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3 TUTELA JURISDICIONAL DA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA

4 A MORALIDADE ADMINISTRATIVA

4.2. MORALIDADE ADMINISTRATIVA E LEGALIDADE

Nem sempre foi atribuída imperatividade à moralidade administrativa. Acostumou-se, ao revés, a identificá-la como uma mera concretização do Princípio da Legalidade, de maneira que da moralidade administrativa não derivaria nenhuma mandamento novo para os administradores, mas apenas uma especificação do mandamento anterior de obediência à lei.

Este tipo de abordagem limitativa ocasionou um atraso na efetividade autônoma da moralidade administrativa no Brasil, como bem registrou Cesar Jackson Grisa Junior:

[...] incluiu-se mais tarde a ideia de que a legalidade entendida em sentido lato poderia abranger a moralidade administrativa, o que acabou por causar o desuso do termo em detrimento da expressão “desvio de poder”, de uso generalizado no Brasil. Esse acontecimento pode-se dizer que retardou a abordagem e o emprego autônomo mais efetivo do princípio da moralidade administrativa por anos no Brasil.41

Tal exegese derivaria da ideia de que o conceito de moralidade administrativa seria demasiado vago e impreciso, de modo que, na sua aplicabilidade, acabaria sendo absorvido pelo próprio conceito de legalidade.

É certo, contudo, que a Constituição Federal de 1988 empregou à moralidade administrativa uma concretude que a torna praticamente palpável, do ponto de vista jurídico. É dizer, sob o prisma constitucional, a moralidade administrativa não foi assegurada apenas como um mero consectário da legalidade, mas, ao revés, como um “[...]

40 É bem verdade que, embora seja este o posicionamento adotado neste trabalho, a legitimidade da

Defensoria Pública para propor ação civil pública em defesa de interesses difusos é tema de repercussão geral, registrado sob o número 607 no Supremo Tribunal Federal. Aliás, analisando essa questão sob a perspectiva citada por Antonio Gidi, esse seria um preciso exemplo de problema prático de como essa abstração pode resultar em diferenças desnecessárias no procedimento dos três tipos de demandas coletivas, constituindo assim um elemento dificultador da proteção dos direitos de grupos.

41 GRISA JUNIOR, Cesar Jackson. A moralidade no controle da discricionariedade do ato administrativo. Debates em Direito Público, Belo Horizonte, v. 11, n. 11, out. 2012. Disponível em:

direito público subjetivo, cujo titular é a coletividade indivisivelmente considerada, que pode exigir seu cumprimento da Administração Pública”.42

A existência de um direito público subjetivo à moralidade administrativa, autonomamente considerada, já foi objeto de registro por Carmen Lúcia:

A moralidade administrativa tornou-se não apenas um Direito, mas direito subjetivo público do cidadão: todo cidadão tem direito ao governo honesto. A moralidade administrativa é, pois, princípio jurídico que se espraia num conjunto de normas definidoras dos comportamentos éticos do agente público, cuja atuação se volta a um fim legalmente delimitado, em conformidade com a razão de Direito exposta no sistema normativo. Note-se que a razão ética que fundamenta o sistema jurídico não é uma “razão de Estado”. Na perspectiva democrática, o Direito de que se cuida é legitimamente elaborado pelo próprio povo, diretamente ou por meio de seus representantes. A ética da qual se extraem os valores a serem absorvidos pelo sistema jurídico na elaboração do princípio da moralidade administrativa é aquela afirmada pela própria sociedade segundo as suas razões de crença e confiança em determinado ideal de Justiça, que ela busca realizar por meio do Estado.43

Para tal exegese não é dispensável considerar, ainda, a sede constitucional da previsão. É dizer, não se pode desprezar a natureza constitucional da previsão da moralidade administrativa, notadamente destacada da própria legalidade44 no caput do capítulo que se refere à Administração Pública.

Desta observação topológica se deduz o tratamento especial que é dado à moralidade administrativa, de maneira a ficar evidente que o constituinte não a fez confundir com a legalidade, mas a tratou como um princípio específico e distinto, norteado não apenas pelo conceito da juridicidade, mas pela própria noção de moralidade como uma obrigação extranormativa, embora positivada.

Aliás, a previsão constitucional da moralidade administrativa é elemento que, por si só, já depõe pela condição autônoma deste direito em face da legalidade. Trata-se da obrigação primordial de obediência à Constituição, consoante registrou José Afonso da Silva:

42

MARTINS JUNIOR, op. cit., p. 91.

43 ROCHA, Carmem Lúcia Antunes. Princípios constitucionais da administração pública. Belo Horizonte:

Del Rey, 1994. p. 190-191.

44 Art. 37. A administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do

Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência e, também, ao seguinte:

O Estado Democrático de Direito se rege por diversos princípios, além dos princípios da legalidade (art. 5º, II) e da divisão de poderes (art. 2º), presentes em qualquer forma de Estado de Direito. Têm, porém, relevos especiais o princípio democrático, já referido, e o princípio da

constitucionalidade, que exprimem, em primeiro lugar, que o Estado se

funda na legitimidade de uma constituição rígida, emanada da vontade popular, que, dotada de supremacia, vincule todos os poderes, e os atos deles provenientes, com as garantias de atuação livre da jurisdição constitucional. A importância disso, para o nosso tema, está em que a Constituição agasalha agora, também, o princípio da moralidade, amparado, assim, não por mero princípio da legalidade, mas pelo princípio mais elevado da constitucionalidade, que lhe dá a força vinculante superior que lhe é própria, com eficácia garantida por instrumentos constitucionais explícitos.45

Assim, entendida a própria moralidade administrativa como garantia constitucional em si mesma, outra conclusão não é possível senão a do entendimento de que referida garantia existe enquanto direito autônomo que, malgrado encontre elementos de aproximação com a ideia da legalidade, com esta não pode ser confundida.