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Mudança de paradigmas preventivos na saúde bucal

COMMUNITY DENTISTRY AND ORAL EPIDEMIOLOGY 149 ANEXO H – NORMAS PARA PUBLICAÇÃO NO PERIÓDICO QUALITY

1.1.1 Mudança de paradigmas preventivos na saúde bucal

Durante muitas décadas, os cirurgiões-dentistas basearam sua atuação profissional na abordagem clínica ou biomédica para prevenção das doenças bucais, concentrando seus esforços em medidas preventivas restritas a prática clínica no consultório e ao aconselhamento sobre hábitos bucais saudáveis aos seus pacientes (WATT; MOYSÉS; SGAN-COHEN, 2015). Essa abordagem preventiva dominante tem sua origem na natureza biomédica da Odontologia, a qual, historicamente, é considerada uma profissão intervencionista (WATT, 2007).

O modelo biomédico ou downstream approach caracteriza-se por sua abordagem reducionista, com foco na doença no nível individual, intervencionista por considerar algum tipo de intervenção profissional em medidas preventivas e pela ênfase no estilo de vida como principal responsável pelo processo saúde-doença (WATT; DO; NEWTON, 2015). O aconselhamento sobre mudanças no estilo de vida, como orientações sobre higiene bucal, atendimento odontológico, fluoretos, dieta e, em menor proporção, fatores de risco baseia-se na crença de que transmitir conhecimento sobre saúde leva a mudanças de comportamento e à melhoria da saúde bucal. Além disso, os profissionais de saúde tendem a adotar uma conduta prescritiva e paternalista, culpando os indivíduos por suas condições de saúde e utilizando o medo como uma ferramenta para mudar hábitos prejudiciais (WATT, 2007; WATT; DO; NEWTON, 2015).

Essa abordagem isolada não é efetiva para manutenção de hábitos saudáveis sustentáveis e para redução das iniquidades em termos de saúde bucal (PUBLIC HEALTH ENGLAND, 2014; WATT; MARINHO, 2005). Essas limitações devem-se à sua ação paliativa e abordagem preventiva de alto risco, as quais não agem diretamente nas principais causas das doenças e, portanto, forçam constantemente os indivíduos a retomarem as condições que os tornaram não saudáveis (WATT, 2007). Adicionalmente, intervenções baseadas no modelo

biomédico assumem que os comportamentos individuais são livremente escolhidos e, por isso, podem ser modificados através do conhecimento e habilidades em saúde. Contudo, as escolhas individuais são determinadas e moldadas pelo contexto social em que vivemos.

Nesse sentido, a mudança do paradigma biomédico para uma atuação mais ampla que considere a influência do contexto em que vivemos como determinante de comportamentos individuais tem sido sugerida pela comunidade científica. O modelo biopsicossocial ou

upstream approach surge para reforçar a necessidade da criação de ambientes sociais que

facilitem e mantenham uma boa saúde à população, fortaleçam a ação comunitária e reorientem os serviços de saúde (WATT, 2007). Essa reorientação busca resultados duradouros na melhoria da saúde bucal e na diminuição das iniquidades através da atuação nas causas das causas, ou seja, nos determinantes sociais, econômico e políticos que determinam o comportamento individual (WATT, 2012).

Os determinantes sociais são determinantes estruturais que configuram e mantêm a hierarquia social através de mecanismos sociais e políticos e, consequentemente, influenciam o modo como as pessoas crescem, vivem, trabalham e envelhecem (MARMOT; COMMISSION ON SOCIAL DETERMINANTS OF HEALTH, 2007). Este processo de estratificação e divisão em classes sociais define a posição socioeconômica individual em hierarquias de poder, prestígio e acesso à recursos, os quais podem levar a exposição ou não a fatores de risco à saúde e vulnerabilidade às doenças (SOLAR; IRWIN, 2010).

