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MUDANÇAS E PERMANÊNCIAS; AVANÇOS E RESISTÊNCIAS

3 VIOLAÇÕES E VIOLÊNCIAS PELOS (DES)CAMINHOS DO DESEJO

4 MÚLTIPLAS REPRESENTAÇÕES E OLHARES: A MÍDIA IMPRESSA, O JUDICIÁRIO E AS FAMÍLIAS

4.5 MUDANÇAS E PERMANÊNCIAS; AVANÇOS E RESISTÊNCIAS

Se existe alguma manipulação ideológica capaz de colocar o povo sempre num estado de dominação, é fazê-lo acreditar que o caminho de emancipação é através do Direito – porque o Direito é, por natureza, e não vai deixar de ser jamais, um instrumento de dominação. (PASSOS, 2003, p. 73)

A esfera institucional-estatal que mais tem ampliado as condições de cidadania dos homossexuais (lésbicas, gays), bissexuais, travestis, transexuais e outras(os) transgêneras(os) no Brasil tem sido a judicial, mesmo ante o

conservadorismo de parte dos servidores do Poder Judiciário – conservadorismo

esse que, em maior ou menor medida, existe em qualquer segmento público ou privado. Por um lado, preocupa a timidez do Poder Executivo para com a elaboração/implementação/avaliação de políticas público-governamentais de combate ao preconceito com base na orientação sexual e no gênero das cidadãs e dos cidadãos (à exceção do Programa Brasil Sem Homofobia, extremamente relevante). Por outro, chama a atenção o relativo silêncio do Poder Legislativo - no âmbito federal em particular - para com o chamado segmento LGBTTT.

A urgência, pois, de as(os) magistradas(os) realizarem uma interpretação justa, humana e socialmente útil das leis, capaz de reconhecer os direitos emergentes, por exemplo, das uniões afetivas entre homossexuais e de lhes possibilitar o acesso à justiça, compreende-se e justifica-se, dentre outras razões, pela omissão do Poder Legislativo e, em especial do Congresso Nacional, que até o momento tenta (parte dele), mas não conseguiu via ação legislativa demonstrar efetiva resposta afirmativa a reforçar o respeito à dignidade de mais de vinte milhões de cidadãs e de cidadãos brasileiros vitimados pelo preconceito de gênero e de orientação sexual que se materializa, por exemplo, por de atos de homofobia, de lesbofobia e de transfobia.

O Direito é um epifenômeno do processo político de um país e todo processo político de um país é uma conseqüência de um modelo econômico pelo qual os setores dominantes optam. [...] Não existe lei boa nem ruim. Lei é como conto de fada: palavras que dizem nada sobre um mundo de fantasia. O Direito é aquilo que a verdadeira correlação de forças na sociedade gera em termos de dominação e de sujeição. [...] Um dos meios de neutralizar a resistência dos oprimidos é a lei boa na aparência. [...] O caminho de emancipação de qualquer povo é a luta política, porque o Direito só pode dar ao povo aquilo que o povo conquistou politicamente. Foram sempre as lutas populares que levaram o povo a conquistar mais espaço político e institucionalizar, juridicamente, esse poder que adquiriu. [...] O caminho não é o Direito. É a política, a luta política”. (PASSOS, 2003, p. 73)

O estágio atual do conhecimento humano impossibilita juízos

discriminatórios e omissões do Estado com base na orientação sexual e no gênero incorporado/vivenciado pelas pessoas. Até o momento, a discriminação por omissão percebida na esfera do Congresso Nacional assenta-se em concepções que jamais poderiam interferir na atividade de representantes legítimos de uma sociedade politicamente laica, pois são insustentáveis do ponto de vista científico.

Os argumentos negativos de bancadas, como a católica e a evangélica, por exemplo, refletindo interpretações ou posicionamentos ideológicos, doutrinários, subjetivos e culturais específicos, não deveriam se sustentar como óbice à aprovação de projetos que, por exemplo, visam a tipificar/criminalizar o desrespeito nas searas afetivo-sexual e de gênero (como o já citado de nº 122/2006), ou que visam a equiparar os efeitos jurídico-familiares das uniões homossexuais aos das relações heterossexuais. O que fundamenta tais projetos não são questões doutrinárias ou de fé, mas a cidadania e a dignidade de pessoas e de famílias

excluídas do ordenamento positivo, por conta de um traço fundamental, que não mais pode ser alvo de discriminação: a orientação afetivo-sexual e/ou de gênero.

