• Nenhum resultado encontrado

CAPÍTULO IV A EDUCAÇÃO DAS CRIANÇAS NEGRAS SOB O OLHAR DO

4.2. Mudanças nos Mecanismos de Controle Social

Durante boa parte da primeira e da segunda metade do século XIX, a “educação”, das crianças negras e dos negros adultos esteve condicionada à preparação para a vida adulta e orientada pela ameaça do chicote,

A partir de 1870, houve a substituição da violência por outros mecanismos de controle social. Segundo Gebara (1986), a opção adotada em 1871 foi resultado de um consenso em favor da estratégia reformista. Tão importante quanto o consenso, foi a sua manutenção e, para tanto, a habilidade da elite política incluiu os escravos nesse pacto, pois o consenso não poderia ser ameaçado com rebeliões e confrontos. Por outro lado, o consenso, ao incluir os escravos, resultou na substituição da violência, por outros mecanismos mais sutis; esse foi um fator para o sucesso da manutenção da ordem nesse processo de transição gradual (GEBARA, 1986, p.107).

As posturas municipais significaram alguns dos meios não violentos para o controle da mobilidade dos escravos. Diante de um processo político desencadeado a partir de 1871, quando a condenação da escravidão se tornou geral, e ser escravista era um ônus crescente, as Câmaras Municipais começaram a aumentar violentamente o valor das multas aplicáveis nos casos que envolviam escravos; também criaram outras taxas sobre a sua posse, deixando o fazendeiro numa situação difícil de contestar (GEBARA, 1986, p.113).

Gebara ressalta a importância de discutir as relações existentes entre a legislação nacional e as posturas municipais, apontando algumas articulações fundamentais que possibilitaram a implementação da estratégia de transição formulada em nível nacional, estabelecida a partir da Lei do Ventre Livre.

Só para se ter um exemplo, entre o período de 1871 e 1875, logo após a promulgação da Lei nº. 2.040, ela passou por um período de regulamentação, quando foram especificadas as providências que deveriam ser tomadas pelos proprietários das mães, a fim de batizar, matricular ou, em caso de falecimento, enterrar, os filhos livres das mulheres escravas. Durante esse período, o Ministério de Agricultura, Comércio e Obras Públicas, endereçou aos presidentes das províncias (os assuntos ligados ao elemento servil, eram regulamentados por este ministério, visto que o trabalho do escravo estava ligado a terra) repetidos apelos “por providências para a educação e proteção desses menores”. Sendo assim, pressionados, os presidentes passaram a incentivar as Câmaras Municipais à procura de soluções (ALANIZ, 1997).

Nas pesquisas realizadas nas correspondências, nos códigos de posturas e editais, localizamos uma correspondência da Câmara Municipal de Campinas, de 11 de dezembro de 1871, respondendo ao Presidente da Província, sobre esses pedidos:

Registro de um ofício ao Presidente da província sobre as associações de que trata a Lei 2040: Ilmo. Exmo. Presidente. A Câmara Municipal desta cidade, em observância da circular de V. Excia de 20 de Outubro findo, tem a informar que não encontra no povo disposição para auxiliar a organização de associações de que trata esta circular, mas esta Câmara está bem informada de que os possuidores de escravos deste município tem procedido com toda humanidade e zelo na criação dos menores libertos de modo que é por assim dizer dispensável a criação daquelas associações.

Deos guarde V. Excia.

Campinas em sessão de 11 de dezembro de 1871

Ilmo. Exmo. Sr. Presidente da Província de S. Paulo. (Câmara Municipal de Campinas. Livro de Correspondências, Posturas e Editaes. 1856- 1872 p. 186 e verso e 187). (ver Anexos)

Nesse sentido, evidenciamos dois fatores importantes: o primeiro a tentativa de relacionar a legislação nacional com as posturas municipais; o outro, mais uma

evidência de que os fazendeiros de Campinas optaram por acolher para si as obrigações de criar e “zelar” pela “educação e saúde” de seus ingênuos.

Para Alaniz, os fazendeiros campineiros optaram por cuidar e “zelar pela saúde de seus ingênuos”, mas a autora reconhece que as taxas de mortalidade infantil na cidade eram bastante elevadas. Acrescenta que não são

‘apenas os senhores campineiros que deixam seus ingênuos, de modo tão indiferente. Os primeiros anos que se seguem à Lei de número 2040, contemplam o crescimento desmedido das taxas de mortalidade infantil no país’. Tais resultados teriam preocupado alguns observadores do governo (ALANIZ, 1997, p.47).

Para a autora, a Lei nº 2.040, mesmo responsabilizando os senhores das escravas pelo cuidado dos ingênuos, não foi suficiente, pois a

reação senhorial frente às crianças livres foi de pouco mais que indiferença. Isso pode ser apreendido, não apenas do crescimento das taxas de mortalidade, mas também do aumento no abandono de crianças negras em alguns municípios do país (ALANIZ, 1997, p.47).

Nos primeiros anos da década de 1870, os ingênuos constituíam apenas mais bocas para alimentar e pouca perspectiva de futuro. Para as famílias negras, entretanto, cada ingênuo poderia constituir-se uma promessa, em uma esperança, uma vez que sua aparente liberdade colocava-o, quando chegasse à idade de ganho, em posição de ajudar seus irmãos ou seus pais a libertarem-se mediante pecúlio. Justificadas ou não, quantas esperanças não terão sido acalentadas em lares escravos, pela presença ou pelo sorriso de uma criança ingênua? Do mesmo modo, quantos sonhos perdidos e chorados, a cada vez que um casal escravo, ou alguma escrava solitária dispunha-se a enterrar um pequeno ingênuo, sacrificado à indiferença do mundo senhorial ou às condições precárias de higiene e medicina da época? (ALANIZ, 1997, p.52).

