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96 Resolvemos manter o acréscimo, por uma questão de maior clareza na exposição de

nossos comentários, apesar de sabermos que provavelmente não estava no texto original, já que não consta em nenhum dos dois manuscritos mais confiáveis, mas apenas em cópias posteriores. Atentamos apenas a isso: estamos cientes de que se trata de um acréscimo e concordamos que se trata de um novo “tempo” na argumentação.

B – Eis, então, o anúncio das quatro possíveis causas que teriam feito Helena fazer o que fez e isentam-na de culpa. Os três primeiros motivos – que como dissemos acima, cremos, fazem parte de um mesmo momento da argumentação – têm como pressuposto que Helena definitivamente não fez nada, ela apenas sofreu. Górgias constrói uma Helena passiva, vítima da violência, seja ela proveniente de um deus, de um humano ou das palavras proferidas por um humano. Natural, então, não só isentá-la, mas se compadecer dela e indicar o responsável por ela ter feito o que fez (melhor dizendo, o que não fez).

Três momentos de passividade que, entretanto – é importante atentar – vão progressivamente “preparando” o espectador para a quarta causa, a que expõe uma Helena culpada, ainda que isenta de culpa. Expliquemos melhor: a primeira causa traz uma violência completamente transcendente: a vontade de um deus, à qual nenhum humano pode resistir, pois tem a força da necessidade. Um deus é superior a qualquer humano em βίαι καὶ σοφίαι καὶ τοῖς ἄλλοις, natural, portanto, que o responsável não seja Helena e sim o deus que desejou que ela fosse até Tróia. A segunda causa será a violência, agora já completamente humana, de um rapto e novamente Helena é a vítima que, agora, deve ser não só liberta de culpa, mas lamentada ao passo que seu agressor deve ser odiado. A última das três primeiras causas é a violência exercida por um logos persuasivo que, como sabemos e veremos, é considerado um grande soberano que imprime na alma de um ouvinte o que bem quer; mas, apesar disso, não esqueçamos entretanto que o discurso é produzido sempre por um humano e exerce uma espécie de encantamento em outro humano, ou seja, o discurso por mais soberano que seja e por mais que a força da persuasão tenha a aparência da necessidade, opera na relação entre pessoas, é preciso mais que um bom orador para persuadir uma audiência, a audiência tem que igualmente, deixar-se persuadir. E é depois disso que aparece, em um quarto momento distinto, uma nova Helena, que escolhe seguir Páris, homem pelo qual se apaixonou. Em suma, culpada, porém, ainda uma vez mais passível de absolvição, afinal foi vítima de si mesma.

97 (7) εἰ δὲ βίαι ἡρπάσθη καὶ ἀνόμως ἐβιάσθη καὶ ἀδίκως ὑβρίσθη, δῆλον ὅτι ὁ <μὲν> ἁρπάσας ὡς ὑβρίσας ἠδίκησεν, ἡ δὲ ἁρπασθεῖσα ὡς ὑβρισθεῖσα ἐδυστύχησεν. ἄξιος οὖν ὁ μὲν ἐπιχειρήσας βάρβαρος βάρβαρον ἐπιχείρημα καὶ λόγωι καὶ νόμωι καὶ ἔργωι λόγωι μὲν αἰτίας, νόμωι δὲ ἀτιμίας, ἔργωι δὲ ζημίας τυχεῖν· ἡ δὲ βιασθεῖσα καὶ τῆς πατρίδος στερηθεῖσα καὶ τῶν φίλων ὀρφανισθεῖσα πῶς οὐκ ἂν εἰκότως ἐλεηθείη μᾶλλον ἢ κακολογηθείη; ὁ μὲν γὰρ ἔδρασε δεινά, ἡ δὲ ἔπαθε· δίκαιον οὖν τὴν μὲν οἰκτῖραι, τὸν δὲ μισῆσαι.

(7) Se foi arrebatada com violência, ilegalmente violentada e ultrajada com injustiça, é evidente que o raptor, ao ultrajá-la, cometeu injustiça e que a raptada, ao ser ultrajada, foi desafortunada. Acontece que o bárbaro que empreendeu um empreendimento bárbaro, merece, pelo discurso, pela lei e pelo ato ser responsabilizado; pelo discurso, a acusação; pela lei, a desonra; pelo ato, a punição. Mas, a que foi violentada, privada da pátria e afastada de seus queridos, como, com verossimilhança, não seria mais lamentada do que insultada? Pois ele fez coisas terríveis e ela as sofreu: é justo, então, lastimá-la e odiá-lo.

