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As redes sociais que se organizam em torno e em virtude de um fenômeno sociológico não podem ser tomadas como disposições estruturais fixas Em

Considerações finais

I) As redes sociais que se organizam em torno e em virtude de um fenômeno sociológico não podem ser tomadas como disposições estruturais fixas Em

muitos momentos do trabalho de campo e até posteriormente em fases iniciais da análise, tentei rastrear as redes de cada uma das personagens envolvidas na trama. Perguntava sempre em campo a quem as pastoras recorriam enquanto mediadores quando precisavam ter acesso a algum benefício. Da mesma forma tentava observar o círculo de pessoas que se beneficiavam dos serviços da igreja, da creche e da casa da pastora. Se posso identificar uma fixidez maior em alguma rede, sem sombra de dúvida, esta estaria nas mais imediatas, de pessoas vinculadas aos pastores e pastoras por laços de consangüinidade ou amizade mais próxima. Estas pessoas geralmente se beneficiavam dos bens materiais e simbólicos conquistados por mediação da religião. Porém no que diz respeito aos mediadores com quem as pastoras têm que contar a fim de ter acesso a bens e serviços em uma teia de possibilidades que envolvem outras redes religiosas, instituições e ações públicas e privadas de fomento, posso afirmar que estes tendem a aparecer de acordo com as

circunstâncias. É claro que é bem possível que uma mesma fonte de recursos seja utilizada por várias vezes, mas geralmente isso se dá por vias diferentes. O que pude notar em campo é que, embora houvesse uma intensa troca de informações entre os líderes religiosos, o acesso aos serviços que cada igreja tinha variava de acordo com o nível de inserção dos líderes em uma rede cuja permanência a longo prazo seria mais difícil. Os circuitos de contatos e contratos eram constantemente renovados, modificados, adaptados, dependendo de circunstâncias bastante próprias. Lembro de uma situação em que Daísa precisou da ajuda da igreja de um pastor para conseguir doações de alimentos para a creche, mas que geralmente são também distribuídos entre os moradores mais próximos e os irmãos da igreja. O terreno dos fundos da igreja desabou em conseqüência da ruptura de uma manilha de esgoto que jogou muita água num terreno que já não era firme. As mil e uma negociações em torno do acesso aos alimentos foram secundarizadas em virtude do concerto da fundação da casa, que foi abalada. As pessoas a quem Daísa recorreu não foram as mesmas nas duas situações. Em ambos os casos, tanto na conquista dos donativos quanto na recuperação do terreno, os mediadores que possibilitaram os processos foram pessoas com quem Daísa passou a manter contato em pouco tempo e com quem não mantinha relações pessoais tão próximas – o grau de proximidade entre os indivíduos influencia no grau de benefício que um pode oferecer e obter do outro nas redes sociais em que se inserem. Porém, como os pentecostais na periferia de Salvador cooperam muito entre si, é mais possível que o benefício que uma igreja ou rede religiosa grande ofereça se amplie para pessoas e igrejas que mantém apenas relações mediadas com esta. Mas o nível de inserção de igrejas menores nestas redes é tão circunstancial quanto o contato entre seus líderes. Uma das conclusões desta constatação a que se pode chegar de um ponto de vista mais empírico é que, se por um lado as pequenas igrejas pentecostais têm crescido bastante em termos de quantidade de denominações e filiais destas por meio do apoio de seus fiéis e parceiros, por outro, estas igrejas estabelecem uma rotina de serviços e benefícios para a comunidade mais imediata que faz com que muitas pessoas sejam beneficiadas com suas ações. Às vezes as pessoas que dependem das igrejas às solicitam mais do que estas podem atender. Em alguns momentos Daísa teve que tirar alimentos de sua casa para doar a um irmão que necessitava. De um ponto de vista mais teórico, posso afirmar a partir da constatação anteriormente referida que não se pode esperar que uma rede de

conexões de fatores venha a operar da mesma maneira gerando similares resultados, independentemente de quaisquer que sejam os fatores.

As redes sociais são (mais que de fato um monolito que se explique por si próprio) resultado e possibilidade de fenômenos interativos, de múltiplas experiências que se convergem em um ou diferentes pontos formando a base do desdobramento dos processos de mudança ou estabilidade. Um dos elementos fundamentais para compreender a formação de uma rede social específica é a experiência compartilhada dos agentes envolvidos nos processos. Desta maneira, não é possível desconectar esta rede das circunstâncias que a formaram – assim como não é possível desconectar analiticamente a experiência dos indivíduos da temporalidade e da espacialidade compartilhadas.. sendo assim, uma maneira segura de análise de uma rede social é a reconstituição do rastro por ela deixado ao longo de suas implicações enquanto fenômeno sociológico. Isto não significa dizer que, ao lançar olhares sobre os fenômenos sociológicos a partir das redes sociais o investigador deva apenas captar a sua conjunturalidade. Acredito que seja possível extrair conclusões mais gerais (pelo menos tipologicamente) a partir da identificação dos elementos que foram postos em relação no próprio processo de constituição destes fenômenos. Foi o que eu pretendi realizar neste estudo.

