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CAPÍTULO 2. Imagologia – Temas – A Mulher; O Estrangeiro

2.2. Temas e Motivos: “as unidades mínimas de cuja agregação resulta o texto”

2.3.4. A mulher desejada / a mulher amada

Diz-nos Buescu que “As ficções sobre migração manifestam frequentemente, de modo mais ou menos explícito, figurações em torno do puro e do impuro” (2013:46). Ao longo dos três romances que nos propusemos analisar, a mulher portuguesa é retratada como trabalhadora, fiel, humilde, dedicada, esforçada mas nunca, desejada ou até amada…

Apenas Toino, uma única vez, após meses de ausência, de solidão e sofrimento, vê Eugénia como mulher, amada, carinhosa, sensual… num sonho! Mulheres de perdição são as francesas:

Vocês já ouviram falar das mulheres francesas? Aquilo é que são mulheres! Abonecadas que nem um mimo!” (A salto, p14).

“[…] quando têm vontade de um homem, não coram de vergonha e correm a ir dormir com ele. E muitos têm abandonado as mulheres que deixaram em Portugal para correrem atrás das francesas (A salto, p84).

Olga Gonçalves também faz referência a esse atrevimento que seduz e que amedronta as esposas que tudo deixam para se juntar aos seus homens, temendo vê-los presos nas garras destas mulheres sem moral: “As francesas não se guardam de nada” (p175), “[…] uma mulher, que remédio, tem que os acompanhar. As francesas, mal uma pessoa se precata já estão alapadas a eles” (p198). Mas logo a autora deixa como que um aviso “[…] ao que oiço, com a democracia, parece que em Portugal a mulher está a tomar liberdade” (p175). Porém, como não reparar que a mudança mencionada se refere apenas às mulheres que se encontram em território nacional, colocando fora da evolução, fora da democracia, a mulher emigrante. Essa parece condenada a comportar-se de acordo com o estereótipo. Se assim não fizer, o olhar dos outros, das outras, condená-la-á e associá-la-á à francesa! “Não são só as francesas, as portuguesas também se não fazem de esquisitas. Tem havido vergonhas” (p199).

A poesia de Amândio Sousa Dantas traz-nos três representações distintas do feminino. Por um lado, surge uma mulher amada, desejada, ausente, geograficamente distante mas cuja recordação acompanha o sujeito poético.

Vai-me cercando o coração o que vem de ti

os teus cabelos os teus lábios os teus seios

sinto este desejo inquieto

à espera de te ver […] (p17)

Esta mulher ausente está fisicamente presente no poema – “cabelos”, “lábios”, “seios” –, porque a separação é realmente física, e a saudade de tudo o que não tem vai-lhe

“cercando o coração”, transmitindo uma sensação de aperto prolongada pelo uso do gerúndio. Outros versos expressam o mesmo sentimento: “Oh como dói de amor o silêncio da ausência” (p64) diz-nos declarando que “o sol é uma dor / intensa e funda”.

A outra presença feminina é a da personificação da pátria.

Deixo nos teus olhos a minha ternura deste dia

deixo no teu corpo

todos os rios do meu país

quando tenho os olhos

soltos

no perfil

(ibérico)

do teu rosto

toda a minha ternura

deste dia

deixo no teu corpo” (p14)

Esta apóstrofe a uma mulher-pátria, portuguesa e amada, encerra como que um compromisso de fidelidade, uma jura de amor por parte de quem na despedida – “este dia” –, promete não mais amar – nenhuma outra mulher, nenhum outro país –.

Por fim, a mulher alemã é a imagem do país estrangeiro que o acolheu. Mas enquanto a mulher ibérica surge em toda a sua voluptuosidade, a mulher nórdica prende pelo olhar: “[…] somente a harmonia / na flor dos olhos / claros e fundos / das inquietas raparigas” (p21), e ainda, “Intensamente claros são os teus olhos […]” (p22), ou até “Teu corpo branco / e o azul dos teus olhos” (p35). As três representações do feminino presente na poesia de Amândio Sousa Dantas estão intrinsecamente associadas à ligação do sujeito poético ao espaço físico que o rodeia, ao sentimento de perda, rutura, saudade em relação às suas raízes e de descoberta, aproximação a um país estrangeiro.

