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1 PRISÃO E LIBERDADE: NOTAS SOBRE O CAMPO

2.4 Mulheres de moral: os passos éticos para uma ―honra marginal feminina‖

Nas apreciações até aqui realizadas, o orgulho do ser mulher, advindo de uma honra construída a partir de práticas ilícitas, apresenta-se constante nos relatos das interlocutoras. Para compreender tal questão, utilizo e amplio a noção de honra elaborada por Julian Pitt-Rivers:

Honra é o valor de uma pessoa aos seus próprios olhos, mas também aos olhos da sociedade. É a sua apreciação de quanto vale, da sua pretensão ao orgulho, mas é também o reconhecimento dessa pretensão, a admissão pela sociedade da sua excelência, do seu direito ao orgulho (1965, p. 13).

Pitt-Rivers assinala a categoria honra como um conceito relacional, entendendo que o valor de uma pessoa não é o mesmo para diferentes grupos, que podem ter diferentes opiniões a respeito de um mesmo sujeito. Assim, é necessário levar em conta o contexto sociocultural e quem se está a avaliar para determinar o que seria valorado como honroso ou desonroso em uma determinada situação e em determinada sociedade.

O que se percebe é que, quanto mais próximos são os valores fundamentais e a configuração sociocultural entre uma pessoa e seu grupo social de iguais, maiores são as chances de esta ser confirmada como portadora de atributos ligados a uma honra e a um prestígio construídos nesse grupo, proporcionando-lhe uma honra local. Diante das diversas relações sociais em que uma pessoa encontra-se envolvida, sejam elas legais ou ilegais, é possível observar que se há alguém com honra, é afirmativo que outro alguém lhe reconheceu e lhe atribuiu essa honra, diante de julgamentos balizados a partir do que é valorizado ou não em cada contexto.

No que se refere às jovens praticantes de crimes aqui pesquisadas, em suas falas, elas se colocam entre dois eixos de avaliação moral – honra e vergonha – dando diferentes percepções diante de uma mesma prática: para elas, adquirir honra institui um mecanismo de aprovação social que lhes insere um dado valor moral, no qual o reconhecimento desse valor exige um tratamento determinado de prestígio e consideração; por outro lado, o sentimento de vergonha, também instituído a partir de uma valoração moral específica, muitas vezes, diante da mesma situação que lhes havia proporcionado anteriormente o sentimento de orgulho diante de um grupo, introduz, em outro contexto, uma estrutura social de desonra e desaprovação, proporcionada pela perda da estima e da consideração do grupo.

Pitt-Rivers aponta que o valor de uma pessoa detentora de honra nunca é um valor absoluto, ele precisa ser constantemente afirmado e posto à prova. Portanto, a honra conquistada apresenta um tipo de valor social específico que lhes causa orgulho, mas que não lhe proporciona um status permanente. Dessa forma, atuar na prática de crimes, muitas vezes de forma performática, bem como agredir fisicamente jovens adversárias, deixando em seu

corpo cicatrizes, para além de demarcar espaços hierárquicos e disputas territoriais de poder, possui, sobretudo, uma função de conservação de sua honra de mulher praticante de crimes.

O orgulho do ser mulher por entre práticas ilícitas constantemente reafirmadas; as identidades performatizadas por entre as práticas ilícitas; e as disputas corporais em busca de espaços de poder calcados por valores morais locais, constrói uma significação, que nomeio, ao longo de minhas análises, de ―honra marginal feminina‖. Esta se constitui em uma honra ―vitoriosa‖ guiada por uma moral própria balizada através de princípios éticos edificados dentro de um grupo específico de mulheres praticantes de crimes em posições de liderança. A moral instrumentaliza a ética dessas mulheres que criam seus conceitos de honra ou de desonra a partir das regras e diretrizes ético-sociais de cada grupo em que circulam.

Vale pontuar que, de maneira errônea, a ética humana é frequentemente atrelada a assuntos morais ligados à religião e a tradições culturais (obediência a normas, tabus, costumes, mandamentos, dentre outros ligados ao julgamento do bem e do mal). A ética, na verdade, deve buscar descrever e estabelecer estilos de vida, maneiras de viver com regras de conduta que podem variar de acordo com quem está a pensar sobre elas. O objetivo da ética é de guiar e orientar racionalmente o comportamento e a moral humana.

Roberto Cardoso de Oliveira (2004) retoma a compreensão a respeito do modelo de eticidade a partir de três esferas éticas: a micro, a meso e a macro. A microesfera apresenta-se como um espaço ocupado pelas particularidades das culturas locais; a macroesfera como o espaço daquilo que é universal, uma ética de alcance planetário (convívio mundial entre os povos) defendida especificamente pela ONU e sua Carta dos Direitos Humanos. E assim, na mesoesfera, teríamos o espaço ocupado pelos estados nacionais, que teriam a obrigação de garantir uma mediação entre os valores locais/particulares e os universais/planetários. Essa distinção ética é bastante útil para orientar a compreensão a respeito das jovens praticantes de crimes: elas se apresentam constituindo um determinado valor moral guiado por uma microesfera ética (criminosa) que lhes agrega prestígio nos territórios relacionais ligados à criminalidade e, formam, assim, a sua ―honra marginal feminina‖.

Destaco que a categoria ―marginal‖ não é utilizada aqui para definir um grupo social internamente desarticulado, alienado e apático; nem para destacar um grupo com carências e isolamentos sociais; nem para utilizar como sinônimo de pobreza ou mesmo de

certo desprivilegio hierárquico. Mas, para definir uma situação de quem escolhe estar à margem da sociedade convencional no que se refere ao nível moral, os outsiders como definiria Howard Becker (2008), transgredindo leis (previamente estabelecidas pela sociedade) e recriando para si e para seus grupos de pares outras normas e condutas éticas de comportamento, o que parece ser o caso das jovens aqui pesquisadas. Sendo assim, a marginalidade é uma questão de grau e não de absolutos, e, como bem pontuou Janice Perlman (1977), ―uma pessoa pode ser marginal em certos sentidos, ou em relação a certas esferas da vida e certas instituições, e ser muito bem integrada em outros sentidos‖ (p. 164).

Já Robert Ezra Park (1928) utiliza o conceito de ―homem marginal‖ para falar de conflitos interculturais. Ao analisar a integração dos imigrantes na sociedade norte-americana, o sociólogo afirma que o ―homem marginal‖ seria aquele que estaria à margem de duas culturas, de duas sociedades, aquele que estaria em um conflito de culturas e personalidades – um self dividido entre o novo e o velho self. Assim sendo, a história de relatividade e de maleabilidade de utilização do conceito de ―marginal‖ agrega muito do pensamento das interlocutoras a respeito do estar à margem e de possuir uma honra nessa margem, mas também, do estar integrada do ―lado de dentro‖ da sociedade convencional, circulando e conseguindo ser respeitada, minimizando possíveis conflitos por entre esses dois territórios morais e culturais, por vezes, antagônicos. São tentativas de amenizar desarmonias e desintegrações dos selfs, tendo o self lícito e o self ilícito, a seu modo, como canais possíveis de ascensão social.

Continuando no movimento de compreensão e análise de práticas ilícitas atuadas por mulheres, com tons de busca por valores morais específicos, a história, a seguir, é de Elaine, interlocutora presa já citada em algumas análises discursivas acima. Apreendida por tortura, sequestro, homicídio triplamente qualificado e ocultação de cadáver, ela sequestrou, torturou, esquartejou, matou e enterrou o corpo de um jovem rapaz após ele ter dado uma tapa em seu rosto. Os relatos de Elaine findam este capítulo e ajudam a ampliar o debate sobre práticas corporais violentas realizadas por mulheres praticantes de crimes, indo para além das falas até aqui trabalhadas referentes à rivalidade intragênero presentes nos relatos das interlocutoras em liberdade. Porém, apesar de apresentar uma configuração distinta das jovens em liberdade, Elaine continua a reforçar questões ligadas a disputas de poder e a buscas por uma ―honra marginal feminina‖, porém com outros contornos, como veremos adiante.