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Mudanças no ecossistema mediático e nas políticas públicas

4. A Educação para os Media e a regulação

4.2. Mudanças no ecossistema mediático e nas políticas públicas

Dado o período temporal analisado neste estudo, é significativo que a década tenha, por assim dizer, arrancado com a “Estratégia de Lisboa”, adoptada pelo Conse-lho Europeu na Primavera de 2000 e que se propunha transformar a Europa “na eco-nomia do conhecimento mais competitiva e dinâmica do mundo, capaz de um cresci-mento económico sustentável, acompanhado da melhoria quantitativa e qualitativa do emprego e de maior coesão social”. Independentemente das intenções enuncia-das e enuncia-das metas perseguienuncia-das, esta “estratégia” deu origem a iniciativas e programas de acção, quer no âmbito da União Europeia quer entre os seus membros. O Plano Tecno-lógico português, apresentado em 2005, constitui, no plano nacional, um desses resul-tados e sinais, com subprogramas que se propuseram tornar possível o acesso genera-lizado da população e, em especial, as escolas públicas de todos os níveis de ensino e os alunos ao computador e à Internet de banda larga.

No plano europeu, porém, foi-se evidenciando a necessidade de complementar a expansão da infra-estrutura tecnológica e a difusão das tecnologias com a aposta na promoção de competências em TIC no conjunto da população, frequentemente asso-ciada ao conceito de “literacia digital”. Mais do que isso, a experiência comum dos acto-res no terreno e os dados através dela obtidos, mas também a própria pesquisa cien-tífica foram evidenciando duas conclusões fundamentais e interdependentes: quando considerado do ponto de vista das pessoas e dos grupos, o acesso às redes e platafor-mas digitais é muito mais do que a mera provisão ou fornecimento de um serviço aos

– Os Estados Partes reconhecem os direitos da criança à liberdade de associação e à liberdade de reunião pací-fica (artº 15º, nº 1);

– Os Estados Partes reconhecem a importância da função exercida pelos órgãos de comunicação social e asse-guram o acesso da criança à informação e a documentos provenientes de fontes nacionais e internacionais diversas, nomeadamente aqueles que visem promover o seu bem-estar social, espiritual e moral, assim como a sua saúde física e mental (artº 17º).

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potenciais utilizadores, suscitando complexos problemas do ponto de vista sócio-cul-tural e político (cf. Livingstone, 2003) 3; por outro lado, a disponibilização da informa-ção online não basta, se não se investe igualmente na formainforma-ção para o acesso a – e a gestão de – tão vastos volumes de informação (Jones, cit. in Papacharissi, 2002). Nas palavras de Livingstone, a capacidade de ajuizar e discernir, na análise da informação acessível, entre o que é rigoroso e o que é enviesado, o confiável e o suspeito é “cru-cial para a literacia” e para a sua abordagem numa perspectiva crítica e requisito para a promoção de uma cidadania crítica (Livingstone, id.: 12).

Algumas destas preocupações e advertências, de evidentes incidências políticas, estão presentes nos esforços que, sobretudo a partir da segunda metade da primeira década do século XXI, a União Europeia desenvolveu e que culminaram, do ponto de vista normativo e legal, como vimos no capítulo 4, na Directiva de 2007. Esse diploma, que tem curiosamente como referencial não os novos media e as redes digitais, mas os serviços dos media audiovisuais, é claro, contudo, ao sublinhar os pontos seguintes:

enuncia uma perspectiva da literacia mediática orientada para o conjunto do

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ecossistema dos media, sem descurar “o amplo leque de oportunidades ofere-cido pelas novas tecnologias da comunicação”;

preconiza uma abordagem desta literacia orientada não apenas para as

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petências, mas também para o desenvolvimento de conhecimentos e das capa-cidades de compreensão;

aposta numa perspectiva de autonomia dos sujeitos e dos grupos, ao defender

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que, promovendo o exercício de escolhas informadas e conscientes da natu-reza dos conteúdos e serviços dos media, as pessoas serão “mais capazes de se proteger a si próprias e às respectivas famílias face a matéria ofensiva ou danosa”;

finalmente, ao propugnar uma literacia relativa aos media que se dirija a todos

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os sectores da sociedade, a directiva não se fica pela mera declaração de inten-ções, mas aposta claramente em formas de monitorizar a sua aplicação. Indissociável desta directiva está todo um processo que passou pela organização de workshops, pelo apoio a dezenas de projectos envolvendo vários países comuni-tários (nomeadamente através de programas como a eLearning Initiative, Safer Inter-net Plus, Youth in Action, etc.) e lançando, a partir de 2006 e da criação de um grupo de peritos, um conjunto de estudos que têm vindo a permitir um conhecimento de

3 Livingstone, por exemplo, liga expressamente todo o debate em torno do “fosso digital” (digital divide”) à lite-racia para os media. Cf. Livingstone, S. (2003). “The Changing Nature and Uses of Media Literacy.” MEDIA@LSE Electronic Working Papers No 4. URL: http://eprints.lse.ac.uk/13476/ (acesso em: 6.10.2010)

situação, mas também a definir eixos de intervenção e, mais recentemente, a definição de competências de literacia mediática exigíveis aos cidadãos comunitários e a defini-ção de processos de aferidefini-ção e avaliadefini-ção dessas competências.

