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Eulália é uma mulher dotada de um carisma pessoal bastante proeminente. Sua personalidade terna, sua postura respeitosa e sua paciência quase excessiva haviam lhe garantido muitas amizades desde a época em que trabalhava no bairro da Graça e conseguia apoio de muitas pessoas que a conheciam. Como foi afirmado em algum trecho do relato de sua trajetória, a mesma contou com a presença de diversas personalidades públicas e membros da elite soteropolitana em seu casamento, que ainda lhe trouxeram certa quantia em dinheiro para facilitar o começo da vida conjugal. Com os trabalhos de evangelização aconteceu algo

semelhante, muitas pessoas que foram evangelizadas por Eulália desenvolveram laços afetivos fortes com ela, e outros que estavam próximos acabaram cultivando uma simpatia grande por ela. Os trabalhos sociais, o mutirão no bairro e todos os outros trabalhos desenvolvidos em nome da “obra de Deus” resultaram na construção de uma imagem bastante positiva de Eulália em Castelo Branco, o que não podia deixar de se refletir na sua experiência na própria igreja. Quando os homens, por três vezes, tentaram assumir a frente das igrejas que Eulália havia erguido junto com outras pessoas, encontraram diante de si uma congregação que mantinha com ela laços bem mais profundos do que os de meros correligionários. Eulália havia, de uma maneira ou de outra, estabelecido uma relação carismática de liderança entre os irmãos da igreja. Sendo assim, o desdobramento das duas histórias em que Eulália havia perdido a disputa parecia apontar para o contrário, parecia que era a sua vitória o que estava mais “óbvio”. Porém, não foi isso o que aconteceu. Gostaria de explorar nesta seção alguns elementos que estiveram em jogo neste processo, transitarei entre uma análise do caso de Eulália e uma discussão do pentecostalismo como um todo. Tentarei discutir quais são os empecilhos formais para que uma mulher possa assumir o cargo de pastora.

2.1 O androcentrismo da igreja

Liderar um círculo de oração nas casas ou um grupo de evangelização nas ruas é bastante diferente de liderar uma igreja. O alto grau de simpatia que Eulália havia conseguido entre a comunidade do bairro e das igrejas poderia implicar em sua consagração como pastora, mas este seria considerado um elemento de desestruturação da organização pentecostal. Os trabalhos de evangelização nos lares e nas ruas eram permitidos às mulheres, ou seja, na rua as mulheres poderiam ter a palavra para a pregação, mas na igreja quem deveria estar à frente seria um homem.

Para tentar lançar alguma luz sobre esta questão, pretendo começar minha interpretação a partir de um modo de organização que é anterior (do ponto de vista lógico e etnológico) ao da igreja: a família. Afirmei anteriormente que o casamento (ou a sua reconstituição) era um dos instrumentos de grande eficácia na manutenção do convertido em sua decisão de servir a Deus. Isto porque, dentre

outros motivos, lhe garantia, não apenas um compromisso moral com o grupo social com que se relaciona mais imediatamente (a igreja), mas também porque vincularia de maneira mais sólida motivações morais e disposições afetivas. O casamento é também um importante meio de estabilização da comunidade religiosa como um todo, uma vez que influi na organização da família e se estende até a igreja. Família e Igreja se tornam desta maneira as referências mais concretas de correlação entre o mundo público e o privado. Interessante é que me parece que um homem convertido que permanece solteiro provoca mais olhares de curiosidade ou reprovação do que um homem bem casado que ainda não encontrou Jesus. O argumento que de imediato é apresentado quando questionado este detalhe é o de que o estado de solteiro abre mais portas para o pecado. Igualmente, em boa parcela das igrejas, o que faz com que um homem se torne de fato um varão (ou complete um processo que o avanço da idade já iniciou) é o seu status de casado. Em muitos casos, quando um homem pretende ascender ao pastorado, seu primeiro passo é casar-se, passar a ser digno do mais considerável respeito, tornar-se um varão.

Para a mulher, o casamento é também recomendável, pois sua função natural precisa ser cumprida para a satisfação do Senhor, como afirma Eulália.

