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MOVIMENTOS QUE DESENCADEARAM O SURGIMENTO DESSE NICHO DE

4 CONTEXTUALIZANDO O NICHO DE APRENDIZAGEM MATEMÁTICA QUE

4.3 MOVIMENTOS QUE DESENCADEARAM O SURGIMENTO DESSE NICHO DE

Os primeiros movimentos dessa experiência de convivência iniciaram-se no mês de maio de 2017, bem antes do início da investigação propriamente dita, quando, numa aula de matemática, realizei com os alunos do 8º ano uma entrevista cartográfica, a fim de saber se eles gostariam de participar de uma pesquisa que eu estava desenvolvendo para o curso de Doutorado em Educação, na Universidade de Caxias do Sul. Foi um momento de conversação descontraído e despretensioso, em que os alunos puderam externar quais assuntos despertavam sua curiosidade e desejo em aprender.

No método cartográfico, a entrevista tem como objetivo ampliar a visão sobre determinado fenômeno que ocorre dentro de um contexto, ou seja, entender quais processos, movimentos, rupturas, discursos, silêncios, expressões, etc., se manifestam em convivência; não é algo premeditado, que se estabelece a priori, pois emerge no decorrer da conversação. Pode ser definida mais como uma experiência compartilhada entre os sujeitos envolvidos na pesquisa, do que como um procedimento utilizado para a criação de “dados e informações” sobre determinado fato e/ou situação.

Com o intuito de deixar fluir o que emergia do grupo, e considerando que as minhas palavras poderiam contribuir para o “direcionamento” da conversação, procurei abster-me de falar, fazendo ponderações, apenas, quando intuía ser relevante provocar os estudantes- pesquisadores a pensarem sobre o que gostariam de aprender. Tedesco, Sade e Caliman (2013, p. 309) contribuem dizendo que:

Numa entrevista cartográfica, a linguagem empregada nas intervenções do entrevistador deveria ser a mais vazia de conteúdo determinado possível, mas carregada de sentidos, de modo que o entrevistado se sinta convidado a seguir o fluxo de sentidos possíveis provocado pelo relance, abrindo-se para a experiência em curso.

Dispostos em círculo, os estudantes-pesquisadores foram convidados a falar seguindo uma dinâmica similar àquela utilizada nos Círculos de Construção de Paz48. A conversação foi desencadeada pelo seguinte questionamento: “O que eu gostaria de aprender e por quê?”.

48 Essa dinâmica consiste em dispor todos os participantes em círculo, objetivando conversar sobre determinado tema. Porém, para se manifestar, é preciso ter o “objeto da palavra” (algo que seja representativo para o grupo e que simbolize o direito que todos têm de se expressar). Durante a conversação, vão alternando-se os papéis de quem fala e de quem escuta até que todos possam manifestar-se sobre o assunto em pauta.

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Num primeiro momento, fez-se um grande silêncio (acompanhado de olhares reflexivos) que durou o tempo dos alunos familiarizarem-se com a proposta. Como a entrevista cartográfica constitui-se num “processo de coermergência” (TEDESCO; SADE; CALIMAN, 2013, p. 303), entremeado por diferentes linguagens e signos (ritmo da fala, entonação, tropeços, silêncios, movimentos corporais, etc.) que acabam modulando a expressão do falar e do escutar, entendi o silêncio como uma maneira do grupo se expressar e fiquei aguardando o que viria, num estado de respeito e acolhimento.

Após alguns minutos, um dos alunos me perguntou se poderiam propor qualquer assunto ou deveria estar relacionado à matemática. Quando esclareci que poderia ser qualquer tema do interesse deles, pois iríamos tentar compreender o fenômeno matemático que se manifesta no viver cotidiano, os estudantes-pesquisadores começaram, timidamente, a mencionar alguns tópicos, fruto, possivelmente, da sua curiosidade. Todos puderam externar sua ideia, que foi acolhida e registrada no quadro, numa dinâmica que respeitava o direito que cada um tinha de falar e de ser ouvido.

De acordo com Tedesco, Sade e Caliman (2013, p. 316), um dos maiores desafios da entrevista cartográfica consiste em “acompanhar a experiência do dizer, considerando e alimentando a circularidade intensiva entre os planos do conteúdo e da expressão”, uma vez que a entrevista, como experiência compartilhada, tem a possibilidade de criar outros mundos, como também, de revelar novas formas de ser e viver; implica em estar em acoplamento com o outro, em legitimidade, deixando-se “afetar e ser afetado” (SPINOZA, 2009).