B – Segunda possível causa: foi violentamente arrebata por Páris o que, mais que a isentar de culpa, suscita uma condenação do homem que a violentou. Parece-nos que, já aqui, Górgias começa a tentar inserir um novo consenso entre os gregos, o de que a mulher vítima de uma violência deve sempre ser lastimada e o agressor culpado. Até onde sabemos, não temos na literatura grega até a época que teria vivido Górgias, uma menção ao dever de ser acusado, desonrado e punido um homem que violente uma mulher. Claro que Górgias escreve isso como mais uma estratégia para inocentar Helena ou para demonstrar como um discurso “logicamente” persuasivo pode moldar o que bem quer na alma do ouvinte, inclusive que uma mulher mereça ser lamentada por ter sido vítima de violência física e/ou sexual. Não deixamos, entretanto, de achar digno mencionar o fato de uma mulher ser “defendida” de violência sofrida em uma época onde apenas homens eram considerados cidadãos de uma cidade e mulheres não tinham qualquer direito político, logo, não poderiam elas mesmas acusar quem quer que seja.

Percebamos também que aqui se dá uma sutil passagem ao nível de “necessidade” da violência. Por mais que Helena seja completamente inocente, se trata agora de uma violência inteiramente humana, passível, portanto, de não acontecer.

98 (8) εἰ δὲ λόγος ὁ πείσας καὶ τὴν ψυχὴν ἀπατήσας, οὐδὲ πρὸς τοῦτο χαλεπὸν ἀπολογήσασθαι καὶ τὴν αἰτίαν ἀπολύσασθαι ὧδε. λόγος δυνάστης μέγας ἐστίν, ὃς σμικροτάτωι σώματι καὶ ἀφανεστάτωι θειότατα ἔργα ἀποτελεῖ· δύναται γὰρ καὶ φόβον παῦσαι καὶ λύπην ἀφελεῖν καὶ χαρὰν ἐνεργάσασθαι καὶ ἔλεον ἐπαυξῆσαι. ταῦτα δὲ ὡς οὕτως ἔχει δείξω·

(8) Se foi o discurso o que a persuadiu e iludiu sua alma, também não é difícil falar em sua defesa e destruir a acusação da seguinte forma: o discurso é um grande soberano que, por meio do menor e mais imperceptível corpo, concretiza os atos mais divinos, pois ele pode cessar o medo, afastar a dor, produzir a alegria e aumentar a compaixão. E mostrarei como essas coisas são assim.

B – Inicia-se então um novo argumento, que se extende até o parágrafo 14, onde Górgias centra-se no poder do logos e de sua violência persuasiva. Marcos (2011, p. 53- 54) descreve essa parte como um procedimento de indução dividido em três etapas. A primeira, exatamente esse parágrafo em questão, afirma a potência do discurso e seu efeito sobre a alma; a segunda (§§ 9-13) oferece uma revisão de diferentes technai cujo exercício mostra diversos tipos de discursos que influenciam de maneira poderosa a alma humana; e por fim em § 14 é feita a famosa analogia com o pharmakon, onde explicita o modo de operação do discurso na alma.

Cremos que aqui ocorre um sutil contraste com os dois primeiros motivos possíveis, pois o agente atua não apenas fisicamente, mas exerce sua influência maior na alma, apesar de seu poder afetar também o corpo. Ou seja, nesse terceiro momento da argumentação, parece-nos, Górgias passa de uma “causa” externa a uma interna. Por mais que o discurso seja proferido por uma outra pessoa e que ele possua seu próprio corpo (ainda que minúsculo e imperceptível, algo que nos faz deduzir que aqui Górgias chama de corpo os “sons” das palavras), a afetação é feita antes de tudo na alma, e, portanto, existe já aqui uma parcela – ainda que mínima – de responsabilidade da pessoa persuadida, pois por mais que o efeito criado na alma tenha a aparência de necessidade e “enfeitice”, ainda assim, foi Helena quem resolveu ir se deixando seduzir pelo discurso. Contudo, não é difícil isentá-la de culpa, afinal, foi vítima de um engano.

Perceba-se, antes de tudo, que o discurso tem o poder de iludir ou enganar e por isso deve – não apenas, mas também – ser temido, pois se trata de violência, ainda que

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