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1. Esaú e Jacó: uma partida de xadrez

1.3. Primeira conclusão

A representação farsesca da história brasileira que, como vimos, já está na forma da narração, faz com que Esaú e Jacó seja uma alegoria ironizada a todo momento pela sua inverossimilhança proposital. Vejamos, por exemplo, o seguinte trecho, em que se fala dos gêmeos:

As que os viam passar a cavalo, praia fora ou rua acima, ficavam namoradas daquela ordem perfeita de aspecto e de movimento. Os próprios cavalos eram iguaizinhos, quase gêmeos, e batiam as patas com o mesmo ritmo, a mesma força e a mesma graça. Não creias que o gesto de cauda e das crinas fosse simultâneo nos dois animais; não é verdade e pode fazer duvidar do resto. Pois o resto é certo (MACHADO, 1962 a: 114).

As personagens de Pedro e Paulo são propositalmente absurdos em sua rigidez alegórica, e o autor não esconde isso. A narrativa alegórica do romance não pode ser interpretada literalmente, mas em sua própria falibilidade. Como disse ainda Michael Wood: “Machado montou uma alegoria óbvia demais para ser aceita em seus termos, rígida demais para não incluir uma troça da noção de alegoria” (WOOD, 2002).

A alegoria de Esaú e Jacó, assim como a narração, possuí dois níveis, como qualquer texto irônico que preze o distanciamento em sua forma. Um nível literal e direto – e, aliás, bastante óbvio, pois está dado no texto – que coloca dois irmãos que brigam desde o ventre e continuam brigando depois da morte da mãe e de sua amada comum, representando monarquistas e republicanos. Entretanto, existe outra alegoria, que está no silêncio do texto, em negativo, na ironia de Machado, e, agora sim, do autor. É sutil, para o leitor, quando a alegoria cheia de silêncios e lacunas de Aires se torna, então, uma alegoria do que se silenciou. Em uma sociedade que não fala sobre os problemas reais, que foge ao debate como Aires, a representação só pode vir no “substituto especial do mutismo”, a definição de Bakhtin para ironia (BAKHTIN, 2003). Comenta Schwarz: “Se em Iaiá Garcia a dimensão histórica faltava, em Esaú e Jacóé na sua falta que está a graça” (SCHWARZ, 1992: 163).

É interessante notar que a narrativa, com tudo o que apresenta de farsa e artificialidade, leva a um cansaço do próprio narrador – ou “narradores” – com a história que está contando. Quando os gêmeos recebem Flora, que volta ao Rio de

Janeiro, quase caem no mar ao saltar para recebê-la, e o narrador diz impaciente: “talvez fosse o melhor desfecho da obra”.

Esse cansaço do narrador com o que narra – e com sua própria narração – pode ser visto como o retrato possível de um cansaço que se refere também à história objetiva brasileira:

Uma vez que a realidade vem sempre subordinada à volubilidade do narrador, que a desmancha e recompõe conforme o seu capricho, fica excluído o movimento “objetivo” do romance realista, com a lógica de suas contradições. Restam os dinamismos da própria volubilidade, com seus ciclos sucessivos de animação e fastio, progressivamente desgastados, até terminarem em nada. É uma curva de romance muito original, diferente, que é a do cansaço41. Essa é uma das grandes soluções estéticas de Machado

de Assis (BOSI; GARBUGLIO; CURVELLO; FACIOLI, 1982: 330).

Como também notou Gledson, “o ceticismo e o senso de vazio que impregnam Esaú e Jacó (...) é, em si, em grande medida, um fenômeno histórico” (GLEDSON, 1986: 169). Interessa o ponto, situado no tempo, de onde Machado elabora sua visão sobre a Proclamação: em 1904, já se havia passado 15 anos desde os acontecimentos relatados em Esaú e Jacó. Há um enorme período de tempo seriamente tumultuado que não integra a representação, mas está subentendido: período que incluí a revolução Federalista, a guerra de Canudos, o clima ditatorial que se prolonga até o fim do século, exílios, cerceamentos à imprensa, e tantos outros conflitos menores, mas também violentos, internos a cada federação, além de um crescente endividamento dezenas de vezes superior ao contraído no império, que inviabilizava qualquer soberania nacional. Esses acontecimentos são uma grande sombra que funciona como um protagonista à parte – um fantasma do que viria – em Esaú e Jacó. Esses conflitos estão inevitavelmente pressupostos em 1904, e embora não façam parte dos recortes do romance, precisam ser levados em conta como parte viva – já que violenta e presenciada por muitos – da memória recente do leitor e de Machado, quando é composto e lançado o romance.

É cômico o momento em que D. Cláudia, mulher de Batista, chega a lamentar a ausência de oposição ao marido, pois sem ela a vida política parece perder um pouco de seu encanto e fervor: é a caricatura de uma república que “reprime o protesto, em vez de manejá-lo” (GLEDSON, 1986: 196). Se a hegemonia no poder foi substituída e

reorganizada para que a dominação permanecesse, sob a “política dos governadores”, cujas eleições eram sistematicamente fraudadas por todos os lados, o que temos não é uma total ausência de qualquer possibilidade real de oposição e debate sobre a construção nacional enquanto bem comum? Esaú e Jacó parece ser muito mais a ironia máxima sobre um estado que elimina sistematicamente toda e qualquer oposição, do que a alegoria sobre um conflito e uma discussão ab ovo que nunca termina, como sugere o nível aparente e literal da narrativa.

Nesse sentido, a consumação de Callado em Reflexos do baile, como veremos, é precisa no paralelo que estabelece: seu tempo também é o da eliminação sistemática de qualquer possibilidade de debate e oposição organizada. Ambos os autores tratam de movimentos ditatoriais e autoritários cuja memória, se não engendra a isenção de monarquistas ou da esquerda brasileira de suas próprias contradições ou “dissimulações”, como sugere Machado em Pedro42, certamente deixa em posição bastante duvidosa os dois golpes militares tratados por Machado e Callado em seus romances, com toda sua truculência, seu liberalismo excludente, sua sujeição criminosa ao exterior e à crença míope em um progresso reacionário e de empréstimo.