• Nenhum resultado encontrado

4. A Educação para os Media e a regulação

4.3. Regulação e Educação para os Media

Existe hoje, no plano internacional, uma convicção partilhada de que a Educação para os Media deve iniciar-se o mais cedo possível, desde logo na família e nas institui-ções de prestação de cuidados a crianças de tenra idade, e prolongar-se ao longo da vida. Este ponto figurava já na Declaração de Grünwald, da UNESCO, datada de 1982 (cf. Anexo II) e continua a concitar as atenções, não apenas porque a televisão, nomea-damente, continua a ser um factor-chave na estruturação da paisagem mediática, mas porque os diferentes ecrãs se tornaram pontos de acesso a universos cada vez mais vastos, ricos e complexos de informação e comunicação.

No âmbito da União Europeia, esta proposta tem-se desenvolvido em diálogo e sob a influência de duas orientações cuja convivência nem sempre é fácil: a da cidada-nia e a do mercado. Ao lançar uma consulta pública sobre iniciativas e práticas de lite-racia para os media, esta dupla vertente não podia estar mais explícita quando obser-vava que ela “capacita os cidadãos com o pensamento crítico e as competências de resolução criativa de problemas em ordem a fazer deles consumidores esclarecidos e produtores de conteúdo”6.

Ainda mais orientada para o lado dos consumidores é a Directiva de 20077, do Parlamento e do Conselho, que estabelece que “a ‘Educação para os Media’ visa as com‑ petências, os conhecimentos e a compreensão que permitem aos consumidores utilizarem os meios de comunicação social de forma eficaz e segura. As pessoas educadas para os media são capazes de fazer escolhas informadas, compreender a natureza dos conteúdos e serviços e tirar partido de toda a gama de oportunidades oferecidas pelas novas tecnolo‑ gias das comunicações. Estão mais aptas a protegerem‑se e a protegerem as suas famílias

6 Cf. comunicado da Comissão Making sense of today’s media content, de 6 de Outubro de 2006. URL: http:// europa.eu/rapid/pressReleasesAction.do?reference=IP/06/1326&f (acesso: 05.12.2010).

7 Directiva 2007/65/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 11 de Dezembro de 2007, relativa à coordena-ção de certas disposições legislativas, regulamentares e administrativas dos Estados-Membros relativas ao exer-cício de actividades de radiodifusão televisiva.

contra material nocivo ou atentatório. A Educação para os Media deverá por conseguinte ser fomentada em todos os sectores da sociedade e os seus progressos deverão ser acom‑ panhados de perto” (al. 47 do preâmbulo).

O acesso à Internet e a sua utilização expedita e responsável; o combate à exclu-são digital; a implementação de programas e campanhas em favor de uma Internet segura; e fazer escolhas informadas enquanto consumidor são algumas das orienta-ções e objectivos que têm vindo a impor-se nas políticas europeias dos últimos anos. Ainda que estas políticas surjam frequentemente preocupadas com o fomento da par-ticipação dos cidadãos, é evidente a existência de tensões entre a formação do pensa-mento crítico e as competências de uso eficiente, entre a participação activa nos pro-cessos comunicacionais e sociais e a produção de mão-de-obra funcional ao mercado. Alguns autores vão mesmo ao ponto de sugerir que a cidadania e a participação é o preço que as políticas no terreno estão a pagar para fazer passar melhor o objectivo de criação de um mercado europeu competitivo na sociedade da informação e do conhe-cimento (Buckingham, 2009: 16).

Os caminhos da definição de políticas nunca são lineares e de sentido único. Em qualquer caso, a verdade é que a segunda metade da primeira década do século XXI assistiu a um autêntico frenesi de programas, concursos de investigação, comunica-ções, conferências e recomendações nesse sentido. A directiva referida, uma vez trans-posta para o quadro jurídico dos Estados membros passa a ser um instrumento de referência, que supõe a prestação de contas e a avaliação de resultados a partir de Dezembro de 2011, e daí para diante de três em três anos, conforme determina o seu artigo 33º.