Se essa fere dogmas, o Estado não tem a ver com isto, pois é laico, devendo tratar e conceber os seus cidadãos, como "iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza" (art. 5º, caput). Caso contrário, abre mão da racionalidade (prova científica) e afronta princípios constitucionais elementares, admitindo influências outras, de ordem normativo-ideológico-religiosa. O silêncio estatal, além de perverso, é desvio de compromisso (para com os direitos humanos), por omissão, que rompe o pacto social erigido com a Lei Maior de 1988, pois deixa sem reconhecimento e/ou regulação situações da vida atinentes a milhões de cidadãs(aos) brasileiras(os) - LGBTTT.

Diante da parcial omissão do Poder Legislativo Federal, relevante é o caminho de haver mais luta política da parte das(os) LGBTTT (a exigir respostas mais contundentes do Estado). Outrossim, aberta (e, felizmente, já dando sinais de avanços) está a criação jurisprudencial que, inevitavelmente e de modo gradual, tem ampliado o direito constitucional de acesso a uma ordem jurídica justa, igualitária e, socialmente, útil a homossexuais e transgêneras(os) que, solteiros ou em convivência afetiva estável, procuram o Poder Judiciário, para que o Estado lhes "diga" o direito. Como esse direito não precisa estar literalmente previsto na norma escrita, a analogia (aplicação de leis semelhantes que regem casos parecidos com os sub judice) vem conduzindo a fundamentações racionais, equânimes e capazes de efetivar direitos e consagrar diversas garantias relevantes a uma vida digna.

É preciso que as(os) cidadãs(aos) comprometidas(os) com uma ordem social justa – as(os) discriminadas(os), especialmente - reflitam quais representantes dos Legislativos municipal, estadual e federal estão elegendo, para que a via política do reconhecimento dos seus direitos, através da produção legislativa, não continue segregando e gerando injustiças inconcebíveis.

Esperar benefícios somente do Judiciário e do Executivo compromete o surgimento de leis mais condizentes com o atual estágio da humanidade, apesar de as letras das leis, por si sós, sem o devido amadurecimento cidadão e político-educacional, serem, como já assinalado, somente para serem lidas e pouco (ou quase não) aplicadas. Contra a intolerância e o medo omissivo, que permeia muitas “casas da democracia”, basta a verdade inexorável de que é para o povo, isto é, para todos e todas, indistintamente e independente de qualquer natureza, que os

legisladores têm o dever de legislar. No dia em que a produção legislativa se orientar deste modo, haverá mais bem-estar e justiça social, em todas as esferas – para as(os) LGBTTT inclusive.

A ausência de respeito efetivo, na seara dos Direitos Humanos, reflete o grau de ignorância e de deseducação de uma sociedade. Quando a perspectiva ético-humanística não é vislumbrada como prioridade, a partir dos próprios agentes estatais, fica difícil cobrar das demais cidadãs e cidadãos uma postura de salvaguarda da Dignidade Humana.

Quanto às várias violações aos direitos de homossexuais e

transgêneras(os), ainda que muitos crimes, tentados ou consumados, apresentem

contextos parecidos – os homicídios em especial, com questões patrimoniais,

exposições de algumas vítimas, questões subjetivas (comuns a todos os envolvimentos passionais ou amorosos) -, o mais relevante é perceber o preconceito, a rejeição, o ódio e/ou o temor injustificado aos gays, lésbicas, travestis, transexuais e a outras transgêneras(os) como pontos comuns à situação de relativa ou total insegurança que circunda maior parte destas pessoas e suas famílias no Brasil.

Independente da orientação sexual do indivíduo ou da forma como esse se comporta (por se perceber, ser ou estar temporariamente dentro deste ou daquele espectro de gênero), é preciso que hajam as devidas punições e reparações, em se verificando violação a direito fundamental, por conta da sexualidade/afetividade ou do modo de agir (que remeta ao gênero) de um determinado sujeito.

