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CAPÍTULO 3 – O interacionismo e o domínio da escrita

3.1. Três autores seminais

O livro de Sônia Mota (2006), O quebra-cabeça da escrita: a alfabetização depois de Lacan, decorrente de sua tese de doutorado, defendida em 1995 no Programa de Estudos Pós-Graduados em Educação: Psicologia da Educação, da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PED/PUC-SP), 26 inaugura a reflexão sobre a relação criança/escrita sob a perspectiva do interacionismo, proposto por De Lemos (1992), que foi apresentado no Capítulo 2. Mota parte de um posicionamento teórico que se recusa a admitir que a escrita seja representação do pensamento e da fala, ou seja, a autora afasta a possibilidade de pensar a escrita de acordo com a seguinte sequência causal:

PENSAMENTO FALA ESCRITA

Como destaca Guadagnoli (2007), Mota é clara a esse respeito quando diz que tal sequência de determinação:

[...] é central na Psicologia Cognitivista, que concebe [a escrita] como inerente a qualquer atividade mental e a descreve como um fenômeno psíquico da ordem da consciência, por ser esse um processo cognitivo... e intencional... (MOTA, 2001, 26)

Na trilha do interacionismo, a autora recusa a ideia de representação, que sustenta a de sujeito epistêmico (de sujeito em controle de operações mentais). Nesse espaço, o outro é “modelo” a ser imitado e suas habilidades, internalizadas. A escrita seria veículo de externalização de representações armazenadas na mente/pensamento – que se manifestam na fala. A escrita seria, então, representação de segunda ordem e ambas, fala e escrita, comparecem como instrumentos de expressão de conhecimentos, emoções e de realização de intenções e vontades.

A proposta de Mota (2006) toma posição contrária a essas noções e adota concepções bem diferentes sobre a linguagem, o sujeito e, naturalmente, sobre a relação sujeito/escrita. É por isso que representação assume uma roupagem distinta: no sujeito, desprovido de capacidades analíticas e dependente do outro, as marcas de uma vivência se inscrevem como “traços mnêmicos”, como diz Freud (1976) e são inconscientes – estão fora da esfera de controle do sujeito. Enfim, “representações têm relação com o inconsciente, com seu funcionamento (que implica recalque... esquecimento)” (GUADAGNOLI, 2007, grifo nosso).

Do mesmo modo, a linguagem (fala/escrita) é muito mais do que suas funções manifestas (representativa ou comunicativa). Fala e escrita (língua de

sinais) são efeitos de um funcionamento (LIER-DEVITTO, 1998) – que Saussure (2006) põe em jogo – o da linguagem, que depois Lacan (1988) designou Outro (tesouro dos significantes).

Assim, a relação sujeito/objeto, tão cara aos cognitivistas, é abandonada. Mota (2006) indica uma relação triádica – como vimos, acima, nos 3 polos estruturais de De Lemos (2002), segundo deslocamentos que respondem pelas posições da criança na estrutura e pelas mudanças na aquisição (Figura 3.1).

LÍNGUA

sujeito outro

FIGURA 3.1. 3 polos estruturais de aquisição da linguagem. Fonte: adaptada de De Lemos (2002).

Mota (1995) mostra que implicar o funcionamento de la langue nas análises permite conceber escritas não intelegíveis como textos, já o funcionamento da língua opera nas relações entre as letras, entre blocos de letras, entre palavras. Ele produz deslocamentos inesperados, como se pode observar na escrita de Rãimora na Figura 3.2 e na de Palloma na Figura 3.3.27

27 Trinta crianças frequentavam a sala de aula. A idade delas variava entre 6 e 9 anos (MOTA, 2006, p. 17).

FIGURA 3.2. Letras de nomes que se articulam de forma variada. Fonte: Mota (2006, p. 134).

Era uma vez um bichinho Era uma vez um bixilom malloma de demíre. raide demar bomoé os doma de inio os dema doi os dmo doi Ds dosra demoú A dma dãos Palloma

FIGURA 3.3. Cadeias presentes em discursos anteriores e que emergem nos porteriores.

As estranhas combinações de letras, que formam um texto ilegível no caso de Palloma (Figura 3.3), não se furtam à possibilidade de serem concebidas como variações decorrentes de substituições em estruturas paralelísticas, que Lier-DeVitto (1998) mostrou nos monólogos. Mota (2006, p. 133 grifo nosso) ilumina esse jogo simbólico na escrita – jogo em que, como assinala a autora, “palavras ganham ou perdem letras” – o texto vem, portanto cifrado, enigmático. Nele, há movimento significante e ele foi redigido por um sujeito.

Outro ponto da maior importância levantado por Mota (2006) é o de que esses textos iniciais são constituídos pelas mesmas letras em combinações diferentes. Note-se que essas letras correspondem àquelas que compõem o nome da criança. Observe-se, no segundo texto apresentado, a presença de letras de “Rãimora Rodrigues de Alcântara”. Nessa escrita, proliferam R, A e de.

