males deste mundo imperfeito que nossa sociedade, outrora mais paciente e resignada, considerava inevitáveis e inerentes à própria condição existencial que o Deus Pai nos impôs.

Fomos, na América Latina, particularmente sensíveis ao conteúdo épico, romântico, anárquico, desordeiro, quase carnavalesco do termo. Faz-se “bagunça” na infância, arruaças na adolescência, revoluções na idade adulta: é prova de machismo. Sobre o mito revolucionário na Amé­ rica Latina uma das melhores obras é a de Carlos Rangel, de que tratei em meu próprio livro A Ideobgia do século XX. Conheci um senhor respei­ tável, pai de família, católico praticante e com a perspectiva de uma bela carreira, que se empenhou em todas as revoluções, golpes e conspirações dos anos 30, 50 e 60. Ora a favor, ora contra. Sem qualquer consistência ideológica. Indo do socialismo para o monarquismo, dali para o integra- lismo e as simpatias nazistas, depois para o udenismo antigetulista, ainda mais tarde para o brizolismo, na base exclusiva do espanholismo: Hay

gobiemo? Soy contra! Pelo simples prazer da baderna. Em nosso continente

de adolescentes nervosos cuja passagem normal para a idade adulta, ao sair da autoridade patriarcal familiar, tem que necessariamente passar pela excitação revolucionária da virilidade descoberta, a Revolução transfor­ mou-se num “rito de passagem” essencial à vida política. Qualquer quar­ telada, pronunciamento, levante, golpe de estado, motim de rua ou mani­ festação de “caras pintadas” é logo batizado com o título augusto, e rara a sucessão presidencial que também não comporte uma revolução. O nosso austero Imperador Pedro II comparou certa vez a América Latina a um relógio de precisão que faz duas revoluções por dia.

O mesmo se pode dizer das que provocaram os “ventos da mudança” nas antigas colônias européias da Ásia e da África onde, quase que invari-

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avclmente, a “libertação” do jugo estrangeiro abriu-se para uma ditadura indígena. Ou então para a substituições de franceses, ingleses, belgas ou portugueses, por russos e cubanos. O fenômeno é efetivamente cíclico e obedece a uma espécie de padrão arquetípico.

O termo “revolução” é tão altamente apreciado pelas almas líricas e agitadas que, no México, se conseguiu esse prodígio lógico de “institucionalizar” a Revolução: o país é governado há 70 anos por um partido único, o PRI, “Partido Revolucionário Institucional”. Talvez seja esse o segredo do sucesso da oligarquia mexicana, que usou a mística revolucionária para efeito externo e praticou a tirania institucionalizada para efeito interno. Isso lhe permitiu legitimar-se. Chegou mesmo a apa­ recer como um fator esclarecido e progressista entre os países anárquicos da área, granjeando simpatia e admiração dos meios supostamente bem informados da mtelligentzia ocidental. Uma barretada para esses farsan­ tes! Uma barretada sobretudo à lucidez e sabedoria de seus chefes que, finalmente, se deram conta da impossibilidade de continuar no jogo da corrupção e da incompetência e, depois do governo do supercorrupto Lopez Portillo, tiveram o talento de levar ao poder de la Madrid e Salinas de Gortari que tentaram abrir e privatizar a economia mexicana e condu­ zir seu país ao acelerado desenvolvimento que o integrará à comunidade norte-americana.

Mas foi todo o mundo moderno que se embalou no Viva à Revolu­ ção! Viva la Muerte! Allons Enfants de la Patrie! “A Internacional será o gênero humano e nossas primeiras balas para nossos próprios generais”! Os terroristas viraram vedetes internacionais e não se passa um mês que uma revolução qualquer não derrube um governo qualquer, em algum vago e desconhecido estado da África, da Ásia ou da América Central: um sintoma que parecia grandemente ominoso antes da queda do Muro de Berlim, pois anunciava o próximo triunfo da mais negra tirania — tanto assim que duas terças partes da humanidade, três bilhões de indivíduos já viviam sob regimes totalitários. O annus mirabilis de 1989 parece, final­ mente, indicar uma mudança de expectativas...