Alargando um pouco o nosso campo de estudo, demos nós também um passo em território transpirenaico e vejamos o que nos traz Brigitte Paulino Neto:

[…] le cuisinier jurait que Dores Pina, sim Senhor, elle saurait élever les deux petites, Elisabeth et Faustine, quand bien même elle n’avait jamais eu d’enfant ; elle saurait éduquer ces deux pauvrettes qui lui étaient venues de ce malheur du premier lit, ce malheur qu’il avait eu de sa première femme – quoique portugaise, aussi dépravée qu’une Française. (Dès que tu meurs, appelle-moi, p20)21

Neste trecho, a oposição entre as duas representações do feminino mantém-se e assim o tema atravessa a fronteira linguística para chegar a uma literatura diferente. Duas palavras – “quoique” e “dépravée” – mostram o quanto esta representação corresponde a uma crença, a uma certeza enraizada na opinião coletiva de uma determinada sociedade. A abordagem do tema por Brigitte Paulino Neto permite a partilha desse pensamento com outra cultura: a francófona. Ao longo da sua obra, outras frases terão o mesmo papel: “Des sacs de supermarché à chaque main, le dîner du soir, les produits d’entretien… Il ne vient pas à l’idée de mon père de l’aider à les porter jusqu’à la cuisine » (p148)22. E ainda: “Ça

suffit maintenant, je gagne ma vie, je travaille, je paye les factures, tu me parles autrement.” (p149)23 O destaque é dado ao relacionamento do casal, à mentalidade

machista, ao servilismo característico da mulher portuguesa e à sua revolta, fruto dos tempos que vão mudando.

Alice Machado nasceu em Portugal mas, à semelhança de Brigitte Paulino Neto, escreve para um público francófono. A sua obra Portugal, années ‘60: à l’ombre des montagnes oubliées faz o retrato de três gerações de mulheres: a avó, a mãe e a filha – narradora.

Ses yeux avaient la couleur de l’espérance et sur son visage en porcelaine usée, il y avait quelque chose de divin. […] Malgré sa fatigue et sa pauvreté, ma grand-mère gardait toujours sur ses lèvres un sourire plein d’amour, un sourire qui vivifiait, qui apaisait le cœur, qui faisait renaître en nous le courage de continuer. (Portugal, années 60’ : à l’ombre des montagnes oubliées, p45)24

Ma mère aussi plaçait sa confiance en Dieu, et tant qu’il y avait du seigle, elle pétrissait avec amour la farine qui dans ses mains magiques se transformait en pain. (Portugal, années 60’: à l’ombre des montagens oubliées, p78)25

tinham ficado da infelicidade do seu primeiro casamento, a infelicidade que lhe veio da sua primeira mulher - apesar de portuguesa tão depravada quanto uma Francesa.”

22 Tradução livre da autora: « Sacos de supermercado em cada mão, o jantar, produtos de limpeza… Não

passa pela cabeça do meu pai ajudá-la a levá-los até à cozinha.”

23 Tradução livre da autora: “Já chega, ganho para meu sustento, trabalho, pago as minhas despesas, falas

comigo de outra maneira.”

24 Tradução livre da autora: “Os seus olhos tinham a cor da esperança e o seu rosto de porcelana usada

tinha algo de divino. […] Apesar do cansaço e da pobreza, os lábios da minha avó tinham sempre um sorriso desenhado, um sorriso cheio de amor e de vida, que serenava o coração e nos devolvia a coragem para continuar.”

25 Tradução livre da autora: “A minha mãe depositava em Deus toda a sua confiança, e enquanto havia

São duas gerações de mulheres pobres, humildes, resignadas, dedicadas à família e tementes a Deus. Duas mulheres marcadas pelo destino – ser mulher e pobre – e que aceitam a sua condição com a naturalidade de quem sabe que nada poderá fazer para alterar algo. É esta representação do feminino que reencontramos no estereótipo da “bonne portugaise”.