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Recife, 09 de novembro de 2015.

Querida Teresa,

hoje, me dei conta do quão crescer é desafiador. Contudo, o

nosso encontro tem permitido ao meu interior uma descoberta

de cores. Lendo os seus manuscritos autobiográficos, vi que,

assim como eu, não desfrutastes do colo de tua mãe por

muito tempo, porque ela veio a falecer quando você tinha 4

anos de idade. Na mesma idade, mas por razões diferentes,

o meu não conviver se deu pela ruptura do relacionamento

entre os meus pais. Desde então, nós duas, mãe e filha,

nunca passamos muito tempo juntas, apenas desfrutamos de

pequenos encontros até, aproximadamente, os meus oito anos

de idade. Querida Teresa, esta é uma experiência íntima que

quero partilhar contigo. Entre! O que te mostrarei durará o

tempo de um chá.

O ponto de partida é o útero de onde vim. De minha mãe, recordo bem os seus cabelos negros e longos, sua forma simples de falar, do seu sorriso e do seu jeito tímido de saber como eu estava crescendo. Eu nunca sabia ao certo o que dizer ou como agir na presença dela, porque a minha cabecinha de criança não conseguia combinar as caraminholas ditas pelo meu pai e as delicadezas que ela me ofertava. Para ele, a minha mãe tinha que ser desprezada, contudo, eu a desejava por perto sempre e mais. Ela sofria com o acesso limitado à minha presença. Eu podia ver o seu olhar entristecido, mesmo nos escassos encontros. Foi

então que, num certo dia, ela anotou na minha mão o número de um bip, seria o nosso segredo. Através dele eu poderia, sempre que eu sentisse vontade, deixar uma mensagem para ela. O bip era um dispositivo móvel que recebia mensagens de textos enviadas por telefone. Era engraçado o funcionamento dele, porque se fazia necessário ligar para uma central telefônica e, do outro lado da linha, uma atendente digitava a tal mensagem. Sendo assim, era necessário dizer devagar a informação, ditar palavra por palavra e, em muitos casos, repetir. E foi assim que, aos poucos, eu consegui dizer: Eu amo você! Eu... amo... você, MÃE!

Muitas primaveras se passaram e o nosso contato foi diminuindo, diminuindo.... Hoje, eu não sei absolutamente nada sobre a vida dela, nem onde mora, o que gosta de comer, o que prefere vestir..., mas, sinto que ainda a reencontrarei em algum tempo-espaço, sabe? Quero lhe dar colo, um abraço bem apertado e lhe agradecer pelo dom da vida, por me amar antes mesmo de nos conhecermos. Quero saber o cheiro que tem a minha mãe. O seu nome é Aparecida

Fátima Costa da Paz e segue comigo, assim como a sua imagem inunda o meu ser.

“A mãe será capaz de se esquecer ou deixar de amar algum dos filhos que gerou? E se existir, acaso tal mulher, Deus se lembrará de nós em seu amor”, quando dizia o cântico na missa do dia das mães, era ali que, ao pé do altar de Maria, que renovava em mim a certeza de que ela nunca me esqueceria e de que, ao menos naquele dia, ela pensaria em mim.

Revirando os escritos de Gaston Bachelard20 (1998), em A Água e os Sonhos,

parece que me encontro refletida e acarinhada:

[...] o amor filial é o primeiro princípio ativo da projeção das imagens, é a força propulsora da imaginação, força inesgotável que se apossa de todas as imagens para colocá-las na perspectiva humana mais segura: a perspectiva materna. Outros amores virão, naturalmente, enxertar-se nas primeiras forças amantes. Mas todos esses amores nunca poderão destruir a prioridade histórica de nosso primeiro sentimento. A cronologia do coração é indestrutível. Posteriormente, quanto mais um sentimento de amor e de simpatia for metafórico, mais ele terá necessidade de ir buscar forças no sentimento fundamental. Nestas condições, amar uma imagem é sempre ilustrar um amor; amar uma imagem é encontrar sem o saber uma metáfora nova para um amor antigo. Amar o universo infinito é dar um sentido material, um sentido objetivo à infinitude do amor por uma mãe. [...] Quando amamos uma realidade com toda a nossa alma, é porque essa realidade é já uma alma, é porque essa realidade é uma lembrança (pp.120 - 121).