Mas este caminho vinha sendo traçado na União Europeia desde muito antes. Merece talvez destaque, no nosso contexto, a comunicação de 2003 sobre “O futuro da política de regulação europeia no audiovisual”. Num quadro de avaliações de cami-nhos percorridos e de recomendações para o futuro, afirma-se com clareza nesse documento8 a emergência da literacia para os media como uma dimensão fundamen-tal num quadro de mudança profunda e acelerada da paisagem mediática. O impacto sócio-cultural das novas redes e plataformas digitais e da crescente individualização do consumo mediático levavam a Comissão a afirmar, nessa ocasião, a necessidade de “ensinar as crianças (e os pais) a usar os media de forma efectiva”, sendo que “saber onde encontrar informação e como a interpretar” representava uma “competência essencial”. Os programas e estudos que foram posteriormente lançados e que

culmi-8 Communication from the Commission to the Council, the European Parliament, the European Economic and Social Committee and the Committee of the Regions – The future of European regulatory audiovisual policy. URL: http://j.mp/hy3RTo (acesso: 08.01.2011]

59

naram, em 2007, na revisão da Directiva da Televisão sem Fronteiras exprimem uma coerência assinalável do percurso já então desenhado.

É neste enquadramento que devem ser compreendidos os passos que vão sendo dados no campo específico da regulação, onde a situação apresenta, no plano da União Europeia e, mais ainda, no plano internacional, diferenças abissais. Dir-se-ia que, na maior parte dos países que instituíram entidades com funções de regulação dos media, a relação com a Educação para os Media é ténue, indirecta e pautada ainda por uma abordagem negativa e protectora: visa sobretudo precaver potenciais male-fícios que possam advir da exposição a (e do contacto com) conteúdos e situações de ameaça e de perigo para os direitos e a dignidade das pessoas. Inscreve-se aqui aquela dimensão que mais frequentemente surge nas funções de regulação: a “protecção de menores” (uma expressão que é toda ela uma condensação de crenças e atitudes pro-fundamente enraizadas no senso comum).

O que ocorre sobretudo a partir do início do séc. XXI é a percepção de que essa abordagem paternalista da regulação já não bastava para fazer face às mudanças tec-nológicas e às práticas mediáticas a ela associadas. Tornava-se necessário apostar, ao mesmo tempo, na capacitação das pessoas, fossem elas crianças ou adultos, para vive-rem com – e tiravive-rem partido de – as novas possibilidades. A Educação para os Media surgia assim como um caminho a agarrar.

É verdade que, desde há muitos anos, por acção de activistas e de políticos com visão de futuro, a Educação para os Media era já praticada de forma sistemática, encon-trando-se mesmo inscrita no currículo escolar, como acontecia no Canadá (talvez o país mais avançado neste terreno), no Reino Unido ou na Austrália. Nesses e noutros países, foram os debates dos anos 60 e 70 em torno dos efeitos da violência televisiva que levaram a adoptar medidas de fundo que não se limitaram à tal perspectiva proteccio-nista. O que é certo é que esse modelo dominante de difusão colectiva e de comunica-ção de massas é fortemente questionado particularmente com a segunda geracomunica-ção da web, quando o monopólio da edição e publicação de conteúdos é questionado pelas novas modalidades comunicativas que explodiram no dealbar do novo século.

Ao desencadear o processo legislativo que levaria à aprovação do Communica-tion Act de 2003, o Reino Unido criava uma entidade reguladora dos media – o OFCOM (Office of Communication), à qual era atribuída, para surpresa de alguns dos estudio-sos e activistas da ‘causa’ da literacia mediática, o dever de promover a literacia para os media. Esta vertente da acção do OFCOM tornar-se-ia, em menos de dez anos, uma das mais salientes, a par do switch-off analógico, das redes de próxima geração e do futuro do serviço público de televisão.

Recorrendo a uma definição simples de literacia para os media – capacidade de aceder a, compreender e criar comunicação em diversos contextos – o OFCOM define o seu trabalho como uma aposta em dar às pessoas “oportunidade e motivação para

desenvolver competência e confiança, a fim de poder participar na sociedade digital” e “informar e capacitar as pessoas para que sejam capazes de gerir a sua própria activi-dade relativamente aos media (quer no plano do consumo quer no da criação)”.