A posição na hierarquia social determina saúde a partir de determinantes intermediários classificados como circunstâncias materiais, psicossociais, fatores comportamentais e biológicos e o sistema de saúde (SOLAR; IRWIN, 2010). Em termos gerais, uma posição socioeconômica inferior reflete contextos de vida piores como alimentação deficiente, acesso a água não tratada, ausência de saneamento básico, baixa interação social, piores hábitos de saúde e inacessibilidade aos serviços de saúde. Esses determinantes em conjunto estabelecem um gradiente social para a saúde na população, ou seja, indivíduos com uma posição socioeconômica inferior apresentam maiores riscos às doenças e sofrem com piores condições de saúde (SANDERS, 2007). Esse gradiente é comum para maioria das doenças, incluindo as doenças bucais, as quais compartilham fatores de risco comum à outras doenças crônicas e, portanto, estão sob influência de determinantes sociais (SABBAH et al., 2007).

Nesse contexto, as iniquidades em saúde consistem nas iniquidades socioeconômicas, reconhecidas como um grave problema entre e dentro de países de alta, média e baixa renda (MARMOT; BELL, 2011). A magnitude dessas iniquidades ao redor do mundo não é justificável por razões biológicas. Indivíduos são vulneráveis às doenças e apresentam piores

condições de saúde por motivos sociais, políticos e econômicos e, portanto, essas desigualdades são desnecessárias, injustas e evitáveis (MOSSEY; PETERSEN, 2014; SHEIHAM et al., 2011). A natureza injusta das iniquidades socioeconômicas afeta a capacidade de as pessoas tomarem decisões sobre o processo saúde-doença e reforça a limitação de medidas preventivas baseadas apenas no modelo biomédico.

O entendimento sobre os determinantes sociais das iniquidades em saúde, as fontes de estratificação social na sociedade e sua consequente vulnerabilidade a fatores de risco é essencial para o desenvolvimento de políticas públicas efetivas. Medidas preventivas duradouras devem promover a equidade em saúde, ou seja, reduzir o gradiente social na saúde com ações universais, porém, com maior intensidade para aqueles em maior desvantagem social e econômica (MARMOT, 2010; SHEIHAM et al., 2011). Este processo chamado Proporcionalismo Universal preconiza a equidade em saúde através da justiça social, conferindo possiblidade de ser saudável a grupos historicamente em desvantagem social/econômica (BRAVEMAN, 2014).

A Comissão Sobre os Determinantes Sociais em Saúde (2010) destaca as três principais abordagens para combater as iniquidades socioeconômicas. A primeira é a importância de estratégias contextuais específicas para lidar com determinantes estruturais e intermediários com objetivo de melhorar o contexto social onde as pessoas nascem, crescem, vivem, trabalham e envelhecem. A segunda é a necessidade de ações intersetoriais uma vez que os determinantes sociais são manejados por políticas que transcendem o setor saúde. Ações intersetoriais podem ser estratégias focadas na melhora da equidade em saúde através da educação, atenção a grupos em vulnerabilidade social e políticas intersetoriais orientadas para áreas geográficas que experimentam um contexto de vida marginalizado e frágil. A terceira abordagem é a participação da sociedade e o empoderamento para que os indivíduos se tornem protagonistas ativos de sua saúde. As pessoas têm o direito de participar ativamente da formação social e de políticas de saúde que afetam as suas vidas e, por isso, uma atenção especial deve ser conferida a grupos marginalizados e com falta de poder.

Portanto, a mudança de paradigmas surge da necessidade em lidar com as causas mais distais das doenças e condições de saúde com o intuito de promover a saúde e tornar as sociedades mais igualitárias. Para tanto, é essencial detectar, compreender e propor estratégias para reduzir as iniquidades em saúde. Assim, futuras pesquisas interessadas na redução das iniquidades socioeconômicas devem considerar a interação de fatores sociais, psicológicos, ambientais, econômicos, culturais e políticos, além dos fatores biológicos.