É possível evidenciar a coexistência ou diálogo entre diferentes modos de enten-der a Educação para os Media, subjacentes a estes processos de definição de uma polí-tica da União Europeia neste campo. Vale a pena acompanhar, de forma sumária, o modo como um especialista desta área, David Buckingham, traça a trajectória das filo-sofias inspiradoras das acções e discursos em torno da Educação para os Media. Para este investigador da Universidade de Londres, as preocupações iniciais orientaram-se no sentido de proteger os públicos infantis, em ordem a armá-los contra os possíveis malefícios e perigos dos media. Progressivamente foi-se adoptando uma perspectiva mais assente na capacitação (empowerment) e na formação que permita “compreen-der e participar activamente na cultura mediática” que envolve os mais novos. Ou seja, de uma perspectiva proteccionista foi-se transitando para uma abordagem orientada para a preparação e a capacitação.

Todavia, a percepção dos riscos e problemas que os próprios media tematizam e exploram, sempre que há casos para notícia, associada a uma ideia comum de que os media são altamente eficazes na sua capacidade de influenciar (os outros e, em par-ticular as crianças) fazem com que a orientação proteccionista (por motivos morais, culturais ou político-ideológicos) permaneça e se recrie, a cada novo meio que surge. Esta permanece e evidencia-se, na década inicial do séc. XXI, em torno do conceito de “ambiente seguro”, de que são exemplos quer os debates em torno do v-chip e as medidas implementadas nos primeiros anos da década para proteger as crianças face a conteúdos e canais televisivos4 e, depois, os programas relacionados com a “Internet segura”.

Analisando as políticas europeias, nota-se, aliás, uma espécie de jogo simultâneo em dois tabuleiros, ao longo da última década: enquanto se foi desenvolvendo um

4 O v-chip é um dispositivo inventado no Canadá, em meados dos anos 90, que permite a pais e educadores bloquear conteúdos televisivos. Surge normalmente associado à aplicação de um sistema de classificação de programas. A Federal Communications Commission (FCC), nos Estados Unidos, obrigou a que todos os apare-lhos lançados no mercado depois de 1 de Janeiro de 2000 estivessem apetrechados com o v-chip. No entanto, num relatório oficial da FCC apresentado em 2007, reconhecia-se que o uso de tal dispositivo era diminuto e con-cluía-se mesmo que o dispositivo parecia ser de eficácia reduzida na protecção das crianças. [Cf. FCC (2007), Vio‑

lent Television Programming And Its Impact On Children, p. 14. URL:

http://hraunfoss.fcc.gov/edocs_public/attach-match/FCC-07-50A1.pdf, acesso: 2.1.2011]. Sobre esta matéria, escreveu um dos autores deste trabalho: “É preciso dizer que o v-chip pode também tornar-se num paliativo ou numa escapatória que os políticos arranjam (com a legitimação do factor tecnológico) para deixar tudo na mesma, no fundamental. O v-chip pode levar a dois efei-tos perversos, cada qual mais preocupante: des-responsabilizar os pais, que passam a confiar na tecnologia para não prestarem grande atenção aos usos da televisão por parte dos seus filhos; e pode levar à desculpabilização dos operadores televisivos, que se sentirão mais à vontade na sua actuação. Além de que exige uma iniciativa e uma disponibilidade da parte dos pais que é justamente aquilo que faz falta, tantas vezes, na vida do dia a dia” [Pinto, M. (2002) Televisão, Família e Escola. Lisboa: Editorial Presença].

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programa coerente de acção voltado especificamente para a literacia para os media numa perspectiva de socialização e participação na vida sócio-económica e política, foi sendo colocado no terreno um conjunto de outros programas voltados para a sensibi-lização para os riscos e potencialidades da Internet. Não sendo, de todo, facetas incom-patíveis, é também uma forma de, através das políticas, se responder às preocupações de diferentes tipos de actores e à percepção de diferentes tipos de necessidades.

Alguns autores têm chamado a atenção para a relação inextricável existente entre a literacia para os media e literacia da informação, por um lado, e os direitos huma-nos e a liberdade de informação e de expressão, por outro (Frau-Meigs, 2008). O argu-mento subjacente é o de que o investiargu-mento na autonomia crítica face aos media e na capacidade de comunicação responsável através dos media constituem dimensões axiais da capacitação das pessoas e das comunidades para a cidadania e para a partici-pação na sociedade. Brian O’Neill chega a afirmar que “a base fundamental da literacia mediática enquanto preocupação da política pública decorre da sua filiação nos direi-tos da comunicação, os quais, por sua vez, derivam dos direidirei-tos humanos fundamen-tais” tal como foram formulados nas principais declarações internacionais.

