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92 mostrar a verdade e pôr fim à ignorância É isso que, cremos, está em questão quando

Górgias usa a palavra “verdade”: ela não corresponderia (como fica evidente a partir do

Tratado) com algo exterior ou anterior a ela, seja uma coisa, uma ideia ou sentimento.

Ela é “apenas” o que se diz que ela é, ela só existe a partir do discurso, no discurso e só pode ser “demonstrada” pelo discurso, não por uma correspondência com algo real, mas exatamente por criar qualquer coisa como uma “realidade”55.

Assim, parece-nos que em Helena estão pressupostas as teses do Tratado, parecendo ser mais uma continuidade ou antecipação dele.56 O fato de a terceira aporia do Tratado ser realmente a mais difícil de ser superada – lembremos as concessões feitas em relação às duas primeiras teses, mas não sobre a terceira – nos faz deduzir que o maior propósito de Górgias, mais que negar uma existência objetiva de coisas transcendentes ou imanentes e um possível conhecimento sobre essas coisas (não cremos, aliás, que Górgias faça isso, mas tão somente mostre as aporias envolvidas em torno dessas questões) é demonstrar os limites da linguagem humana e, consequentemente, mostrar o enorme poder tirânico que passa despercebido nas diversas falas e discursos – sejam filosóficos, poéticos ou cotidianos – na vida política da polis. Só ao tomarmos consciência do real poder das palavras é possível fazer um uso proveitoso delas.

É essa, portanto, a “verdade” que julgamos ser referida por Górgias. A verdade é que se falamos em termos de “verdade” e procuramos por ela, apenas no discurso podemos encontrá-la. Ela não é algo absoluto ou transcendente – aliás, se for, não é acessível ao ser humano e ainda que seja não pode ser transposta em palavras e dessa última aporia parece não haver escape –, e isso ele demonstrará em seguida com os diversos argumentos que tentam demonstrar a inocência de Helena. Em outros termos, podemos dizer também que a verdade é uma espécie de consenso, mas, consenso que pode e mesmo deve ser destruído e reconstruído continuamente pelos homens na polis.

55

Para mais detalhes sobre o conceito de verdade em Górgias, indicamos Cassin (1995) e Coelho (2010) que interpretam de modo diverso o que seja a verdade em Górgias, mas que nos parecem igualmente relevantes.

56

Falamos em continuidade ou antecipação pois sobre a datação é de fato muito improvável chegarmos a um consenso. Não é sobre isso que estamos falando, mas apenas de uma aparente “coerência” nas ideias apresentadas entre os três textos de Górgias.

93 (3) ὅτι μὲν οὖν φύσει καὶ γένει τὰ πρῶτα τῶν πρώτων ἀνδρῶν καὶ γυναικῶν ἡ γυνὴ περὶ ἧς ὅδε ὁ λόγος, οὐκ ἄδηλον οὐδὲ ὀλίγοις. δῆλον γὰρ ὡς μητρὸς μὲν Λήδας, πατρὸς δὲ τοῦ μὲν γενομένου θεοῦ, λεγομένου δὲ θνητοῦ, Τυνδάρεω καὶ Διός, ὧν ὁ μὲν διὰ τὸ εἶναι ἔδοξεν, ὁ δὲ διὰ τὸ φάναι ἠλέγχθη, καὶ ἦν ὁ μὲν ἀνδρῶν κράτιστος ὁ δὲ πάντων τύραννος.

(3) Que, por natureza e estirpe, a mulher em torno da qual esse discurso gravita está entre os primeiros dentre os primeiros homens e mulheres, não é imperceptível sequer para poucos. Pois, é evidente que a mãe era Leda, e o pai que gerou era um deus enquanto o que foi declarado, um mortal: Tíndaro e Zeus, dos quais um, por ser, foi reputado e o outro, por dizer, foi contestado; um foi o mais poderoso dos homens, e o outro, o soberano de tudo.

B – Górgias, então, apela mais uma vez a um recurso amplamente utilizado pelos gregos para comprovar a “integridade” de uma pessoa: remete-se à linhagem. Helena descendendo de tais pais certamente é uma pessoa “íntegra”, não é verossímil que cometa graves erros. Ela teria dois nascimentos, ou, em outros termos, dois “pais”, um que o era realmente, seu gerador, Zeus, o “rei” dos deuses; e outro, o rei de Esparta, Tíndaro, esposo de sua mãe Leda e por isso seu pai declarado.

94 (4) ἐκ τοιούτων δὲ γενομένη ἔσχε τὸ ἰσόθεον κάλλος, ὃ λαβοῦσα καὶ οὐ λαθοῦσα ἔσχε· πλείστας δὲ πλείστοις ἐπιθυμίας ἔρωτος ἐνειργάσατο, ἑνὶ δὲ σώματι πολλὰ σώματα συνήγαγεν ἀνδρῶν ἐπὶ μεγάλοις μέγα φρονούντων, ὧν οἱ μὲν πλούτου μεγέθη, οἱ δὲ εὐγενείας παλαιᾶς εὐδοξίαν, οἱ δὲ ἀλκῆς ἰδίας εὐεξίαν, οἱ δὲ σοφίας ἐπικτήτου δύναμιν ἔσχον· καὶ ἧκον ἅπαντες ὑπ' ἔρωτός τε φιλονίκου φιλοτιμίας τε ἀνικήτου. (5) ὅστις μὲν οὖν καὶ δι' ὅτι καὶ ὅπως ἀπέπλησε τὸν ἔρωτα τὴν Ἑλένην λαβών, οὐ λέξω· τὸ γὰρ τοῖς εἰδόσιν ἃ ἴσασι λέγειν πίστιν μὲν ἔχει, τέρψιν δὲ οὐ φέρει. τὸν χρόνον δὲ τῶι λόγωι τὸν τότε νῦν ὑπερβὰς ἐπὶ τὴν ἀρχὴν τοῦ μέλλοντος λόγου προβήσομαι, καὶ προθήσομαι τὰς αἰτίας, δι' ἃς εἰκὸς ἦν γενέσθαι τὸν τῆς Ἑλένης εἰς τὴν Τροίαν στόλον.