Sendo assim, a existência dos ingênuos parecia ser ameaçada pela indiferença das políticas municipais e pelas péssimas condições em que viviam essas crianças.

Contudo, a legislação nacional estava preocupada em fixar uma estratégia para a extinção da escravidão. Tratava-se de encaminhar, politicamente, a questão da mão- de-obra, de forma gradual e controlada e, assim, era preciso evitar riscos tanto à população quanto ao sistema social vigente. Paralela a essa preocupação mais geral, a questão da mão-de-obra tinha peculiaridades que necessitavam de tratamento especifico. Disciplinar a mão-de-obra era extremamente necessário para as novas relações que se teriam com a extinção da escravidão (GEBARA, 1986, p.118).

A preocupação em disciplinar essa população negra, esteve presente no debate dos parlamentares, momento que precedeu a aprovação da Lei de 1871; a questão da mortalidade das crianças recebeu atenção dos deputados; muitos consideravam que a legislação que libertava as gerações futuras evitaria a continuidade dessas mortes provocadas para impedir o nascimento de crianças no estado servil.

Essa preocupação também estava ligada a estratégias utilizadas pelos escravos de provocar infanticídio ou filicídio, pois muitos não queriam ver seus filhos no cativeiro. Após a Lei de 1871, obteve-se:

[...] uma nova realidade que impôs ao escravo uma percepção diferente do universo que os cercava. Essa nova percepção era reforçada pelo fato de que a atitudes de protesto que, previamente, atingiam os interesses dos senhores (como matar um nascituro, por exemplo); agora atingiam diretamente os interesses dos escravos (GEBARA, 1986, p.139- 140).

Um exemplo de filicídio foi o caso de um ex-escravo, o crioulo Marcelino Francisco Inácio, que pertencera à fazenda do Partido, de um certo capitão Manuel Antônio Barroso. Quando este veio a falecer, deixou-lhe como herança uma carta de

alforria, em Campos dos Goitacazes. No dia 30 de junho de 1847, Marcelino matou os dois filhos que ainda eram escravos. Ao ser indagado por outro escravo do motivo que o levara a praticar tal coisa, respondeu: “que tivera que fazer isso para não vê-los escravos do senhor moço” (GOES e FLORENTINO, 1997, p15-16).

Outro caso de filicídio foi o de Justina que, frente à ameaça de desenraizamento – separação de mães e filhos provocada pela generalização do tráfico interno, apesar da lei de 1869, que proibia a separação entre as crianças escravas e os pais – matou cada um de seus três filhos menores e depois tentou, sem sucesso, o suicídio, caso acontecido na Freguesia de São Sebastião, município de Campos, Rio de Janeiro, em 1878 (CASTRO, 1997, p.346).

A questão a destacar é que a Lei do Ventre Livre levaria a uma redefinição das formas de resistência, até então adotadas; era preciso repensar novas formas de conduzir as ações praticadas no cativeiro.

Ao focalizar a questão referente aos protestos dos escravos, no contexto da Lei de 1871, torna-se evidente que, exceto as fugas, todas as outras formas de protesto e rebelião eram controladas pela norma legal. Gebara (1986) considera que a Lei do Ventre Livre foi aprovada para tratar da transição da escravidão para o mercado de trabalho livre.

Contudo, para Chalhoub (1990), a Lei de 1871 não é passível de uma interpretação única e totalizante. Sendo assim, da mesma forma que a Lei, cujas disposições mais importantes foram “arrancadas” ou conquistadas pelos escravos a classes proprietárias, a mesma também pode ser interpretada como exemplo do instinto de sobrevivência da classe senhorial, pois a esperança da liberdade que daria aos

escravos, em vez de representar perigo, seria um elemento de ordem pública, para conter os cativos (CHALHOUB, 1990, p.160).

Chalhoub parece divergir da afirmação de Gebara que toma a Lei do Ventre Livre como mediadora da transição da escravidão para o mercado de trabalho livre, pois, para o primeiro, seria um anacronismo interpretar 1871 como a instauração de uma política acabada e de longo prazo, no sentido da organização e da disciplina do mercado de trabalho livre no Brasil. Para ele, a afirmação de tomar a Lei do Ventre Livre como momento de afirmação de todo um contingente de trabalhadores disciplinados e “higienados” não corresponde às atitudes ou ações tomadas pelas classes proprietárias.

Essa pode ser uma parte da história, pois seria tentador interpretar o acesso à liberdade pela utilização do pecúlio, como uma forma de ensinar aos escravos as virtudes da ascensão social pelo trabalho. Mas, os escravos já pareciam saber havia muito tempo que sua melhor chance de negociar a liberdade com o senhor era juntar as economias e conseguir indenizar seu valor. Sendo assim, ou pensamos que esses negros estavam disciplinados para o mercado de trabalho há muito tempo, ou, então, admitimos que eles pudessem atirar-se ao trabalho por motivos muito diversos de uma suposta inclinação pelo salário e pelos encantos dos patrões (CHALHOUB, 1990, p.160).

Todavia, o ponto que gostaríamos de destacar é que, após o esgotamento do modelo da pedagogia disciplinadora pelo castigo físico ao escravo, fica evidente, como relatou Gebara, que novos mecanismos de controle foram implantados para conformar a nova geração que nasceria liberta, a partir da Lei número 2.040.

Documentos relacionados