Para tal, a acção desenvolvida nos anos que leva de existência caracteriza-se pela sinalização e valorização das iniciativas existentes; pelo estabelecimento de redes e parcerias, procurando levar instituições e organizações diversas a promover a litera-cia para os media; e pela investigação relacionada com os níveis de literalitera-cia nos diver-sos sectores da sociedade, investigação de que resultou já um assinalável acervo de documentos.

A Austrália, um outro país que tem desde 2005 uma nova entidade reguladora – ACMA – Australian Communications and Media Authority – assente na convergência do broadcasting, Internet e telecomunicações, tem vindo a apostar de modo cada vez mais saliente na literacia mediática, nomeadamente através da encomenda de inves-tigações relacionadas especificamente com este campo9, assim como com as práticas mediáticas em contexto familiar e com a publicidade televisiva dirigida a crianças. Isto num país onde esta matéria esteve bastante presente na formação escolar das jovens gerações.

Curiosamente, no Canadá, outro país cujo sistema educativo apostou forte, desde os anos 70, na Educação para os Media, o regulador – CRTC, Canadian Radiotelevision and Telecommunications Commission – não tem um mandato explícito na área que aqui estudamos. Mas já teve um forte envolvimento, nomeadamente nos anos 70, na sequência das polémicas e debates relacionados com as causas de mortes violentas com armas de fogo em contexto escolar. Ainda hoje existe uma instituição canadiana, a Media Awareness Network que resultou directamente de iniciativas tomadas nesse período.

Diversos outros países têm vindo a incorporar a Educação para os Media na esfera de acção dos reguladores. A Irlanda, que segue de bastante perto o modelo do OFCOM, na entidade criada pela Broadcasting Bill aprovada em 2008 (e publicada no ano seguinte) atribui à BAI – Broadcasting Authority of Ireland uma função clara na promoção da Educação para os Media, mas num plano auxiliar relativamente a outras das suas atribuições. A AGCOM italiana – Autorità per la Garanzia nelle Comunicazione reconhece que para garantir a liberdade, os cidadãos terão de estar informados e alfa-betizados e que lhe cabe um papel nessa missão, indo mesmo além daquilo que a lei explicitamente lhe exige. Por sua vez a Alemanha, que é um país em que o sistema de broadcasting, assim como o sistema educativo, é competência dos diferentes länder,

9 Cf. Penman, R; Turnbull, S. (2007) Media Literacy – concepts, research and regulatory issues. ACMA/Common-wealth of Australia. URL: http://www.acma.gov.au/webwr/_assets/main/lib310665/media_literacy_report.pdf [acesso: 23.12.2010]

61

tem na conferência de directores das entidades reguladoras dos diferentes länder o apoio e a promoção da literacia mediática como uma das suas tarefas mais salientes. E em todos os estados há iniciativas e fundos para levar a cabo esse trabalho, se bem que a concretização varie bastante de estado para estado.

Em Espanha, têm funcionado conselhos reguladores em algumas das comuni-dades autónomas, com destaque para o Conselho Audiovisual da Catalunha que, além de apoiar investigações nesta área, tem colaborado directamente com projec-tos de âmbito escolar e o de Navarra que editou recentemente o volume “Educación para la Comunicación y la Cooperación Social” (2010). No mesmo Estado, foi recente-mente criado o Conselho Estatal de Meios Audiovisuais que tem, entre as suas atri-buições, “velar pela promoção da alfabetização mediática no âmbito audiovisual com a finalidade de fomentar a aquisição da máxima competência mediática por parte dos cidadãos” e “elaborar um relatório anual sobre o nível de alfabetização mediá-tica, seguindo os indicadores de medição utilizados pela Comissão Europeia ou outros indicadores que o próprio Conselho Estatal de Meios Audiovisuais possa considerar de interesse”10.

Estes são apenas alguns sinais da atenção crescente à Educação para os Media no quadro da acção das entidades reguladoras, a qual se encontra, ela própria, em fase de construção e adaptação ao novo cenário audiovisual, mediático e digital. Não será, assim, de estranhar o que se sublinhava no 27º encontro da EPRA (European Platform of Broadcasting Regulatory Authorities) realizado na cidade de Riga (Letónia), em Maio de 2008, dedicado parcialmente a debater o papel dos reguladores na promoção da literacia mediática. A síntese dos trabalhos observava que eram ainda poucas as enti-dades que apostavam numa acção de promoção e de incentivo relativamente a esta vertente. A maioria ficava-se por uma abordagem ‘protectora’. Saliente-se, porém, que as duas perspectivas não se opõem, antes são, como refere aquele documento, “as duas faces da mesma moeda”, ainda que com um equilíbrio muito variável.