Porque a visão do evangelho é que a mulher nasceu para dar à luz, cuidar dos filhos e cuidar da família. Cuidar do marido e dos filhos, tá entendendo? Educar. Porque está escrito na palavra de Deus que a mulher casada cuida pra agradar ao marido e a solteira pode seguir a Deus livremente. Então, quando ela é solteira, ela tem uma liberdade maior na obra de Deus. Quando casa aquilo já fica mais restrito porque ela tem que seguir a base bíblica: cuidar do marido e dos filhos, e aquele tempo que sobra você vai seguir a Deus (...). A dificuldade é muita, eu tô falando em termos de liberdade assim: de sair, de levar o evangelho, entendeu? Mas de cargo, é difícil no geral.

Uma vez casada, a mulher assume a função de se tornar a contraparte de seu companheiro, preenchendo os espaços vazios que sua condição de homem lhe implica nas tarefas domésticas e religiosas – algo que me pareceu bastante elucidado em uma conversa que tive com Jacira quando discutíamos o papel do marido e da esposa no trabalho religioso.

Jacira: Então existe o pastor e a esposa do pastor, que, consecutivamente, tem que ser uma missionária, uma pastora porque os dois são um né?

Cláudio: Por que ela tem que assumir um cargo?

Jacira: Não é que é obrigatoriamente, tem pessoas que têm esposa e ela não quer ser nada na igreja e ela não é. Então já fica chato também pro pastor, porque, quando a mulher está lado a lado com ele na igreja, então a parte assim de problemas femininos quem tem que trabalhar, que agir, é ela, não é ele. Porque, mesmo ele sendo pastor, não deixa de ser homem comum, entendeu?

Interessante nesta fala é que a divisão sexual do trabalho religioso é tida como o modelo mais funcional não só da organização da família, mas também da administração da igreja.

Acredito que já tenha deixado mais ou menos compreensível para onde estou pretendendo direcionar meu argumento. A igreja pentecostal tem sua organização espelhada no modelo evangélico de família, não chegando a ser exagero afirmar a existência de um contínuo entre estas duas formas de organização – basta lembrar que Deus é chamado de pai, a igreja é considerada a casa do Senhor e os congregacionistas são filhos do Senhor – e, não raro, referem-se uns aos outros como irmãos em Cristo.

O modelo evangélico de família prima pela autoridade masculina na casa, como tenho notado em campo e também acentuam alguns pesquisadores (Machado, 2005; Toledo-Francisco, 2002; Mitchem, 2000). A mulher pode cobrar do marido o devido respeito e a atenção necessária com base nos ensinamentos bíblicos (valores que são cultivados não só nas esferas domésticas, mas em diversas esferas de interação da experiência pentecostal). Porém, pelo menos ao nível do discurso, o modelo evangélico de família garante ao homem a autoridade sobre a casa. O modelo teológico que o pentecostalismo incorporou como legítimo enfatiza uma harmonia hierárquica que organiza o plano do sagrado, o plano terreno e a relação entre estes. O plano do sagrado está organizado por uma hierarquia que põe Jesus como intermediário da relação da humanidade com Deus. A relação do plano terreno com o divino é de uma submissão total. Por sua vez, o plano terreno é organizado através da hierarquia fundamental entre homens e mulheres. Na bíblia há uma passagem que já vi ser utilizada para naturalizar através da palavra de Deus a preponderância da autoridade do homem sobre a mulher, esta passagem afirma que “a cabeça de todo homem é Cristo; por sua vez, a cabeça de toda mulher

é o homem; por sua vez, a cabeça de Cristo é Deus” (Co, 11:3). Com a igreja, algo

muito similar acontece. A ascensão de uma mulher ao pastorado significaria em última instância uma flexibilização de um modelo de organização que orienta a casa do Senhor e de seus filhos.

Da mesma forma, o cargo de pastor significa uma posição formal que demanda do indivíduo que o ocupa a tarefa se colocar como elemento último de mediação entre a igreja e a sociedade mais ampla, uma alegoria da diferença entre o público e o privado. O modelo evangélico de família não supera esta projeção “espacial” da divisão sexual do trabalho, apenas a reorienta em direção aos preceitos bíblicos. O homem deixa de ganhar a rua para representar a si mesmo em um grupo de pares e passa a fazê-lo em função da família. A figura masculina representa a família frente aos outros.