(4) E, tendo sido gerada de tais pais, obteve a beleza igual à dos deuses, que ela tomou e não manteve escondida; em muitíssimos produziu muitíssimos desejos de amor, e com um só corpo reuniu muitos corpos de homens que pensavam grande sobre coisas grandiosas, dos quais uns possuíam uma grandeza de riquezas, outros a boa reputação de uma antiga linhagem nobre, outros a boa condição do próprio vigor, outros a capacidade de uma sabedoria adquirida; e todos vinham pelo amor que almeja a vitória e pelo invencível gosto da honra.

(5) Quem, por que e como saciou o amor ao tomar Helena, não direi: pois, dizer aos que sabem aquilo que sabem tem credibilidade, mas não traz contentamento. E tendo ultrapassado o tempo de então por meio do discurso, avançarei ao princípio do discurso que segue e proporei as causas pelas quais seria verossímil ter surgido a viagem de Helena para Tróia.

B – Górgias elogia a beleza de Helena, a qual é – lembremos – a “ordem” para o corpo de acordo com os valores inicialmente anunciados por ele. O corpo de Helena está, então, em perfeita ordem consigo mesmo o que, naturalmente, despertaria o amor de muitíssimos outros corpos, desejosos dele. E então anuncia que passará, por meio do

discurso, do tempo passado, ou seja, de uma “biografia” de Helena que traria já em si

95 (6) ἢ γὰρ Τύχης βουλήμασι καὶ θεῶν βουλεύμασι καὶ Ἀνάγκης ψηφίσμασιν ἔπραξεν ἃ ἔπραξεν, ἢ βίαι ἁρπασθεῖσα, ἢ λόγοις πεισθεῖσα, <ἢ ἔρωτι ἁλοῦσα>. εἰ μὲν οὖν διὰ τὸ πρῶτον, ἄξιος αἰτιᾶσθαι ὁ αἰτιώμενος· θεοῦ γὰρ προθυμίαν ἀνθρωπίνηι προμηθίαι ἀδύνατον κωλύειν. πέφυκε γὰρ οὐ τὸ κρεῖσσον ὑπὸ τοῦ ἥσσονος κωλύεσθαι, ἀλλὰ τὸ ἧσσον ὑπὸ τοῦ κρείσσονος ἄρχεσθαι καὶ ἄγεσθαι, καὶ τὸ μὲν κρεῖσσον ἡγεῖσθαι, τὸ δὲ ἧσσον ἕπεσθαι. θεὸς δ' ἀνθρώπου κρεῖσσον καὶ βίαι καὶ σοφίαι καὶ τοῖς ἄλλοις. εἰ οὖν τῆι Τύχηι καὶ τῶι θεῶι τὴν αἰτίαν ἀναθετέον, [ἢ] τὴν Ἑλένην τῆς δυσκλείας ἀπολυτέον.

(6) Pois, ou pelas intenções do acaso, pelos desígnios dos deuses e pelos decretos da necessidade ela fez o que fez, ou por ter sido arrebatada com violência, ou persuadida pelas palavras, <ou capturada pelo amor>. Se foi pela primeira causa, merece ser responsabilizado aquele que foi responsável: pois, o desejo de um deus é impossível obstruir com a previdência humana. É natural que o mais forte não seja obstruído pelo mais fraco, mas que o mais fraco seja comandado e conduzido pelo mais forte, que o mais forte comande e o mais fraco siga. E um deus é superior a um humano em força, sabedoria e em outras coisas. Portanto, se se deve atribuir a causa ao acaso e a um deus, deve-se libertar Helena da desonra.

A - <ἢ ἔρωτι ἁλοῦσα> - É uma referência marginal (em La, Ald, Y), que não consta nos manuscritos A e X, provavelmente inserida por algum copista para antecipar a argumentação que se desenvolverá em§ 15-19. Ela é aceita por vários editores e/ou tradutores. Entre o que consultamos a exceção são Cassin e Untersteiner, por motivos bem distintos. Untersteiner acredita que a quarta causa é composta por partes do primeiro argumento e por um novo elemento que é inserido, o acaso, entendido em um sentido necessário. Cassin, no nosso ponto de vista, mais uma vez oferece uma justificativa bem mais interessante e que vai ao encontro de nossa interpretação: a quarta parte do discurso indica um outro tempo na argumentação, onde Helena já não é mais vítima, mas ainda assim é passível de absolvição. As três primeiras causas aqui citadas têm em comum o fato de apresentarem uma Helena passiva, vítima e que, portanto, só pode ser perdoada e isenta de culpa, entretanto, nessa quarta causa Helena é ativa na situação, ela escolheu por si seguir Páris ao se apaixonar por ele, portanto, culpada, mas, ainda assim deveria ser absolvida pois foi vítima de seus próprios olhos.

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