20 Gaston Bachelard (1884 – 1964), filósofo e ensaísta francês. Autor de obras como: A psicanálise

Depois da separação dos meus pais, me recordo do exato instante em que fui acolhida nos braços de uma mulher chamada Simone, a nova esposa do meu pai. Ao vento, fitei o movimento dos seus cabelos longos e negros e corri para os seus braços: “mainha”, gritei. Foi o nosso primeiro contato. Emocionada, ela sempre me contou sobre este momento. Meu coração de criança sorriu para o colo recebido. Sorriu também quando do seu ventre vi nascer o meu amado irmão Gutemberg.

Cresci entre os adultos e foi assim que voei sobre a infância. Aos nove anos de idade, já tinha clareza sobre o amor e o respeito. Passei a não suportar as constantes brigas entre o meu pai e Simone. Diariamente, convivia com as pequenas torturas e opressões que ela sofria. E, uma vez Simone sendo agredida, eu também me sentia como tal. Meu coração e corpo de criança não tinham forças suficientes para libertá-la daquele contexto. Foi, então, que avançamos sobre as trincheiras e quase que ao mesmo tempo, pulamos o portão do jardim e rompemos com aquele filme de terror. Ela seguiu para junto de sua família levando o meu irmão e eu juntei algumas roupas na mochila e fui morar com a minha avó paterna. Para o meu alívio, do outro lado, fui amparada pela grande mãe21 e em seu colo fiz morada,

chorei, dormi e cresci.

A casa de vovó Jura, era assim como eu a chamava, tinha um piso vermelho, e ela gostava de frisar que era um mosaico. Lá, experimentei o fervor de sua religiosidade, sua crença no catolicismo, seu colo e sua disciplina. A casa respirava espiritualidade e fé. Seguia vovó com o terço na mão, para lá e para cá. O sagrado estava nela e era ela. “Era o terço de brilhante nos dedos de minha avó, e nunca mais eu tive medo da porteira nem também da companheira que nunca dormia só..."22.

E, assim, a minha criança foi sendo embalada por Fátima, Simone, Jurací, dentre tantas outras mulheres. A presença do arquétipo da grande mãe nas suas múltiplas faces se fez presente em minha trajetória. Do todo esse trajeto mãe-filha, vi-me perdida, tantas e quantas vezes, na tentativa de uma melhor compreensão do que de fato eu sentia. Foram tantas rupturas maternas, que os enlaces só se estabeleceram por completo na adolescência.

21 Jung (2008) menciona que as representações mais características são: a mãe e a avó, a madrasta,

a sogra, a ama de leite. São atribuídas ao arquétipo da grande mãe características tanto de acolhimento, cuidado, sabedoria e suporte, como aterrorizantes, obscuras, devoradoras e advindas do mundo dos mortos.

Com o passar do tempo, as minhas relações se estreitaram com outras mulheres (professoras, mães das minhas amigas, tias e etc.) e passei a conviver com elas numa relação de proximidade e afeto, como se fossem minhas mães. Uma incessante procura pela proteção materna acompanhada do medo de perder o vínculo outra vez. Hoje, mesmo na idade adulta, não demora e tenho uma nova mãe, seja aqui ou acolá.

Querida Teresa, de uns tempos para cá, me pego

imaginando sobre a possibilidade de uma inversão de papéis.

Já parou para pensar que magia se esconde entre criador e

criatura? Uma coisa é certa: a maternidade é uma das

maiores manifestações do divino encarnado no gerar, nutrir,

curar, ser amor. Pensando bem, se observarmos sob outra

perspectiva, a primavera já se iniciou aqui dentro de mim. Ao

passo que tu estás habitando o meu todo e quão logo virás à

luz em Thérèse. O eu e o tu. És a tão desejada gestação que

se corporifica na arte, minha querida Teresa.

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