Experiência no bairro e experiência religiosa

Tanto no caso de Eulália como no de Daísa a experiência no bairro ofereceu suportes importantes para a manutenção de suas trajetórias de ascensão, porém de maneiras diferentes. No caso de Eulália, foi com o atendimento principalmente de demandas sociais de Castelo Branco que sua trajetória sua ascensão foi se construindo. No caso de Daísa, foi com o atendimento a demandas de caráter mágico de uma determinada parcela de moradores do bairro que a mesma conseguiu se projetar como liderança. Uma vez tendo Eulália conseguido um pastor para assumir a liderança da igreja de Daísa, foram as congregacionistas, que também eram suas vizinhas e já suas amigas, que impediram tal acontecimento. Na vez em que Eulália teve que lutar para se manter na posição de liderança e saiu vitoriosa, foi com o apoio de dois pastores que estavam em posição de forte influência sobre o processo que a mesma pôde permanecer como líder.

Os casos de Daísa e Eulália são interessantes para demonstrar como uma análise sobre a religião centrada apenas em seus aspectos internos pode em alguns momentos ser insuficiente para dar conta da compreensão de possíveis outros elementos que lhe atribuam certas configurações. Eulália se estabeleceu na hierarquia da rede pentecostal a partir de seu sucesso com as obras sociais no bairro. Daísa, por sua vez, se estabeleceu na hierarquia religiosa através do desenvolvimento do dom de cura, significante válidos não apenas no interior da própria rede, mas também para uma certa parcela de moradores não convertidos. Desconsiderar este elemento seria negligenciar a participação dos especialistas em uma arena plurireligiosa que oferece serviços para todo o bairro, constituindo-o como um campo de cooptações possíveis.

Uma vez tendo suas posições hierárquicas ameaçadas, Eulália e Daísa se valeram de recursos diferentes. Eulália foi auxiliada por dois pastores (duas pessoas influentes no interior da rede) porque estes lhe eram simpáticos, além de não se oporem à possibilidade de uma mulher estar à frente de uma igreja. No caso de Daísa, aconteceu algo um pouco diferente, ela foi defendida pelas próprias moradoras na ocasião em que se viu diante da possibilidade de ser destituída da posição de maior destaque na igreja para ser substituída por um homem.

Neste momento é preciso levar em consideração, no caso de Daísa, o fato de que a presença de um homem na igreja atendia a demandas simbólico-estruturais da religião, mas contradizia laços de consideração e amizade compartilhados entre as congregacionistas – não por ser um homem, mas por não ser uma pessoa com quem os recém-convertidos não mantinham qualquer tipo de relação próxima, ou seja, por ser um estranho. Em casos como este, podemos afirmar que os laços de amizade e relações de vizinhança influenciaram e fortificaram as opções religiosas. Por outro lado, este acontecimento indica também como as opções religiosas fortificaram certos laços surgidos com a experiência de convívio no bairro. No caso aqui em discussão, as moradoras do bairro que já conheciam Daísa fortaleceram seus laços de amizade e cooperação através de vínculos religiosos de congregação – carisma e autoridade.

Porém, este fenômeno não deve ser visto como uma constante. Não podemos esperar que sempre laços de amizade sobrepujam expectativas gerais cultivadas no seio da religião, da mesma maneira como não é possível antecipar em que situações um ou outro sairá vitorioso quando defrontados – trata-se de um processo complexo formado pela combinação de múltiplos fatores. O que é interessante notar aqui é que a compreensão do processo de disseminação do pentecostalismo (de qualquer religião, na verdade) não pode ser desconexa da compreensão do contexto em que esta modalidade religiosa tenta se inserir, pois, se há uma relação entre ambos os fatores como afirmei, então os dois lados da relação merecem atenção.

Gostaria de retomar nesta discussão um elemento já notado anteriormente, mas que é importante de ser salientado: a existência de uma permeabilidade entre as redes religiosas e as redes extra-religiosas através de indivíduos que circulam nestas. Esta permeabilidade constitui muitas vezes um campo de influência no bairro, através do qual as religiões vão conquistando cada vez mais adeptos. Daísa, por exemplo, foi apresentada a diferentes tipos de religião em seu período anterior à conversão ao pentecostalismo. Em geral, estas pessoas eram freqüentadoras das religiões para as quais pretendiam encaminhar Daísa. Ao mesmo tempo, foram suas vizinhas as pessoas que reconheceram suas habilidades mágicas e decidiram congregar em uma igreja por ela liderada. Desta vez esta permeabilidade implicou uma influência da experiência do bairro sobre o tipo de experiência religiosa a ser vivida. Mais uma vez podemos constatar a interação entre redes religiosas e extra-religiosas no desenvolvimento mesmo do processo de conversão e estabilização da escolha do indivíduo. Olhando por este ângulo, a própria noção de conversão religiosa como resultado de um ato solitário por parte do indivíduo merece ser questionada, já que esta escolha é na maioria das vezes influenciada e sustentada por uma rede de relações sociais bastante efetivas.

Até o presente momento tenho me referido nesta seção a uma diferença entre redes intra e extra-religiosas. Como o objetivo era comparar estes dois tipos de rede, tive que tomá-las em sua generalidade, colocando os agentes religiosos e os não- religiosos em dois grupos abrangentes. Porém, é necessário chamar a atenção para um outro aspecto relativo às redes sociais como um todo.

II) As redes sociais não são blocos monolíticos, possuem suas próprias