Os tópicos nomeados pelo grupo foram bem diversificados: preconceito x diversidade; funcionamento de uma arma de fogo; tecnologia (programação de um jogo, de um celular ou de um computador; ação dos hackers); reprodução dos seres vivos; aprendizagem humana. Após a visualização dos temas sugeridos, os alunos foram incentivados a buscar um assunto de estudo em comum. A partir de um acordo coletivo, em que cada estudante-pesquisador teve a oportunidade de se manifestar escolhendo um dos tópicos referendados pelo grupo, ficou definido, por votação da maioria, que investigaríamos: “Como é possível criar jogadas dentro de um jogo?”.

Com a finalidade de ampliar a compreensão acerca do que os alunos estavam querendo dizer com “criar jogadas dentro de um jogo”, solicitei que explanassem melhor essa ideia. Disseram, então, que gostariam de “jogar jogos de computador” que permitissem pensar, interagir com o jogo, propor “jogadas criativas” e não só repetir procedimentos

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mecânicos49, sugerindo o Scratch e o Minecraft como possibilidades. Posteriormente, desencadeamos uma conversação para saber qual deles seria escolhido pelo grupo, pois não haveria tempo hábil para a exploração de ambos. A maioria da turma optou pelo Minecraft (três alunos escolheram o Scratch e cinco o Minecraft), argumentando que ele permitia “jogadas” mais dinâmicas e criativas que o Scratch. Ao final da conversação, cada aluno manifestou-se dizendo que aceitava, voluntariamente, participar da pesquisa, pois achavam que assim teriam a oportunidade de “aprender matemática de uma forma divertida” (F).

Foi nesse contexto que concebemos o Nicho de Aprendizagem Matemática, um cenário de convivência, de troca de saberes, ideias e percepções acerca dos conceitos matemáticos, sustentado por movimentos de coordenações de coordenações de ações e por dinâmicas recursivas que possibilitaram a cocriação de diferentes atividades desencadeadoras da aprendizagem matemática. Esse espaço educativo constituiu-se numa oportunidade de transformação estrutural, tanto minha quanto dos alunos, tendo como fio condutor o “respeito e aceitação do outro como legítimo outro em convivência” (MATURANA, 2002).

De acordo com Sacramento Soares, Valentini e Rech (2011, p. 40),

[...] um ambiente de aprendizagem pode ser entendido como um espaço social, constituindo-se de interações sociocognitivas sobre ou em torno de um objeto de conhecimento: um cenário em que as pessoas interagem, mediadas pela linguagem (comunicação) e pela interface gráfica, a partir de estratégias pedagógicas (metodologias/protocolos). Desse modo, os fluxos de comunicação suportam a linguagem em suas diferentes formas, as quais potencializam a construção do conhecimento [...]. Ou seja, o fundamental não é o local em si, nem os recursos ou ferramentas utilizadas, mas o que ocorre nesse local e como isso é significado e ressignificado pelos interagentes.

Esse Nicho de Aprendizagem Matemática constituiu-se num ambiente de aprendizagem que favoreceu a cocriação de atividades pedagógicas com potencial de desencadear mudanças na forma de ver/entender os conceitos matemáticos, uma vez que elas emergiram do interesse/necessidade do grupo. Contudo, um dos desafios experimentados nesse cenário foi vincular a sequência de conteúdos programáticos explicitados nos Planos de Estudos50 da escola com os assuntos/tópicos que foram emergindo da convivência, assim

49 Segundo Tecchio (2017), existem alguns softwares educativos que conduzem o aluno a resolver mecanicamente tarefas sobre um tema específico. São os softwares de instrução ou de exploração autodirigida, usados para exercitar, revisar ou memorizar conteúdos, como: softwares tutoriais, de simulação e de exercitação, entre outros.

50 O currículo da escola é definido pelos Referenciais Curriculares da Rede Municipal de Ensino de Caxias do Sul, sistematizado pela Secretaria Municipal da Educação. Contempla planejamentos trimestrais para cada uma das disciplinas, visando a desenvolver no aluno habilidades, competências, formação de conceitos, constituição de valores e de atitudes.

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como oportunizar, dentro da carga-horária estipulada51, que os alunos pudessem explorar/refletir sobre as atividades que estavam sendo vivenciadas, respeitando o seu tempo de aprendizagem e a sua estrutura (dinâmica de vida).

Essas peculiaridades nos levaram a considerar que nem sempre o “tempo de ensinar e aprender” da escola está em sincronia com o “tempo e o desejo de aprender” do aluno, o que, por vezes, pode limitar o seu interesse pelos estudos, bem como o desenvolvimento da sua criatividade, espírito crítico, reflexivo e investigativo. Almejando fazer aproximações entre os conteúdos explicitados nos referenciais curriculares do município e os assuntos que afloravam da convivência, fui reorganizando, a todo o momento, o planejamento e as dinâmicas pedagógicas que emergiam no grupo, visando a contemplar, não apenas os conteúdos, mas, principalmente, os conceitos norteadores que estavam implícitos nos diferentes tópicos de estudo, através de um movimento de coordenações de coordenações de ações recursivas.

