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CAPÍTULO 3 – O interacionismo e o domínio da escrita

3.3. Movimentos na direção da Educação: sob o fracasso escolar

Para Lier-DeVitto e Andrade (2009, p. 28), o caráter equívoco do significante pode ser apreendido na forma gráfica que aproxima “o” e “zero” – equivocidade, como mostraram, que abre espaço para que novas articulações significantes se instaurem, embora seja seu aspecto sonoro que de direção ao texto produzido:

Essa trama aponta, ainda, para a complexa relação entre fatos morfológicos, fonológicos, textuais. Ou seja, para um movimento que, quando acolhido pela escuta do clínico, vai de encontro a qualquer possibilidade de estabelecimento de elementos positivos que possam suportar uma relação de representação entre oralidade e escrita.

Psicanálise na teorização do Interacionismo e que esse movimento exige tratar da questão As considerações e interpretações acima tomam distância de raciocínios e análises assentados no imaginário – na imagem da escrita que se registra no papel. Elas afastam-se do apoio estrito na “percepção” – as interpretações colocam em evidência, como tratei de colocar em relevo, o movimento simbólico (não visível sob a aparente fixidez da imagem da escrita) e mostram que “o linguístico [não] pode ser abordado unicamente a partir da empiria do sinal acústico [ou gráfico]” (ANDRADE, 2003).

Em suma, como enfatizou Andrade (2003), o efeito maior da introdução de um pensamento linguístico, que reconhece a ordem da língua, é o distanciamento que ele produz do ideário do ensino-aprendizagem – de que a linguagem é mero comportamento observável, expressão de um estado de conhecimento internalizado,

sobre ela, pelo sujeito. Recusa-se, portanto, que fala/escrita linguagem sejam manifestações transparentes e simples representações de condições cognitivas.

Fongaro (2009), em sua dissertação, aborda a escrita de crianças encaminhadas para terapia fonoaudiológica. Seu objetivo foi refleti sobre o sintoma que se imprime em textos. Ela procura aprofundar a relação com a Psicanálise, partindo da afirmação de Cláudia de Lemos (2002) de que é teoricamente necessário implicar o sujeito da captura do ponto de vista da sexuação. Sua análise destaca a materialidade da escrita e, para ela, segmentação e traçado foram elementos fundamentais. Os equívocos homográficos são destacados porque mostram um modo particular de enlaçamento da criança pela escrita que indica o “desconhecimento do sujeito sobre o porquê dos acontecimentos da sua escrita” e “a impossibilidade de mudança” aponta para a implicação da hipótese do inconsciente introduzida por Freud (LIER-DEVITTO, 2006).

O trabalho de Fongaro (2009) realiza, de fato, um esforço de implicação da Psicanálise: ela se aproxima de Gérard Pommier e envolve, a partir dele, a operação do recalcamento que, sustenta o autor, incide sobre a imagem (visual e sonora) das letras e permite pensar o sintoma (na escrita) como ponto de enlaçamento do sujeito na escrita, na passagem pelo complexo de Édipo. Nascimento e renascimento da escrita, de Pommier (1996), enriquece a discussão que a autora desenvolve introduz em seu trabalho uma inequívoca marca de novidade no tratamento da questão.

Fongaro (2009) mostra que Pommier (1996), ao abordar a gênese da escrita alfabética e sua aquisição por cada criança, envolve noções e conceitos psicanalíticos. Para ele, as duas trajetórias são homólogas: os mesmos processos estão implicados na gênese da escrita e em sua aquisição/aprendizagem, assevera o autor. Pommier pareceu essencial a Fongaro – que recolhe, de citação de De

Lemos (2002) a questão da problemática da sexuação – porque ele implicará, na sua interpretação da história da escrita, o complexo de Édipo (momento da definição da sexualidade) e, ainda, considerações freudianas sobre o “totem”. No cerne dessas questões está o recalcamento, que tem, segundo ele, função decisiva no nascimento da escrita.

Na história da escrita, o autor mostra que há, na base, o apagamento do valor pictórico (das imagens) nos hieróglifos. Sem isso não há recalcamento do valor e destaque do valor sonoro, que será determinante na composição de uma sequência mais complexa (cadeia sonora). Segundo Pommier, os hieróglifos egípcios eram rébus (assim como são os sonhos) á que neles predomina a articulação silábica e os ideogramas. Foi a proibição representação figurativa, imposta pelo monoteísmo, diz ele, que levou ao aparecimento das consoantes. Pommier, destaca Fongaro, sustenta que a escrita consonântica nasce como a escrita da lei que impõe que as letras sejam desligadas do rébus, que vez, já implicava o apagamento da imagem.

Para Pommier, a escrita alfabética passou por um duplo apagamento/recalcamento, que fez desaparecer toda evocação à sua origem. A escrita alfabética foi antes pictográfica, depois hieroglífica e depois consonântica. Pommier reitera que, para chegar ao consonantismo, foi necessário recalcar a imagem. O conceito de recalque em Freud remete a um mecanismo cuja essência é afastar da consciência determinada ideia/representação. Pommier esclarece que o apagamento da imagem da letra e o apagamento da relação imagem sonora com imagem visual, através do enlace das letras, fazem desaparecer toda a evocação de sua origem.28

28 Fongaro faz referência a Freud (1976b), “A dissolução do complexo de Édipo”. Nesse texto ele afirma que a autoridade do pai, ao ser introjetada, ganha caráter de proibição dos desejos da criança no complexo de Édipo. Essa instância de proibição estaria, segundo Freud, relacionada ao processo de recalcamento desses desejos infantis que permanecem no inconsciente. É possível compreender

Enfim, Pommier entende que o caminho até o alfabetismo, na aquisição da escrita pela criança, ocorre como efeito do 1. apagamento da imagem (em benefício da sílaba) e, depois, 2. do apagamento da letra – nesse passe, ele põe ênfase no fato de que som e imagem não são equivalentes na palavra escrita. Importante é acompanhar o autor quando ele questiona a tendência da Escola que assume que a letra alfabética é transposição direta do som para a escrita. Para ele (assim como para Saussure) tratam-se de duas formalizações. Adotar a ideia de que as letras são reproduções da fala é obliterar o fato de que a escrita requer de cada sujeito as operações de recalcamento da imagem. Além disso, enfatiza Fongaro: se som e letra fossem uma o reflexos perfeitos,

[...] qualquer um que já falasse deveria poder escrever, porém a não proporção entre a capacidade de falar e a habilidade de escrever mostra que a adequação do som ao signo é resultado de um processo complexo (FONGARO, 2009, p. 51).

Dito de forma mais clara: “o som não contem a imagem e a imagem não contém o som” (FONGARO, 2009, p. 51).

Enfim, a introdução de um pensamento psicanalítico afasta a ideia de desenvolvimento, cara à Psicologia e a Escola, e introduz uma explicação guiada por um raciocínio estrutural, que é comandado pela operação de recalcamento. Essa outra rota é de especial relevância quando se assume uma proposta como a sugerida por De Lemos em que, como vimos, mudanças ocorrem como efeitos de deslocamentos da criança numa estrutura.

as interpretações de Pommier sobre as relações entre os apagamentos do valor da imagem na história da escrita e na escrita da criança, com o complexo de Édipo. Na aquisição da escrita, como vimos também em Lier-DeVitto e Andrade (2009), o apagamento do valor da imagem depende da operação de recalcamento – e não a uma operação cognitiva, consciente e intencional.