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2.3 PLASTICIDADE NEURAL

2.3.2. MUDANÇAS PLÁSTICAS CORTICAIS INFLUENCIADAS PELAS LESÕES CORTICAIS

Sabe-se que os acidentes vasculares cerebrais no território da artéria cerebral média, levam a hemiparesias, e na maioria dos pacientes são lesões bem localizadas e definidas em seu início temporal, sendo adequadas para estudos sobre reorganização cortical. Neste sentido, tem-se analisado essa reorganização por meio do sistema de lateralização do cérebro, que permite verificar as diferenças das alterações do centro da lesão com as regiões perilesionais, que podem ocorrer a partir das mudanças remotas da atividade sináptica plástica relacionadas com a recuperação da função motora (BUTEFISCH, 2004). Acredita-se, pelo menos em parte, que esse processo de recuperação envolva a resolução dos eventos patofisiológicos que seguem à lesão. Porém, tem sido observado que mesmo na resolução desses eventos, a integridade do sistema piramidal é um dos fatores mais importantes nesta recuperação (BINKOFSKI et al., 1996; WITTE, 1998).

A estimulação magnética transcraniana (TMS) vem sendo utilizada para mensuração da eficiência funcional de cada sistema de saída córtico-espinal. Estudos mostram que a amplitude dos sinais captados pela eletromiografia (EMG), por meio de potenciais motores evocados (MEPs), depende do número de neurônios corticais, subcorticais e espinais excitáveis e, consequentemente, da viabilidade do trato córtico piramidal (NARDONE e TEZZON, 2002). Nardone e Tezzon (2002) demonstraram que 72 horas após o AVE ocorre uma ausência completa de sinais excitatórios neuronais. Tais resultados também foram observados quando as amplitudes dos MEPs foram medidas no período de 1 a 2 meses pós- infarto encefálico. Com tais percepções, os autores correlacionaram essa falha na excitabilidade e, consequentemente, na transmissão da informação, com a insuficiente recuperação motora funcional.

Estudos demonstram, ainda, que existem pacientes com graves déficits motores, mesmo com valores dos MEPs normais. Acredita-se que esses distúrbios ocorreriam, provavelmente, pelo aumento da atividade inibitória cortical (CLASSEN et al., 1997). Assim, poucos pacientes progridem para uma excelente recuperação motora, mesmo na ausência ou

reaparecimento tardio desses MEPs. Classen et al., 1997 relataram que a recuperação daqueles pacientes deva ocorrer por acréscimo do recrutamento de outras redes neuronais como da área motora ipsilateral. Pesquisas experimentais em animais têm demonstrado que as lesões isquêmicas do córtex motor primário, bem como as mudanças no sistema de neurotransmissão excitatório e inibitório do córtex homotópico do hemisfério não afetado, teriam relevantes implicações para a recuperação funcional após o trauma (WITTE, 1998). JONES et al. (1996) relatou que após essas lesões isquêmicas, o hemisfério contralateral (não-afetado) apresentava baixa regulação funcional dos receptores gabaérgicos, seguida de alta atividade dos receptores glutamatérgicos, favorecendo o crescimento de dendritos, a formação sináptica e as mudanças estruturais específicas das conexões das sinapses.

Perante os achados de Jones et al. (1996) e Witte (1998), em 2003, Bütefisch e seus colaboradores também analisaram as mudanças da atividade excitatória e inibitória do córtex motor do hemisfério não afetado e tentaram correlacionar essas modificações com a extensão da recuperação funcional dos pacientes acometidos pelo AVE. O estudo utilizou a estimulação magnética transcraniana (TMS) por meio de pulsos-pareados com diferentes intervalos inter-estímulos e intensidades. Essa diferença na intensidade de pulsos condicionados da TMS ocorre porque o limiar de ativação intracortical dos interneurônios inibitórios é mais baixo do que o limiar de ativação dos interneurônios excitatórios. A técnica foi aplicada sobre o córtex motor do hemisfério não afetado de 13 pacientes que apresentaram boa recuperação e 5 pacientes com pobre recuperação funcional da mão após a lesão. Os resultados foram comparados com a estimulação do hemisfério esquerdo de 13 voluntários saudáveis. As análises permitiram observar que nos pacientes com boa reparação motora, o limiar de atividade neuronal inibitória foi similar aos sujeitos saudáveis quando as intensidades dos estímulos condicionantes (CS) foram aplicadas em baixas dosagens. Porém, naqueles pacientes pós lesão vascular encefálica, essa atividade inibitória cortical desapareceu rapidamente com as altas intensidades dos CS, aparecendo no local a atividade excitatória. Nos pacientes que apresentavam pobre recuperação motora e submetidos a aplicações de altas intensidades dos CS, ao contrário, não foi detectada essa atividade excitável das células neuronais. Tais observações sugerem que as modificações no equilíbrio excitatório e inibitório do circuito neuronal, para um estado de excitabilidade, sejam responsáveis pelo sucesso da reparação funcional nos pacientes em recuperação. De fato, estudos com neuroimagens demonstram que uma boa recuperação motora está associada com um decréscimo na atividade do córtex sensório-motor contralateral à lesão, acompanhado de um

acréscimo na atividade sensório-motora cortical do hemisfério lesionado (CAREY et al. 2002, ROSSINI e DALFORNO 2004). Isto evidencia a relevância funcional do hemisfério não afetado na restauração da motricidade, principalmente, porque acredita-se ser essa excitabilidade neuronal a responsável pelo processo de reorganização cortical (CAO et al., 1998; CRAMER et al., 1997).

