• Nenhum resultado encontrado

CAPÍTULO 3. Motivos – Portugal; A emigração; A viagem; O choque cultural e

3.2. A Emigração: um sonho

3.2.3. O trabalho / o dia a dia

No que respeita às condições de trabalho, Assis Esperança permite-nos estabelecer uma comparação entre a situação dos trabalhadores emigrantes na Alemanha e em França. Na Alemanha destaca-se a construção civil e a fábrica com a sua organização, mecanização, distribuição de tarefas e rigidez. Para os homens:

A dar-se bem com o clima deve tentar fixar-se no norte deste país. O salário é mais alto. O que muita vez, nos aborrece por lá é a fraca cotação dos portugueses, principalmente em Frankfurt e Hamburg: Sem habilitações, não passam da cepa torta: construção civil, abertura de túneis, estradas e novos arruamentos, assentadores de travessas nas linhas férreas, atascados muitas vezes em lamas, tarefas todas essas a que os alemães já não se sujeitam. (Fronteiras, p51)

Assis Esperança sublinha neste ponto a adversidade total com a qual se deparam e têm que enfrentar: o clima, o povo, o trabalho fisicamente desgastante. Se nos detivermos na enunciação das várias tarefas apresentadas – construção civil, túneis, estradas, ruas – verificamos que o trabalho do emigrante desqualificado e desprezado é imprescindível para a reconstrução do país.

A fábrica com as linhas de montagem, seccionamento da produção, repetição e automatização dos movimentos é o local de trabalho destinado às mulheres tornadas escravas da máquina que impõe o ritmo de trabalho.

“Trabalho em cadeia, houvesse entre todas essas mulheres uma única que demorasse, um segundo que fosse, a entrega à operária à sua esquerda, do pequeno bloco em que fora da sua especialidade o atarraxamento de certo número de parafusos, e toda a “banda” suspenderia a tarefa, tal-qualmente qualquer máquina automática que escravizasse o seu manejador” (Fronteiras, pp54-55)

O desempenho de cada trabalhadora tem que ser regular e irrepreensível, não existindo espaço para a individualidade. São peças de um motor cuja utilidade reside no funcionamento do mesmo. Neste contexto, a possibilidade da “banda” suspender “a tarefa” torna-se uma verdadeira espada de Dâmocles. Para Maria da Soledade: “a “banda rolante” a não lhe dar um minuto de pausa, a “velocidade”, quer nas horas da manhã, quer nas da tarde, sempre a mesma […]“ (p67), teve as suas consequências. De facto, “já arrítmico o coração, um derramamento das artérias da vista direita, por efeito da subida da tensão arterial, assustara-a a ponto de consultar o médico da fábrica […]” (p69). Em Portugal,

Alemanha, o trabalho aniquila-a enquanto pessoa e rouba-lhe a vida. Escolhe então outro destino.

“Em França só há uma profissão que lhe consentirá arrecadar uma parte dos seus ganhos: a de “employée de maison”: criada ou mulher-a-dias. As “bonnes” portuguesas estão, até, em maré de sorte.” (p71). São estas as tarefas que esperam por si no país que classificam de “mãe dos emigrantes” (p382). Trata-se de “dez horas, seguidas, de trabalho” (p136) e folga “ ao Domingo mas só depois da refeição da manhã” (p147) e, por vezes, apenas “de quinze em quinze dias” (174). Maria da Soledade tem consciência de que novamente lhe roubam a vida e interroga-se:

Resistiria, porém, a sua vontade, quanto mais não fosse, ao monótono derreamento de fazer as camas, lavar os pratos, lavar pratos e o chão da cozinha, fazer camas, escovar, brunir, brunir e escovar, lavar pratos e o chão da cozinha?” (Fronteiras, p123)

Não são desta vez as máquinas que lhe imprimem o ritmo de trabalho, são as patroas donas de casa.