Nos casos em que seja possível constatar a orientação sexual da vítima, de

per si, como o motivo preponderante pelo qual a mesma foi assassinada, por se estar diante de grave e específica violação de Direitos Humanos, é louvável toda iniciativa de conscientização em torno da preservação da vida – no caso, das(os) LGBTTT, que já constituem, por si mesmos, grupos populacionais vulneráveis à discriminação em face de uma sociedade ainda heterossexista e machista, como a brasileira. Assim, vítimas de diversos tipos de desrespeito, desde cedo, gays, lésbicas, travestis, transexuais e outras(os) transgêneras(os) compõem segmentos populacionais que sofrem violações diuturnamente, do ponto de vista jurídico-qualitativo, como já visto, em especial, no Capítulo 1.

A garantia da vida humana não admite restrição ou distinção de qualquer espécie. Ou seja, protege-se a vida humana de quem quer que seja, independente de raça, sexo, idade ou condição social. (PRADO, 2006, p. 57).

Independente da forma como as diversas manifestações de orientação sexual e os comportamentos/afirmações de gênero ainda sejam vislumbrados, (in)tolerados e/ou (não)aceitos no Brasil, não se pode falar em cumprimento dos objetivos fundamentais previstos no artigo 3º da Constituição Federal (especialmente o constante no inciso IV), quando, por exemplo, uma(um) só homossexual seja assassinada(o) por conta da sua condição afetiva ou sexual. Com efeito, um Estado que se formaliza Democrático, fundado no pluralismo e na prevalência dos Direitos Humanos, não pode diferenciar na investigação de um homicídio ou na aplicação da lei penal, por conta de um aspecto subjetivo (orientação sexual/transgeneridade) do sujeito passivo do delito.

Além de haver homicídios - praticados contra homossexuais e transgêneras(os) brasileiras(os) - motivados pelo medo injustificado ou aversão irracional às lésbicas, gays, travestis, transexuais e transgêneros – frutos, pois, da

homofobia, lebofobia e transfobia, respectivamente -, as veiculações da mídia sobre a existência de supostos grupos de extermínio destas minorias conduzem à constatação de que, longe de ser um país em cujo multiculturalismo prepondera o respeito efetivo às diversas nuanças da sexualidade e do gênero, o Brasil carece de uma educação satisfatória em matéria de Direitos Humanos e de respeito à dignidade das pessoas.

O ódio, a aversão, o preconceito e a rejeição aos amantes do mesmo sexo e aos que fogem ao esperado quanto ao gênero (por conta do sexo biológico real ou suposto), na maioria dos casos, aparecem como parte - especial ou secundária - da motivação comportamental dos autores nos assassinatos anti-LGBTTT. Com efeito, mesmo nas situações de claro envolvimento por interesse patrimonial ou de morte para subtrair bens materiais da vítima, a forma como são perpetradas as agressões e realizadas as lesões, bem como as marcas deixadas nos corpos dos cadáveres revelam um dolo pelo qual a crueldade e o ódio extrapolam o simples desejo de matar para se locupletar ou atingir outros fins.

Uma das características mais chocantes do homicídio homofóbico é o requinte de crueldade como gays, lésbicas e travestis são executados, comportando, comumente, elevado número de golpes, a utilização de múltiplas armas e a mutilação de membros – particularmente dos órgãos genitais ou desfiguramento do rosto e cabeça. (MOTT, 1997, p. 62)

Manifestando-se especificamente sobre homicídios anti-homossexuais, o

então Secretário de Segurança Pública de São Paulo, E. Muyaert (apud MOTT,

1997) afirmou: “assassinato de homossexual é contagioso. Se esses crimes não são

reprimidos imediatamente, podem se transformar em epidemia”. Entretanto, para

que haja a efetiva repressão e a punição dos(as) acusados(as), a partir de todo o aparato de segurança pública e de justiça criminal (engajamento integrado dos membros das polícias, do Ministério Público, dos servidores da justiça comum - área criminal - e dos magistrados da seara penal), é necessária a sensibilização prévia para o fato de que os homossexuais, bissexuais, travestis, transexuais e outras(os) transgêneras(os) compõem minorias jurídico-qualitativamente mais propensas a sofrerem violações a direitos fundamentais, por conta do preconceito que se volta contra as suas orientações/vivências afetivo-sexuais e identidades/papéis de gênero. E, dentre os bens violados, a vida aparece como o alvo mais visado pelos homofóbicos, lesbofóbicos e transfóbicos (ou seja: pelos que nutrem preconceito, ódio ou aversão aos gays, lésbicas, travestis, transexuais e outras(os) transgêneras(os)).