O Artigo 19 da Declaração Universal dos Direitos Humanos (DUDH), adoptada em 1948, afirma que:

Todo o indivíduo tem direito à liberdade de opinião e de expressão, o que implica o direito de não ser inquietado pelas suas opiniões e o de procurar, receber e difun‑ dir, sem consideração de fronteiras, informações e ideias por qualquer meio de expressão.

Contudo, desde o início dos debates que levaram à aprovação da Declaração foram emergindo perspectivas e posições críticas relativamente a uma visão da liber-dade de informação e de expressão que poderíamos dizer desequilibrada e assimé-trica, em favor dos editores, dos jornalistas e, em geral, dos grandes media, e em detri-mento dos direitos dos públicos e dos cidadãos.

Ainda que marcado por grandes controvérsias políticas e ideológicas, um assim designado “direito de comunicar” foi fazendo o seu caminho, pelo menos desde que o francês e alto quadro dos serviços de Informação Pública da ONU, Jean d’Arcy, o ‘baptizou’, num artigo publicado em 1969. Ele próprio seria um interveniente activo nos vivos debates que se desenrolaram ao longo dos anos 70 do século XX, nomea-damente nos trabalhos da Comissão MacBride, criada em 1976 pela UNESCO. O rela-tório Many Voices, One World, que dela resultou deu especial ênfase a uma “Nova Ordem Internacional da Informação” e à “democratização da comunicação”. Susten-tava, a dado passo, que “as necessidades da comunicação numa sociedade democrá-tica devem ser respondidas através da extensão de direitos específicos, tais como o

direito a ser informado, o direito de informar, o direito à privacidade, o direito a parti-cipar na comunicação pública – todos eles elementos de um novo conceito, o direito de comunicar”. Apanhado nos vendavais da Guerra Fria e ele próprio agente desses vendavais, o relatório foi abandonado, na sequência da crise motivada pelo abandono da UNESCO por parte dos Estados Unidos e Reino Unido e, com ele, a própria proble-mática em torno do “direito a comunicar”, que desapareceu da agenda da UNESCO (Hamelink, 2003).

Este direito tornou-se motivo de profundas dissensões porque, na sua formula-ção inicial, saída dos debates político-ideológicos da ordem internacional que predo-minava no final dos anos 70, era entendida no Ocidente como uma potencial ameaça à liberdade de expressão, na medida em que atribuía aos Estados novos papéis que assegurassem os direitos de expressão e publicação não apenas das indústrias mediá-ticas, mas dos cidadãos e grupos e organizações sociais.

Analisando hoje este processo, o que se pode concluir é que o fundo ou funda-mento deste novo e pretendido direito é o reconhecifunda-mento do ser humano na sua dimensão relacional e comunicativa, como membro de uma comunidade, que não apenas precisa de ser informado, mas que tem o direito (e o dever) de participar nos processos comunicativos da sociedade em que vive e que incluem, na expressão de Raboy & Shtern (2010), a protecção dos direitos de “procurar, receber, transmitir, ouvir, ser ouvido, aprender, criar, responder e mesmo permanecer em silêncio”, e a consciên-cia de que a democraconsciên-cia “implica também responsabilidade, constrangimentos e limi-tações, no quadro dos quais o exercício dos direitos de um grupo produz impacto nos direitos de outros”.

Esta chamada de atenção para os processos da comunicação – particularmente na interactividade e na participação e nos recursos e medidas que eles supõem – e não apenas para os conteúdos das mensagens adquiriu relevância e oportunidade redo-bradas com os progressos tecnológicos e, particularmente, com a Internet, a partir da segunda metade dos anos 90. E a prova de que os debates das duas décadas anterio-res não foram em vão está em que, quando a ONU decidiu convocar a Cimeira Mundial da Sociedade da Informação5, em 2001, propôs-se desencadear um processo de par-ticipação não apenas aberto aos governos dos países membros e aos operadores das indústrias dos media e das comunicações, mas também às organizações representan-tes da sociedade civil. Apesar das intenções declaradas à partida, os trabalhos das duas fases da cimeira não avançaram significativamente no domínio do debate e reconhe-cimento dos direitos de comunicação, tendo os esforços desenvolvidos por diferentes sectores redundado em meras declarações de intenção, sem compromissos ou metas

5 Desta vez, sintomaticamente, organizada já não pela UNESCO, mas pela União Internacional das Telecomuni-cações.

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claramente definidos (Hamelink & Hoffman, 2008). O assunto continua, no entanto, na agenda de muitos investigadores das ciências da comunicação e activistas dos media, os quais reconhecem que se torna necessário aprofundar e esclarecer muitas questões que permanecem em aberto (Hamelink & Hoffman, 2008).

Em todo o caso, importa sublinhar que o papel desempenhado pela UNESCO no sentido de processos comunicativos mais participados esteve sempre próximo do desenvolvimento da Educação para os Media, especialmente – mas não só – em países e zonas do mundo em vias de desenvolvimento, como a América Latina, a Índia, etc.