Em relação aos homens, as ofertas continuam idênticas às encontradas na Alemanha. Presentemente, é a indiferença quanto à sorte dos trabalhadores portugueses que sobressai. Sabendo do seu desejo de ganhar dinheiro rapidamente, a não inscrição no sistema nacional de saúde é-lhes proposta, evitando descontos por parte da entidade empregadora e desprotegendo o trabalhador que abdica de cobertura social. O cinismo de uns vai de mãos dadas com a ganância dos outros. Vejamos:

[…] oito horas de trabalho diário, todas elas entregues ao labor de descarregar pedras de vinte quilos, depô-las e consolidá-las no levantamento de paredes. […] De catorze em catorze dias, receberão a féria, já livre de descontos […] podem não se inscreverem na “Segurança Social”. É dinheiro que poupam. A empresa, ou o empreiteiro, ignorarão, ou fingirão ignorar essa imprevidência. (Fronteiras, p260)

Toino faz ele próprio um balanço das razões que o levaram a emigrar:

Decidi ir para França, a fim de ver se melhoro a situação dos meus, e se deixo de acordar e de me deitar preocupado. Quero tentar ganhar um pouco de dinheiro para pôr de lado, de maneira a não ter medo do dia de amanhã: medo das geadas, da chuva ou da seca, medo de uma doença, de uma má colheita. Medo de tudo! (A salto, p49)

Para ele, partir é mais do que uma solução, é a salvação. A personagem declara ter medo de tudo. Mas, especificamente, os seus receios prendem-se com a fatalidade, o destino de quem retira da terra o seu sustento e por essa razão fica à mercê das condições climatéricas. O medo de tudo não aponta para a situação política, ou económica do país, ou estará precisamente no “tudo” que o inclui sem o referir?

Apesar das facilidades de que tanto tinha ouvido falar, Toino conhece horas e dias de grande angústia nos primeiros tempos da sua estadia no território francês. Por isso, logicamente, “depois de tanto desespero, a felicidade de ter encontrado finalmente emprego, de que já desesperava, encheu Toino de alegria […]” (p124). Rapidamente, porém, chega à conclusão de que não fora apenas nas facilidades em arranjar trabalho que fora enganado, as riquezas prometidas continuam almejadas. A ilusão foi-se. “Farto-me de trabalhar e a paga não é nenhuma fartura. Os franceses recusam, geralmente, os trabalhos violentos, porcos ou mal pagos, e só nós, os portugueses, alguns espanhóis ou os argelinos, é que os aceitamos” (p111), porque os move o mesmo desejo de melhorar a vida.

Mais uma vez na primeira pessoa, Olga Gonçalves apresenta-nos outro caso:

A trabalhar na obra todo o dia, com este gelo do inverno, chegar à noite e ir um homem prà cama sem ter com quem desabafe, saber que a luz do dia nos espera para o mesmo martírio. Dia trás dia, mês trás mês. Pra isto não vale a pena uma mãe botar filhos no mundo, mais nos valia logo morrer. Bom, eu agora já me afiz […] já não sou trolha, faço outros serviços. Levanto-me por essas seis da manhã, tenho de ir apanhar o metro, deixa-nos num local onde a camioneta da obra espera por nós. Aí é que nos juntamos todos porque o trabalho fica a oitenta quilómetros. (Este verão o emigrante là-bas, p110)

Às condições de trabalho junta-se a solidão. A angústia descrita é de tal forma que a morte se apresenta como melhor solução do que a vida de sofrimento que é levada. No entanto, as suas declarações trazem uma nota de esperança. O “martírio” chegou ao fim ou, como diz, já se afez. De facto, constatamos que, para ele, o dia de trabalho começa cedo – seis da manhã – porque a obra “fica a oitenta quilómetros”, uma distância que terá que percorrer novamente no final do dia, em sentido inverso. Comparativamente, a sua esposa trabalha quinze horas por dia. “ Quando tu te levantas estou eu a abalar pró trabalho. […] às seis da manhã pego eu a limpar a farmácia […] só largo às nove da noite.” (p110). E desabafa, resignada: “à semana, vemo-nos de fugida, mas que se lhe há-de fazer?, tem de se aguentar mais uns anos” (p110).