É preciso rever as construções ideológicas e representações de que o Brasil seja um país efetivamente respeitoso para com as diferenças. Como se sabe,

Diversos relatórios elaborados por organizações nacionais e internacionais preocupadas com os direitos humanos apontam que as execuções sumárias são um dos mais sérios problemas de direitos humanos do Brasil. Anualmente, são centenas os brasileiros que morrem a mando de grandes proprietários de terras, nas mãos de grupos de extermínio, em conflitos privados (com a tolerância do Estado) ou em confrontos com a polícia. A razão para que esses crimes continuem acontecendo é a inexistência, no Brasil, de uma política de Estado destinada a punir exemplarmente as Execuções Sumárias, Arbitrárias ou Extrajudiciais - seja patrocinada por agentes do estado, seja por cidadãos comuns. Falta uma política do Estado brasileiro que demonstre, claramente, sua determinação em coibir a ocorrência desse tipo de crimes. Falta, igualmente, uma atuação do Estado brasileiro no sentido da formação democrática da cidadania brasileira, de modo a evitar a banalização do homicídio, como tem acontecido no país (JUSTIÇA GLOBAL, 2001, p. 3).

Diante do número de crimes de ódio contra homossexuais e transgêneras(os) - dentre os quais, destacam-se os homicídios dolosos por ódio, preconceito e discriminação -, é relevante a continuidade, por parte dos grupos LGBTTT e por outras ONGs comprometidas com os Direitos Humanos, da catalogação e do levantamento de dados acerca das violações a direitos por conta da homo(lesbo)(trans)fobia, já que realizar estudos, divulgá-los e destacar o perigo da omissão estatal frente às violações aos direitos destas minorias não têm sido interesse da maior parte das autoridades da seara penal. Como já demonstrado, deve-se ter cautela com a interpretação de tais dados, para se evitar a proposital ou exagerada amplificação da homo(lesbo)(trans)fobia no que tange à motivação dos homicídios.

Se o Poder Judiciário, como um todo, mesmo refletindo - pontualmente - o grau de amadurecimento da sociedade, ainda apresenta posturas preconceituosas de resistência ante a conquista de direitos civis (na seara familiar, por exemplo) que beneficiam as(os) LGBTTT, no âmbito criminal não poderia ser diferente. A transformação deve vir de uma luta de conscientização político-educacional, primeiro, a partir da constatação de que a transgressão a um direito fundamental atinge cada um e todos os cidadãos e cidadãs, a um só tempo. Até que ponto o Estado não se deu conta do comprometimento internacionalmente negativo de tais violações, da própria gravidade das mesmas ou é conveniente no desinteresse punitivo dos agressores, não se pode confirmar.

Entre a (homo)(lesbo)(trans)fobia – infelizmente, detectada dentro do próprio aparato judiciário - e o efetivo respeito à dignidade e à integridade de todos e de todas - sem distinção de qualquer natureza, como exige a Lex Mater de 1988 -, o caminho a ser percorrido exige um compromisso real e persistente para com os Direitos Humanos, que não surgirá somente com a feitura de uma Dissertação como esta. Mas todas as iniciativas são plausíveis, porque a reflexão e o senso crítico-transformador, a partir de bases sólidas da construção doutrinário-científica, é um dos passos para a transformação social (a começar pelos que têm acesso ao conhecimento).

Pensar um Direito Penal garantista, sob o viés dos direitos das minorias, é um passo imprescindível para imprimir perspectiva ético-humanística na área da segurança pública e na justiça criminal como um todo. Até que isso seja efetivado,

entre direitos, violações, punições e o sentimento de indignação diante da impunidade, resta a coragem de continuar a construção de uma sociedade mais respeitosa, livre, justa e solidária, sem distinção de qualquer natureza. Eis o desafio posto, que a conclusão deste trabalho aponta como possibilidades para necessários re-começos.