De acordo com Pais (2008, p. 34):

O tempo de aprendizagem é aquele que está mais vinculado com as rupturas e os conflitos do conhecimento, exigindo uma permanente reorganização de informações, e que caracteriza toda a complexidade do ato de aprender [...]. Trata-se de um tempo que não é sequencial e nem pode ser linear, na medida em que é sempre necessário retomar antigas concepções para poder transformá-las.

À medida que nos “aventurávamos” a aprender matemática juntos, convivendo, conversando e cocriando atividades/vivências, várias transformações se manifestavam, tanto na dinâmica de estudo quanto na forma de agir, falar e pensar do grupo, o que levou a um redimensionamento nos processos de ensinar e aprender matemática. Nesse sentido, destacamos a importância do(a) professor(a) e do(a) aluno(a) estarem juntos, num movimento de coordenações de coordenações de ações recursivas que favoreçam o acoplamento

estrutural 52. O aluno se transforma no convívio com o(a) professor(a) e vice-versa, quando os dois aceitam o convite para coabitar num determinado espaço e tempo, num genuíno ato de conviver que poderá desencadear, em ambos, processos autopoiéticos.

Uma das maiores transformações/aprendizagens que vivenciei por meio dessa experiência de convivência foi ter conseguido sair do papel de professora instrucionista (aquela que direciona as atividades, dá instruções e explicações sobre os conteúdos e

51 Nos anos finais do Ensino Fundamental, uma hora-aula tem duração de 50 minutos.

52Parafraseando Maturana e Dávila (2015, p. 503, tradução minha), “falamos de acoplamento estrutural quando

nos referimos à relação de coerência operacional-relacional dinâmica com a circunstância em que se encontra um ser vivo enquanto realiza seu viver na unidade ecológica sensorial-operacional-relacional dinâmica do organismo-nicho que integra.”

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exercícios), para assumir uma atitude de “parceira de aprendizagem”53, aprendendo e ensinando matemática junto com os alunos. Reconheço que isso não foi uma tarefa fácil, pois em vários momentos dessa experiência de convivência tive a sensação de que a docência “escapava das minhas mãos”. Sentia-me insegura e com dificuldade de saber quando poderia/deveria agir de forma a auxiliar os alunos em suas descobertas.

Foi, então, que fiz a opção em me deixar levar pelo “fluxo pedagógico”, ou seja, assentir, confiar nas possibilidades/oportunidades de aprendizagem que emergiam da convivência. Quando me predispus a aprender a lidar com o “caos”, com a surpresa, com o inusitado, com as incertezas, com os “espaços em branco” que existem nos processos educativos, também afloraram novas perspectivas de ser/estar na educação, pautadas na ideia de complexidade existente nos sistemas naturais vivos e não-vivos, na indeterminação, na imprevisibilidade e na incontrolabilidade dos fenômenos.

Consoante Sacramento Soares (2018, p. 61):

Enfatizo a importância dos movimentos internos do sujeito, na busca de entender e identificar sua forma de ser: o que o motiva, o que o angustia, seus anseios, seus desafios, suas alegrias. Esses movimentos são desencadeados quando o sujeito se deixa afetar pelo desejo de conhecer suas emoções e sentimentos, num processo de auto-observação. Quando isso é colocado em movimento, o sujeito estabelece uma interação mútua e dinâmica com suas sensações e com o meio em que atua, resultando em coordenações de coordenações de ações, na forma dele operar recorrentemente, com o meio, no meio e consigo mesmo.

Ao me colocar no papel de um “observador observando” (MATURANA, 2001a), foi mais fácil refletir sobre o que me mobiliza na educação e quais são as minhas aspirações/motivações em ser professora; ao olhar recursivamente sobre minha prática pedagógica, num movimento de coordenações de coordenações de ações e em acoplamento com os alunos, também fui complexificando o meu ser e o meu fazer pedagógico, abrindo espaço para acolher outras formas de agir e de pensar sobre os processos de ensinar e aprender matemática.

No tópico a seguir, estaremos explicitando os movimentos e as transformações/aprendizagens que emergiram desse Nicho de Aprendizagem Matemática, relacionadas à exploração do Minecraft.

53 A ideia de parceria de aprendizagem, aqui apresentada, está relacionada a estar junto, convivendo em legitimidade com os alunos, e ao estar em acoplamento, oportunizar a cocriação de dinâmicas pedagógicas que qualifiquem os processos de ensinar e aprender.

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5 CARTOGRAFANDO CONVERSAÇÕES E MOVIMENTOS DE ENSINAR E