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2. Memorial de Aires: a narrativa do luto como superação falsificada

2.1. Os mortos e a terra

Em diálogo com Tristão, aquele que, junto com Fidélia, formará o casal de “filhos postiços” dos Aguiar, Aires discute a questão da nacionalidade e do sentimento de pertencimento que a perpassa. Tristão, como diz Aires, “alcunhado brasileiro em Lisboa, como outros da própria terra, que voltam daqui, é português naturalizado” (MACHADO, 1962b: 114). Tristão, portanto, já havia se naturalizado português, além de ter recebido uma proposta para se tornar deputado em Lisboa. O que está em jogo, no diálogo, portanto, é sua mudança de nacionalidade e seu comprometimento político com Portugal, e evidentemente não com o Brasil.

Nessa conversa íntima com Aires, Tristão lhe confessa que “a gente não esquece nunca a terra onde nasceu, concluindo com um suspiro” (Idem: 120). Aires então, para consolar Tristão, afirma que “a adoção de uma nacionalidade é ato político, e muita vez pode ser dever humano, que não faz perder o sentimento de origem, nem a memória do berço”44. Com esta frase, Aires justifica o ato de Tristão de se tornar político em Portugal, apesar de ter nascido no Brasil, e legitima a deserção política que irá se confirmar quando Tristão e Fidélia rumam para Portugal após a canhestra – mas ainda melhor do que nada – doação da fazenda de Santa-pia aos escravos, no final do romance. A fazenda, localizada no Vale do Paraíba, como todas da região, continha uma terra esgotada pela exploração irresponsável do solo e valia menos do que os próprios escravos, antes da abolição (PRADO JR.,1974; GLEDSON, 1986; FRAGELLI, 2007): “A doação de Santa-Pia parece ser menos uma ajuda aos ex-escravos que um meio de se desfazer de um latifúndio imprestável, com ganho de reputação” (FRAGELLI, 2007:

206). A ida de Tristão e Fidélia a Portugal é, como diz o próprio Aires, um “ato político” de abandono de qualquer compromisso com o caos que deixam para trás.

Quanto a esses, portanto, nenhum apego às terras brasileiras. Entretanto, no romance, há uma menção ao sentimento de pertencimento dos escravos à terra para a qual foram trazidos. Essa menção acontece de modo enviesado e perverso, na fala do antigo proprietário de Santa-Pia, escravagista convicto, e pai de Fidélia. Um personagem que morre pouco depois da Abolição, não sem antes alforriar os escravos como um meio último de exercer poder sobre sua “propriedade” – os escravos – antes do governo. Há um intento declaradamente golpista no que faz o fazendeiro45– e no que fizeram muitos outros: trata-se de uma tentativa de excluir-se da barbárie antes do ato do governo, e ao mesmo tempo colocar a Abolição como ato arbitrário e criminoso, por dispor de sua “propriedade”46. O fazendeiro assina a alforria de seus escravos, ainda em abril, antes da Abolição, e declara: “estou certo que poucos deles deixarão a fazenda; a maior parte ficará comigo, ganhando o salário que lhes vou marcar, e alguns até sem nada, – pelo gosto de morrer onde nasceram”47.

Aqui, na frase acima, a menção a um sentimento de pertencimento dos escravos que redunda não na construção de um projeto nacional, mas em justificativa para que a exploração continue. Todo o mecanismo de dominação do dono de terras escravagista é desmascarado em sua hipocrisia e frieza neste momento: o “gosto de morrer onde nasceram”, seu sentimento de pertencimento, não aparece como possibilidade de nação onde os negros estejam incluídos, é visto como mecanismo e lógica para que a dominação continue. E, evidentemente, a perversidade maior no que pressupõe o fazendeiro está no fato de que os antecessores e antepassados desses escravos foram trazidos de outro local, da África: seu sentimento de pertencimento vem apesar de um ato de violência extrema que os arrancou de seu local originário, em um navio negreiro. A lógica da dominação que o fazendeiro expõe coloca em xeque a construção de uma nação a partir da Abolição: o “gosto de morrer onde nasceram” servirá como pretexto dos proprietários para continuar a dominação, ou como possibilidade de

45 O fazendeiro, reproduzindo quase textualmente a retórica usada na época pelos escravagistas, algo que

uma rápida comparação baseada em alguns estudos históricos e capaz de mostrar com clareza45, diz que

irá libertar seus escravos antes do governo, pois julga sua decisão “uma expoliação, por intervir no exercício de um direito que só pertence ao proprietário, e do qual uso com perda minha, porque assim o quero e posso” (MACHADO, 1962b: 58). O irmão do fazendeiro diz a Aires que o dono de Santa-Pia é capaz de, contraditoriamente, “propor a todos os senhores a alforria dos escravos já, e no dia seguinte propor a queda do governo que tentar fazê-lo por lei.”

46 Isso fica claríssimo na famosa crônica de 19 de maio de 1888, da série Bons dias!. 47 O itálico é nosso.

emancipação em um projeto de nação que os inclua? O que está subentendido na exposição do Memorial de Aires é que Abolição pode ser o momento de integração desses que se sentem pertencentes a esta terra ou pode ser o momento de continuação de sua dominação por parte dos fazendeiros: o sentimento de pertencimento é a pedra de toque tanto de um quanto de outro encaminhamento possível da história nacional. E continua sendo. Na doação da fazenda por Tristão e Fidélia, apesar do esgotamento da terra, há o vislumbre de um projeto, mas ele não está em Aires. Pergunta o Conselheiro com desfaçatez: “poderão fazer a obra comum?”, como se não houvesse nenhuma responsabilidade do Estado e dos ex-proprietários e dependesse apenas deles a realização de sua “obra comum”. E Aires termina dizendo, na desfaçatez completa de sua classe: “é outra questão, mas não se me dá de a ver ou não resolvida; há muita coisa neste mundo mais interessante” (MACHADO, 1962b: 256).