Zelma Bosco (2010) retoma e aprofunda esse achado em sua tese de 2004, depois publicada em livro, em 2010: A errância da letra e do nome próprio na escrita da criança. A autora reafirma que as letras das primeiras escritas da criança não são aleatórias – partem do nome próprio porque este está na escrita do nome. “Nome” que a designa e a insere na ordem da linguagem. Como afirma Mota (2006), a criança não lê, mas reconhece as letras. Bosco (2010) acrescenta que: “ler é reconhecer-se no escrito” – é mais do que ler palavras.

No trabalho de Bosco (2010) o nome próprio ganha destaque. Os materiais analisados pela autora incluem “assinaturas” e textos inteiros compostos por letras do nome da criança. Bosco (2010, p. 97) pergunta: “por que a criança elege as letras do nome e não quaisquer outras?”, e responde que na assinatura, o sujeito encontra-se nela investido. Há, então, um sentido especial nas letras do nome próprio. Bosco (2005) toma o nome próprio como “metáfora do significante fundador

de um sujeito”, já que foi uma nomeação fundadora. Note-se que o outro vem ao caso. Com Allouch (1994) ela implicará categorias introduzidas pelo autor destacando as prevalências:

(a) da antecipação do outro – tradução;

(b) da disseminação das letras do nome, que permite o “pôr em relação” entre significantes, forjando cadeias e, assim, possibilitando a composição de uma série de elementos alfabéticos transcrição; e (c) do encontro do escrito com o oral que, com a homofonia, torna possível tomar um a um os elementos grafados e realizar uma outra escrita – transliteração. (BOSCO, 2010, p. 99, grifo nosso)

À luz dessas das categorias, a escrita só é escrita a partir do momento que é traduzida pelo outro e transcrita pelo sujeito/escritor num movimento de transliteração. Desse modo, deve-se considerar que as letras dos primeiros traçados da criança não dependem de uma relação fonêmica: elas são traços distintivos (que não podem ser transcritos nem traduzidos), mas que se articulam na transliteração. Somente quando houver transcrição fonética com traçados propiciados por elementos do nome escrito/transcrito, entra em jogo a homografia/transliteração que promove a emergência de uma escrita passível de um efeito de sentido/tradução.

Mota (2006) e Bosco (2010) reinterpretam, sob efeito desse interacionismo proposto por De Lemos (2002) (que envolve a Psicanálise), a complexa entrada da criança na escrita, sugerindo uma trajetória bem diferente daquela oferecida pela Psicologia e pela Pedagogia, que aposta no processo de internalização – percepto- cognitivista (ANDRADE, 2003) – e externalização (seja na fala, seja na escrita). Diferentemente, entram em questão operações linguísticas (processos metafórico e metonímico), que só podem ser articulados com outra teoria de sujeito – aquela

introduzida pela Psicanálise (do sujeito do inconsciente), que comportam categorias como transcrição/tradução/transliteração como modos de relação do sujeito com a escrita.

Eduardo Calil de Oliveira (1995) desenvolve uma discussão sobre o problema que coloco em foco neste trabalho. No livro Autoria: a criança e a escrita de histórias inventadas, também decorrente de tese, defendida sob orientação de Cláudia De Lemos, ao investigar os processos envolvidos na produção de texto, este é tocado de perto pelas rasuras. O autor aborda os efeitos do diálogo sobre a escrita da redação escolar. Além dos efeitos cruzados entre oralidade e escrita – que comandam uma textualização –, Oliveira (1998) detém-se sobre a rasura – os “tropeços” na trajetória da escrita. Da maior importância é a afirmação, feita por Oliveira (1998) de que as inevitáveis rasuras são necessárias e constitutivas do processo – uma afirmação que nos remete à importância do erro como “dado de eleição” no interacionismo e, também, a Lajonquière (1992) sobre a incidência do simbólico (processo inconsciente) sobre a aprendizagem (que a Psicologia vê como unicamente “consciente”).

Com base nas postulações de De Lemos (2002) sobre a mudança, apresentadas no Capítulo 2, Oliveira (1995) afirma que as relações entre sujeito e texto produzem posições, como a:

a. daquele que procura garantir a grafia correta;

b. daquele que busca um efeito de unidade – o sujeito é deslocado para a posição de “corretor” (a questão gramatical ganha relevo);

c. daquele que busca uma unidade de sentido – o sujeito quer atingir coerência e se coloca numa posição de “intérprete”.

De todo modo, como não há posições subjetivas cristalizadas, tem-se um incessante deslizamento entre posições (leitor, editor, intérprete ou outras) e o processo de textualização não poderia, assim, ser estático – ele é dinâmico: há sempre lugar para o imprevisível, para o inesperado, indica Oliveira (1998). Nesse ambiente, erros e rasuras se inscrevem.