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morais, que se revelam no desvio do dinheiro público e no atendimento inadequado aos flagelados.

Considerando ser a idéia de crise algo importante para podermos avaliar a elite política cearense exercendo seu poder de mando, de organização política, enfim, de seu poder de ação, o nosso esforço voltar-se-á para responder uma pergunta: o que é a crise para a elite política da província do Ceará na década de 1870? A resposta irá abordar varias situações, já que a idéia de crise tem um significado amplo.

A seca é uma situação de crise que é percebida aos poucos na província do Ceará e se espalha progressivamente, como se fosse uma epidemia, avançando com o “único objetivo” de destruir. Todavia, só se torna calamidade quando grande

179 PAIVA, Maria Arair Pinto. A Elite Política do Ceará Provincial. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1979, p. 202.

parte da província se submete, de alguma forma, a esse flagelo. Devemos considerar, ainda, que a avaliação da crise provocada pela seca é sempre abordada em nível local, provincial e nacional, pelos jornais pesquisados; cada instância de governo tem certas responsabilidades na solução da crise, embora a dependência do governo central seja a mola propulsora do movimento de solução dos problemas provocados pela seca.

Devido à centralização do poder, que orientava a administração pública do Brasil Império, era preciso sempre considerar o auxílio do governo geral para a solução das crises. Sendo comandado pelos conservadores, o governo central e a política imperial eram assim descritos pelos liberais do jornal Cearense, no inicio do ano de 1877, em um artigo chamado “O estado do paiz”:

Em nosso anterior artigo apreciamos em synthese rapida e imperfeita a decadencia, em que de dia em dia se submerge o paiz, dirigido cegamente por um bando áulico, sem raizes na opinião, divorciado de todos principios e maximas de um bom

governo, procurando apenas aquietar o interesse

inconfessavel de seus apaniguados, sem mira no bem publico, e só visando o – serva te ipsum. Mas quanto ficamos a quem da realidade! Como essa decadencia sobrepuja e excede a tudo o que se pode ver e contar.

Quando a politica declaradamente se affasta da moral, é certo e inevitável o abastardamento dos bons costumes, imprescindível o desvio dos sentimentos elevados e generosos, o senso moral deturpa-se da sociedade só fica em pe o esqueleto disforme para attestar apenas a sua degradação e ruina.

(...).

Parece-nos que a phase actual é uma d’aquellas, em que a soffreguidão de chegar mais depressa a esta conclusão triste e tormentosa tem-se manifestado franca e abertamente por todos os meios de acção, conculcando-se a liberdade, espoliando-se o cidadão de seus mais sagrados direitos e

reduzindo a opinião publica de um paiz constitucional representativo á mero instrumento da vontade de um só homem.

(...).

A responsabilidade ministerial tem sido até hoje uma burla completa (...).

(...).

Com uma tal theoria de governo constitucional temos chegado a situação, em que ora se debate o paiz, (...) agora sujeito a novo despotismo e despotismo constitucional, o que parece absurdo, mas é simplesmente a verdade.

E como um tal estado de cousas só pode manter-se pela inversão mais flagrante dos principios da ordem social; vem d’aqui que a maioria dos representantes dos poderes publicos, constituidos e consagrados pela constituição, são alliciados da turba multa, que reje-se em face do poder, afagando-lhe as paixões, apllaudindo-lhe os desvios e menoscabando da condição do povo, que paga os mais pesados impostos, que apenas servem para fortalecel-os na empresa de arruinar o estado e escravizar a patria pela miseria e desolação.

(...).

(...) que a representação nacional, não fosse, como tem sido, ate hoje, filha de uma pura comedia (...). Quando em uma sociedade tudo disvirtua-se, força é esperar alguma coisa de uma nação que estabeleça e funde de novo o equilibrio moral e politico.180

Esse artigo expõe a situação do país, marcado pela centralização do poder que, segundo a folha liberal, favorece a decadência moral e política. Um bando (conservadores), distanciado dos bons princípios e próximo dos favores pessoais, está empurrando a sociedade para o abismo, com a condescendência do contraditório sistema de governo que mistura despotismo e constitucionalidade. Para os liberais, os representantes da nação (conservadores) patrocinam a comédia da representação política, transformam os ministros numa burla e invertem os princípios da ordem social. Sofre com tudo isso o povo, que paga imposto, e o país; só com um novo equilíbrio moral e político toda essa situação chegaria ao fim. Segundo os liberais, a época era de caos, tudo estava em “desequilíbrio”. Essa forma, talvez exagerada, de mostrar o país é compreensível, se levarmos em consideração as disputas entre liberais e conservadores. Mas a crítica foi forte e devemos avaliá-la como um indício do acirramento crescente das disputas políticas entre a elite cearense e mesmo nacional, nesse final de Império.

Devemos atentar ainda para alguns limites presentes no artigo, aqueles representados pelas idéias de país, povo, representação nacional e equilíbrio moral e político. Que país é esse, marcado pela união ou pela divergência das províncias e do povo? A que povo o artigo se refere, só aos que pagam impostos? E o restante? Qual o alcance da representação nacional? Será que a comédia que ela sustenta não estaria mais nas leis que a definem, onde os liberais e os conservadores estão do mesmo lado, do que no seu efetivo exercício? E o equilíbrio moral e político, quando isso existiu satisfatoriamente, se é que em algum momento existiu no Império? Esse equilíbrio não seria mais um discurso unilateral da elite política que, mesmo se digladiando e clamando por isso, nunca se interessou de fato num amplo equilíbrio moral e político? As argumentações colocadas aqui serão avaliadas ao longo dos três itens que fazem parte deste terceiro capítulo, mas já podemos perceber que a crise não pode ser avaliada somente em si; ela traz consigo uma multiplicidade de temas que com certeza não serão esgotados nesse estudo e nem é essa a nossa pretensão.

A situação de crise política é reforçada em muitos outros números do Cearense, em que não só a situação política de 1877 é abordada mas também a do ano anterior, como ocorreu em uma série de três artigos de fevereiro de 1877, que receberam o título de “Retrospecto político de 1876”. Nesses artigos, que são a parte final de uma longa matéria comparativa sobre a historicidade política das Américas e da Europa, o Brasil foi tratado de forma particular. Vale destacar que em muitos momentos dos dez artigos, escritos com o título citado, os problemas das províncias eram tratados, em especial a do Ceará. Podemos observar a relação entre a situação política de 1876 e a de 1877 e destacarmos a crise política como algo comum a esses dois anos. Para os liberais:

O Império sul-americano atravessa uma quadra fatal para os seus destinos.

Mal despido das faixas infantis, já traz a fonte encanecida e vergada para o chão; e no coração desse septicismo sombrio que se alimenta do fel e das impuresas sociais.

Uma incaravel cachexia moral o atormenta dia e noite; e nos poucos instantes que reage contra o mal, apenas volve um olhar tristonho sobre as chagas que lhe cobre o corpo, para recahir na inércia, como aqueles fumadores do Celeste Império, (...).

Pobre e mesquinha mãe pátria!

Como não estremecerão no tumulo aquelles de teus filhos que sacudirão com nobresa a tyrania do 1o Imperador. (...).

(...).

A que extremidade te levou o cezarismo, é a vaidade de seres grande monarchia no meio de pequenas republicas!

(...).

Os resultados forão na ordem moral.

O enfraquecimento dos laços sociaes, a apathia pelo trabalho que ennobrece e illustra; a inércia tornada lei (...).181

A crise política identificada no inicio de 1877 seria uma continuação,