Por outro lado, os estudos baseados na TMS destacam que os circuitos motores em paralelo podem ser ativados para estabelecer algumas eferências alternativas para os neurônios motores da medula espinal. Entende-se que esses circuitos podem se originar das áreas motoras primárias contralateral à lesão, das áreas pré-motoras e sensório-motoras bilaterais, do cerebelo e núcleos da base. Dessa forma, as interações córtico-corticais e córtico-subcorticais podem distribuir suas especificidades por meio de uma rede funcional e, assim, estabelecer um mapa de ativação cerebral adequado durante a reorganização cortical sensório-motora.

No hemisfério afetado pelo acidente vascular, um dos possíveis mecanismos que auxiliam na recuperação seria a reorganização dos tecidos adjacentes não danificados. Sabe-se que a regulação dos sistemas de neurotransmissão, tanto excitatório quanto inibitório do córtex, apresenta um importante papel para a reestruturação desse processo (NUDO et al., 2001 e 2003). Estudos experimentais com lesões vasculares em ratos demonstraram que pequenas lesões focais a nível cortical levaram às mudanças da atividade dos tecidos perilesional. Os pesquisadores supracitados observaram diminuição da inibição intra-cortical gabaérgica e alta regulação dos receptores MNDA, consoante à observação de Witte (1998) em relação ao hemisfério não afetado. Além disso, verificaram a facilitação da potenciação de longa duração, promovendo alterações espontâneas da atividade e resposta a estímulos característicos do hemisfério lesado. Acredita-se que essas mudanças possam persistir por vários meses e que as modificações anatômicas do tecido não danificado ao redor do infarto estejam relacionadas com o brotamento axonal e as sinaptogêneses (NUDO et al., 2001 e 2003).

Outro aspecto das características neuroplásticas que podem ser induzidas após a lesão é o mecanismo de desmascaramento de conexões horizontais inter-hemisférica que se encontra em período de latência ou silêncio sináptico (LUESCHER et al., 2000). Esse processo surge para auxiliar no planejamento da reorganização do córtex cerebral e tem influência no reaprendizado de uma habilidade motora durante a reabilitação (KLEIM et al., 2002). Assim, as mudanças plásticas após o AVE têm levado os pesquisadores a averiguar

tais aspectos em diferentes momentos na atividade cortical, com percepções de que esse silêncio sináptico, além de outros mecanismos neuroplásticos, benefícia o córtex adulto, apresentando maior prevalência durante o período de desenvolvimento (HE et al., 1998; NUSSER et al., 1998; ISAAC et al., 1995; LIAO et al., 1995). Esse mecanismo, portanto, oferece subsídios para que as conexões dos circuitos neurais possam ser remodeladas perante as experiências sensoriais e motoras. A prática de atividades por meio dos movimentos altera as sinapses ou reduz os eventos moleculares na área perilesionada ou em áreas remotas do córtex cerebral, incluindo as que não estão diretamente prejudicadas, como o lado contralateral à lesão (KEYVANI e SCHALLERT, 2002; FISHER e SULLIVAN, 2001).

Conforme se observa, seria um erro compreender a plasticidade como forma facultativa do cérebro responder a lesões cerebrais para promover a recuperação funcional, ou, de certa forma, compensar a função perdida. Contudo, a plasticidade é um fenômeno sempre em atividade e, depois de uma lesão, o comportamento continua sendo consequência do funcionamento do sistema nervoso em constante plasticidade. Portanto, os sintomas não são manifestações da região cerebral lesionada, mas uma expressão das modificações plásticas do restante do cérebro. Assim, um sistema capaz de tal reorganização flexível traz o risco de uma modificação indesejada, e o treinamento equivocado ou a demanda excessiva, em presença de certos fatores de predisposição (por exemplo, genéticos), pode resultar em rearranjo cortical indesejado e levar aos déficits sensoriais e motores (CHAMAGNE, 2003).

Ante esse aspecto, o uso de técnicas adequadas para a reabilitação é de grande importância para direcionar as modificações plásticas para o benefício de indivíduos acometidos por lesões cerebrais, amenizando ou evitando as modificações mal adaptativas desses mecanismos neuroplásticos.