Ao agradecer o prêmio da Fundação Tocqucville que o distinguiu, em 1989, o notável intelectual mexicano Octavio Paz observou que: “O sinal de nascimento da idade moderna é a idéia de Revolução. E uma

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idéia que só podia surgir em nossa época, pois é herdeira da Grécia e do cristianismo, isto é, da filosofia e do anseio de redenção. Em nenhum outro período histórico a idéia de Revolução teve esse poder de atração magnética. As outras civilizações e sociedades passaram por imensas mu­ danças, tumultos, quedas de dinastias, guerras fratricidas, mas somente as grandes mutações religiosas podem ser comparadas a este nosso fascínio ante a Revolução. É uma idéia que, durante mais de dois séculos, hipno­ tizou muitas consciências e várias gerações. Foi a Estrela Polar que guiou nossas peregrinações e o sol secreto que iluminou e acalentou vigílias de muitos solitários. Nela se conjugaram as certezas da razão e as esperanças dos movimentos religiosos. Desde o momento em que aparece no hori­ zonte histórico, a Revolução foi dupla: razão feita ato e ato providencial, determinação racional e ação milagrosa, história e mito. Filha da razão em sua forma mais rigorosa e lúcida: a crítica, a imagem dela é a um tem­ po criadora e destruidora; melhor dizendo: ao destruir, cria. A Revolução é esse momento em que a crítica se transforma em utopia e a utopia se encarna em alguns homens e em uma ação. O descenso da razão à terra foi uma verdadeira epifania e como tal foi vivida por seus protagonistas e, depois, por seus intérpretes. Vivida e não pensada”. A Revolução, pros­ segue Octavio Paz nessa peça admirável como síntese de todo o tema, “é a volta ao tempo de origem, antes da injustiça, antes desse momento em que, diz Rousseau, ao marcar os limites de um pedaço de terra, um ho­ mem disse: isto é meu. Nesse dia começou a desigualdade e, com ela, a discórdia e a opressão: a história. Em suma, a Revolução é um ato emi­ nentemente histórico e, não obstante, um ato negador da história: o tem­ po novo que instaura é uma restauração do tempo original. Filha da his­ tória e da razão, a Revolução o é do tempo linear, sucessivo e irreversível; filha do mito, a Revolução é um momento do tempo cíclico, como o giro dos astros e a ronda das estações. A natureza da Revolução é dual mas não podemos pensá-la a não ser separando seus dois elementos e descar­ tando o mítico como um corpo estranho... e não podemos vivê-la a não ser enlaçando-os. Pensamos a Revolução como um fenômeno que res­ ponde às previsões da razão; a vivemos como um mistério. Neste enigma reside o segredo de seu fascínio. A idade moderna rompeu o antigo vín­ culo que unia a poesia ao mito apenas para, imediatamente depois, uni-la

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à idéia de Revolução. Esta idéia proclamou o fim dos mitos — c assim sc converteu no mito central da modernidade.

Como exprimiu Octavio Paz no texto acima, o problema do mundo moderno é precisamente este. A idéia surge aqui e ali, sobretudo ao final da i r Guerra Mundial, quando as brutalidades e morticínios inéditos na história despertam os espíritos mais lúcidos ou místicos para a realidade da “opressão e liberdade”, como na obra dessa estranha pensadora que foi Simone Weil. Sem se admitir como judia, ou como socialista, ou como francesa, ou como católica — ela sentia profundamente, em suas contra­ dições, os desafios da idade moderna em que “as coletividades não pen­ sam” mas, no entanto, “pensam na revolução, não como uma .solução aos problemas colocados pela idade atual, mas como um milagre que dispensa de solucionar os problemas”. E a pergunta que, legitimamente, podemos de fato fazer é saber se a Revolução industrial e científica, a revolução capitalista, a revolução liberal “modernizante” em seu mais alto estágio, conseguirá sobreviver às perplexidades que, por toda a parte, acumula na vida, na cultura e no espírito do homem.

Mas a Revolução pode também constituir um ténômeno histórico de profundas conseqüências políticas, sociais e econômicas — sem que haja necessariamente violência e subversão de toda a autoridade. Neste sen­ tido, cia significa transformação rápida, mudança na Visão do Mundo, conversão religiosa, enantiodromia, como o psicólogo suíço C.-G. Jung emprega o termo de Heráclito. Fala-se na Revolução copemicana, para indicar uma teoria científica que reconstituiu toda a visão cosmológica do homem moderno. Fala-se na Revolução darwiniana cm biologia: obvia­ mente, a figura do naturalista inglês, que lançou a teoria evolucionista através do processo de seleção natural ao sugerir a metáfora da “luta pela vida” ou “concorrência vital”, é relevantíssima por haver lançado as bases filosóficas de uma concepção do mundo que, adotada pelos economistas, culminou recentemente na obra majestosa de Friedrich Hayek.