E mais. O fato de que estar à frente do pastorado em uma igreja significa não apenas trabalhar para o crescimento da obra ou administrar as cerimônias principais e responder frente à esfera pública sobre esta, mas também desempenhar papéis de doutrinamento e disciplinamento, o que em geral implica algumas situações tensas nas quais o que garante a sobrevalência de uma das partes é a ocupação do cargo. Em outras palavras, uma pastora não iria apenas administrar a igreja, mas (pelo menos teoricamente) ser a última palavra na resolução de qualquer situação. Quando, no conflito da terceira igreja, o missionário saiu da reunião e nunca mais voltou afirmando explicitamente sua recusa em ser liderado por uma mulher, posso afirmar (sem medo de exagero) que a sua recusa em ser liderado por uma mulher na igreja seria a mesma recusa em permitir que na sua casa a sua esposa tivesse o poder da última palavra.

2.2 Exegese e contra-hegemonia

As pessoas nas igrejas já estavam acostumadas com a sua presença na frente das obras e tudo indicava que a consagração de Eulália seria bem recebida. Não podendo sabotar o apoio que Eulália já havia conquistado no laicato, os homens partiram para uma nova estratégia. Nos três casos em que os homens levantaram- se contra a possibilidade de Eulália assumir o pastorado ao invés deles, (dois com

vitória para eles e um com vitória para Eulália), o método não sofreu grandes variações. Eulália lembra destas situações como quem flagrara uma contradição.

Dizia... Dizia não, diz até hoje. “Mulher não senta no púlpito, mulher não pode ordenar os

homens, a mulher tem que estar calada na igreja...”. Agora: depois que a igreja já está

pronta, com as almas todas ganhas. Até ali você podia falar. Essa coisa eu não entendia. Até ali, você podia falar na construção, ganhar as almas, ver a obra crescer ali. Eu disse um dia numa reunião da igreja: “Se mulher não pode pregar, então vocês não deveriam aceitar

na igreja essas pessoas que as mulheres ganham e trazem. Aqui poucos são os homens que ganham almas. Se for perguntar dessas almas aqui quem foi ganhar no mundo para a igreja, foram as mulheres”.

A justificativa era a de que na bíblia, além de não haver qualquer passagem explícita recomendando que mulheres assumissem a liderança das igrejas, havia passagens que davam margem justamente para interpretações do contrário. A famosa passagem de Paulo que dizia que as mulheres deveriam ficar caladas na igreja foi (e tem sido) utilizada através de uma lógica interpretativa que veio a calhar nas situações em que os homens tentaram estabelecer algum tipo de vantagem sobre Eulália com base nas escrituras: a mulher não pode falar na igreja. Logo, ela não pode pregar nem administrar culto. Como então pode uma mulher ser pastora, se ela não pode administrar os cultos? Porém, como a própria Eulália havia notado, esta justificativa era utilizada em momentos em que era necessário se tomar uma decisão sobre quem estaria oficialmente na frente dos trabalhos.

Eulália conseguiu penetrar a hierarquia e se manter no topo da estrutura, mesmo com seus pesares já relatados. Mas este acontecimento foi possível primeiramente porque, no seu caso, o modelo de família evangélico não foi plenamente implantado em sua casa – a mãe e os filhos foram convertidos, mas não o marido. Isto abriu brechas para que sua ascensão solitária fosse possível. Em segundo lugar, Eulália recebeu o apoio de homens que já estavam instalados na hierarquia, possuíam cargos superiores ao do missionário que com ela travava disputa (ambos eram pastores) e possuíam poder de decisão sobre a situação. Os homens, fazendo uso de suas posições de superioridade, propuseram diferentes maneiras de interpretar a bíblia, que legitimavam a possibilidade de uma mulher estar à frente dos trabalhos. Neste caso a dinâmica entre as histórias individuais e as disposições estruturais recebe uma oxigenação. Eulália recebeu apoio de dois homens a partir de laços

pessoais que havia desenvolvido com estes – o pastor da Igreja Monte Hermão e o genro do pastor falecido da Igreja Batista da Volta de Jesus. Em resumo, foi preciso uma abertura na estrutura feita por membros da própria estrutura para que a inserção de Eulália fosse possível.

O foco da discussão aqui desenvolvida estava voltado, não apenas para a maneira com a qual Eulália conseguiu se estabelecer em uma estrutura que não estava preparada para a sua inserção, mas para a maneira com a qual esta estrutura se organizava. Na seção seguinte tentarei apresentar uma outra possibilidade de flexibilização ou manutenção da estrutura sacerdotal androcêntrica no pentecostalismo.