Vai-se consolidando a ideia de que, na nova realidade comunicacional e mediática, já não basta apostar apenas na lei e na chamada hetero-regulação. O envolvimento dos diversos parceiros, a produção de conhecimento relevante sobre a o panorama dos media, a qualificação das velhas e novas ‘audiências’, o trabalho de intermedia-ção e de “mise en valeur” daquilo que se vai fazendo são novas áreas que complemen-tam a função tradicional e constituem, por outro lado, um terreno que pode alavancar a Educação para os Media. Como escrevia, já há uns anos, Cees Hamelink, “tal como o desempenho dos media profissionais, o consumo dos media deveria ser visto como uma prática social que implica escolhas morais e a assunção de responsabilidades por

10 Lei Geral da Comunicação Audiovisual, Lei 7/2010, de 31 de Março. O Conselho não se encontra ainda imple-mentado, no início de 2011.

essas escolhas” (Hamelink, 2000). Ora isso não nasce de geração espontânea. Precisa de ser cultivado e desenvolvido.

Neste contexto, Portugal tem a vantagem de, tirando partido da experiência do que de excelente se faz um pouco por todo o mundo e do conhecimento que foi cons-truindo sobre a sua própria realidade, poder gizar alguns cenários que articulem esfor-ços dispersos e envolvam novos actores. Este estudo encomendado pela ERC, em par-ticular, é já um sinal forte de atenção às mudanças em curso e um contributo para o caminho a percorrer.

Educação para os Media

em Portugal

Experiências, actores e contextos

Parte II

65

A recolha de informação sobre projectos e iniciativas relacionados com a Educa-ção para os Media é o resultado de uma procura activa no terreno, conjugada com o conhecimento prévio de outras iniciativas de Educação para os Media e respectivos dinamizadores.

Procurou-se, por um lado, lançar uma rede o mais abrangente possível para cap-tar os projectos realizados na última década. Com esse propósito, foram delineadas as estratégias seguintes:

a. Divulgação na internet: através das redes sociais, nomeadamente o Twitter e a criação de um grupo no Facebook; através do blogue dos membros da equipa – Educomunicação; através da newsletter do Centro de Estudos de Comunicação e Sociedade.

b. Apelo em encontros nos quais participaram membros da equipa do projecto, tendo sido criado um panfleto para esse efeito.

c. Abordagem directa de instituições com responsabilidade educativa, nomea-damente entidades pertencentes ao Ministério da Educação.

d. Indagação junto dos entrevistados, que assumiam, deste modo, a função de informantes.

Por outro lado, a recolha de projectos e a constituição inicial da lista de entrevista-dos baseou-se em parte no conhecimento de actores e experiências de Educação para os Media já existente na equipa do projecto, assim como na identificação de novas experiências. Para além da divulgação e apelos realizados e do conhecimento prévio existente, que permitiu incluir cerca de uma dezena de casos, foi levada a cabo uma pesquisa exaustiva, sobretudo através da Internet, mas também em publicações diver-sas, no sentido de identificar as iniciativas de Educação para os Media e que se viria a revelar mais fecunda do que a do feedback directo.

As respostas obtidas através de contactos feitos com as direcções regionais de Educação indiciaram pouca iniciativa no âmbito da Educação para os Media. À excep-ção das dos Açores e da Madeira, que não só responderam afirmativamente como tomaram como tarefa sua organizar a informação sobre as iniciativas realizadas local-mente, as restantes responderam negativamente e uma que não chegou sequer a responder.

Em todo o caso, foi possível proceder à recolha de um conjunto significativo de projectos (Ver o Anexo VII). É sobre eles que tratam os capítulos seguintes, colocando em destaque os actores, os contextos e as experiências da Educação para os Media. Como foi já explicado, daremos igualmente destaque à formação que neste domínio é oferecida nos cursos de graduação e pós-graduação do ensino superior, em particular nos de formação de professores e educadores.

5. Perspectivação histórica da Educação para os Media em Portugal: