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CAPÍTULO 3. Motivos – Portugal; A emigração; A viagem; O choque cultural e

3.4. Choque cultural e choque linguístico

3.4.2. O choque linguístico – o portufrancês ou o françuguês

Segundo Dias, “a génese de um dialeto da língua nativa entre um grupo minoritário estabelecido numa região onde prevaleça outro idioma é um fenómeno universal” (1975:75) e Buescu afirma que “a perda da língua materna e a sua consequente exotização são interpretáveis no quadro deste cosmopolitismo do pobre que tem recebido entre nós o nome de emigração: uma língua materna que se torna tão exótica como a ‘matéria autobiográfica que veicula’” (2013:47). A noção de “matéria autobiográfica veiculada” pela língua merece a nossa atenção. De facto, muitas “novidades” linguísticas correspondem a “novidades” na vida:

As palavras e expressões, contrato, percentagem, assistência sanitária, aposentação motivada por acidente em serviço, por incapacidade prematura ou velhice, mesclavam amiúde, o vocabulário utilizado por este jovem veterano da actividade emigratória, ex-trabalhador rural do Baixo-Alentejo. (Geraldo, 1972:77)

Outros autores avançam no mesmo sentido. Dias refere que: “uma razoável percentagem do léxico portufrancês traduz elementos anteriormente desconhecidos ou pouco familiares tais como ferramentas, materiais, locais de trabalho, categorias profissionais e processos legais ou administrativos ligados à assistência e à doença” (1975:70). No caso específico do cruzamento entre as línguas francesa e portuguesa, refere este autor que tal se deve ao “paralelismo vocabular, estrutural e até certo ponto fonológico” (idem: 69). É necessário relembrar que a comunidade portuguesa se estende por dezoito países, “exotizando-se” assim com o inglês, o francês, o alemão, o espanhol ou

o holandês (idem:54), em graus diferentes de interferência dependendo do afastamento ao “idioma nacional” e da duração da permanência do emigrante no território de acolhimento (idem: 53).

Como vimos, a língua é uma das facetas constituintes da imagem estereotípica do emigrante e a primeira reação ou apreciação de que é objeto resume-se ao risível. Citando mais uma vez Dias, […] a estereotipização desta imagem torna-se comum, epitomizada pelos termos pejorativos aplicados aos emigrantes em férias: os vacanças ou barcanças, os avecs, os çavás (idem:115).

As obras em análises não apresentam interferências com a língua alemã. Contudo, os vestígios de portufrancês ou francuguês pululam em A Salto e Este verão, o emigrante là- bas. Passada a barreira do silêncio, a língua reinventa-se.

Em A salto, os primeiros atos comunicativos recorrem à escrita: “ Por sua vez, os motoristas dos táxis indicavam preços, que marcavam por escrito para que os portugueses os conseguissem compreender” (p88). Mas a dificuldade em conseguir entendimento leva ao desabafo: “ Estes gajos não falam sequer uma palavra de português. […] Quanto mais o gajo fala menos eu o compreendo! […] Não sei como é que nos vamos entender com estes francius” (p90). A sabedoria popular expressa-se com a simplicidade que a realidade não tem:

Isto das falas diferentes é uma coisa que está mal feita. Os cães ladram em todo o mundo de igual maneira; os gatos não miam em Portugal de uma maneira diferente da que miam em França. Porque não falam os homens todos a mesma língua?... Por exemplo o português? (A salto, p91)

Por exemplo… No entanto, após as primeiras reações, a aprendizagem da língua acontece. “São doentes ou convalescentes. Têm congé de maladia”50 (p94), “Aqui, quando

faz frio, um bom bagaço […] é a melhor das chaufagens51” (p95), “Agora existe o

problema da chomagem52 […]. Muitos dos que já aqui se encontravam, foram

50 Baixa por doença (maladie) 51 Aquecimento (chauffage) 52 Desemprego (chômage)

desembuchados53 e as entreprisas54 não admitem pessoal novo” (p95), “Os outros partem

para o trabalho quando eu chego da usina55” (p98), “Esses trabalham à chena56” (p110).

Esta língua por vezes apenas entendida por quem partilha o mesmo universo será a marca de uma geração, porque para os mais novos, tudo será diferente: “Os miúdos depressa esquecem o português. Começam a falar francês e a frequentar a escola […] e transformam-se em franceses” (p108).

“Que uma pessoa ao princípio julga de morrer por não ter com quem troque uma palavra” (p180). Porque a necessidade assim obriga, a língua é aprendida aos trambolhões fonéticos, por repetição, aproximação e adivinhação. “Relato este. Da língua-não-pátria. Que eles não sabem da traição, da traição eles não sabem” (p62). É a apreciação feita pela narradora de Este verão o emigrante là-bas. Traição? Desrespeito da língua-pátria? Presunção de quem deseja ser notado? Um deles responde: “nem se repara no que sai pela boca fora, ao fim de uns anos é assim mesmo” (p175). Também nesta obra, este linguajar parece reservado à primeira geração de emigrantes. “Estou-lhe em dizer que há aí criança que só fala o francês. Vá-lhes falar em português! Não querem! Entendem, entendem tudo mas não lhes arranca uma palavra na nossa língua. Sei lá se é mau, eles tomaram o gosto pela França” (p175). Para estas crianças, o choque linguístico poderá acontecer em Portugal, nas férias de verão.

A mistura linguística, se inicialmente se confinou a um vocabulário especificamente ligado a domínios desconhecidos até ao expatriamento, verifica-se a sua presença nos atos comunicativos mais banais do quotidiano. Selecionámos alguns exemplos: “Citron57?

Quero duas limonadas, uma pra mim. Outra prà patroa. […] Farto de carro! Sempre arretar58! Sempre arretar!” (p61), “Ela já aí vem, está ali adiante às compras, está ali no

batimento59 adiante” (p83), “A gente ia à rua, Íamos só ali a um Monoprizinho60, só a comprar uma loiça. (p96), “Este verão o emigrante, là-bas61, o que é que afinal encontrou?” (p127).

53 Despedidos (embaucher: empregar) 54 Empresas (entreprises)

55 Fábrica (usine)

56 Linha de montagem (chaîne) 57 Limão

58 Parar (arrêter) 59 Prédio (bâtiment) 60 Monoprix (loja)

A narradora por sua vez analisa o fenómeno: “O recontro entre a língua portuguesa e a francesa. O globo terrestre a girar em torno da forma passante, rios parados, adianta-se a coruja nos cruzeiros, antíguas árvores estalam. Porém liberto o som, como se para um futuro magnífico” (p202). Trata-se pois de um combate entre línguas mas um rápido olhar para o “monoprizinho” para constatar o empate. O francês dá-lhe o nome, o português atribui-lhe valor de grandeza ou empatia. Liberta-se o som.

Para o nosso poeta, o choque linguístico é sinónimo de silêncio. Atentemos no poema Respiramos:

Respiramos pelo golpe

que (pacientemente) vamos sarando o olhar move-se na distância sem um grito

escutamos o coração por seu labirinto assim nos amparamos a cidade

desconhece a nossa fala e cada utensílio traz consigo um nome novo

a cidade espera-nos

para o (nosso) trabalho […] (p36)

É mais uma vez uma voz coletiva que se nos apresenta. O sujeito poético afirma de entrada que respira – entendamos “ vive” – pelo “golpe” que vai “sarando”. Vive sofrendo mas é pelo sofrimento que vive, é a dor da ausência e por isso, a recordação que o ajuda a continuar, dia após dia, cuidando das suas feridas. É ao longe que o olhar se perde, como se em redor nada houvesse que o prendesse. E apesar do sofrimento e da ferida aberta, continua “sem um grito”. Do outro lado, o que escuta é o coração, dado que com o exterior, não há comunicação. A sua forma de se referir aos outros aponta para outra coletivização. O “outro”, não é considerado na sua individualidade, mas como parte integrante do meio ambiente a que pertence – a cidade –, assim como ele, para o “outro” incorpora o grupo dos “trabalhadores emigrantes”, não existindo enquanto pessoa.

No poema Pela orla da ternura o silêncio é apresentado como um refúgio, como uma arma que o poeta aprendeu a manusear para se proteger e para reencontrar a sua ligação à terra, às suas raízes, a si próprio.

Pela orla da ternura aprendo a fazer um círculo

com este ramo de silêncio e com ele entro pelo movimento da terra

nada vi estável

o silêncio corre com o tempo e somente por ele

a raíz escuto

volto meu rosto para as marés mas à volta do meu coração só o poderoso silêncio (e ele é o meu escudo) (p48)

E o silêncio torna-se poderoso pela língua que cala: “Ó poderoso / silêncio / da língua / amoroso / contra o coração […] (O silêncio da língua, p97). Assim, o poeta emudece porque sabe que “também da fala / há um chão conhecido / por sua raiz // […] porque / a palavra não vive / sem seu berço do canto […]” (Longe se perdem as palavras, p86).