Mas talaremos, nós também, na Revolução luciferiana. Vamos sugerir que, no desafio da “Teologia da Morte de Deus”, pode-se esconder a progressiva iluminação da consciência humana para o conhecimento do bem e do mal — na responsabilidade de sua autonomia moral.

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Origina-se a palavra revolução no latim re-volvere que significa “rolar”, “dar uma volta”. A idéia sugere um movimento cíclico. E uma “volta ao redor” como a do Sol. De tato, um eterno retorno. Hoje em dia, nos léxicos, a Revolta é a subversão contra a autoridade estabelecida (no Pe­

queno Dicionário de Aurélio é uma “sublevação, desordem, grande pertur­

bação moral, indignação”), ao passo que a Revolução é uma mudança brusca e violenta na política e no Governo. Para Littré, “/« révolution est

une transition entre un ordre ancien qui tombe en ruine et u n ordre nouveau

qui se fonde". No Webster, a Revolta é uma mera insurreição. Ela repre­

senta a quebra de uma allegiance, um movimento de forte desacordo com uma realidade estabelecida, ao passo que a Revolução seria uma mudança total ou radical em qualquer série de acontecimentos, ou uma mudança fundamental na organização política, uma mutação rápida nas institui­ ções, nas crenças, nas instituições sociais. Marchamont Nedham, um jornalista do século XVII fortemente envolvido na revolução cromwelli- ana, dava ao termo o sentido de simples sucessão rápida de governo, de periodicidade da suprema magistratura — o que hoje constitui um lugar comum do regime democrático. A isso chamava Harrington de “rotação”. Os termos, como se vé, são copernicanos. Mas é só com a “Revolução Gloriosa” de 1689, que derrubou os Stuart, consolidou o parlamentarismo e entronizou a idéia do Contrato Social de John Lockc que passa a palavra a ser usada no sentido que hoje possui.

Pode-se ademais discutir se a Revolução é sempre política, como para Marx e Lcnin, ou se pode ser de caráter geral. O fato é que vulgarmente nos referimos a uma Revolução científica, à Revolução industrial e, mais recentemente, à Revolução sexual, à Revolução verde, etc. Tudo começou com uma Revolução filosófica. Quando, em 1543, Copérnico publicou o seu célebre De Revolutimibus orbium calestium, o impacto que sua hipó­ tese causou não deve ser atribuído apenas ao fato de violar o que era considerado um artigo de fé, mas de determinar uma verdadeira mudança na cosmovisão cristã. Numa primeira apreciação do problema, cabe res­ saltar que as "revoluções” de Copérnico possuíam o sentido científico estrito do original latino, isto é, configuravam um ritmo regular, irresistí-

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vel e sujeito a leis matemáticas que se nota no movimento dos astros. É portanto uma expressão usada na astronomia e diz respeito às leis que presidem o espaço celeste. Constitui uma tradução correta do grego

anakuklosis, usado metaforicamente por Políbio para indicar o eterno

retorno, a repetição cíclica que se nota nos negócios dos homens, como que refletindo o que se passa na esfera astronômica. O problema do em­ prego do termo ‘'''Revolução” está assim relacionado com a questão que abordaremos em outra obra, relativa à evolução do pensamento ocidental de uma concepção cíclica do desenvolvimento histórico para uma concep­ ção linear irreversível — evolução que, como devemos acentuar, está ligada à cosmovisão judeu-cristã.

A cosmologia aceita pela Igreja era estática e, poderíamos acentuar, “parmenideana” mais do que ptolomaica. Como fundador da metafísica, Parmênides havia negado a possibilidade de mudanças. Seu postulado esti — “c” — constitui uma filosofia completa do Ser. Um dos poucos frag­ mentos de sua obra salvos do tempo, adianta que upara mim é o mesmo onde principio, pois lá voltarei de novo com o tempo”. O mundo é impe- rccívcl, imóvel, eternamente circular. A realidade é estática, finita como uma esfera. O mundo do Devir é um mundo de mera aparência e o mun­ do do Ser o único verdadeiro. Desse modo negava Parmcnides, enfa­ ticamente, a realidade empírica comprovada pelos sentidos. Através de Aristóteles, que postulava só este nosso mundo sublunar estar sujeito a mudanças e declínio — sendo o cosmos estável, invariável, permanente e