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1 PRISÃO E LIBERDADE: NOTAS SOBRE O CAMPO

1.8 Opções metodológicas: limitações e impactos analíticos

Examinar e questionar os dados coletados é prática comum nas pesquisas acadêmicas de uma maneira geral, mas os dados aqui estudados ganham uma conotação ainda mais desafiadora, posto que adquirem uma característica próxima ao ineditismo. Lembro que a minha situação de ―livre‖ circulação entre os dois mundos: o da liberdade e o da prisão; o estar atenta aos meandros das interações sociais com as interlocutoras; as diferentes técnicas de contato utilizadas com as mulheres praticantes de crimes (entrevistas individuais, grupos focais, vivência de momentos de convívio e contatos próximos com as ―presas colaboradoras‖); a demonstração de um respeito ético às informações pessoais ali disponibilizadas; bem como, as trocas já relatadas proporcionadas por essas situações, possibilitaram-me como pesquisadora social, apoiada em bases antropológicas relativizadoras e feministas longe das amarras sociais patriarcais hierarquizantes e biologizantes, realizar práticas diferenciadas e, por vezes, inéditas de estudo, pesquisa e análise.

Porém, essas facilidades atuadas e visualizadas no campo não me cegam a possibilidade de olhar para outras questões analíticas necessárias de serem levadas em consideração e que podem ter interferência nas análises realizadas e nos resultados alcançados.

Um ponto importante de reflexão já delineado em alguns momentos de escrita, mas que merece atenção especial, se constitui nas características que as interlocutoras

dissertam possuir, tanto no que se refere às suas supostas habilidades e competências como bandidas, quanto aos tipos de crimes diferenciados que elas afirmam realizar em posição de liderança e comando. Características e práticas que se diferem do discurso social mais comum a respeito de mulheres inseridas e atuantes no universo da criminalidade que versa sobre passionalidade e submissão feminina, tornando os relatos das mulheres aqui pesquisadas com características que chegam perto de um certo exotismo, posto que os sentimentos de estranhamentos advêm, em sua grande maioria, de uma sociedade com bases eminentemente patriarcais que preconizam a mulher em um segundo plano de atuação social.

Dessa forma, pontuo algumas considerações importantes para não cairmos em um lado oposto e próximo à construção de novas teorias estereotipadas a partir de conceitos absolutos a respeito das mulheres criminosas.

Como primeiro ponto, menciono o ato de falar como uma pesquisadora que busca o contato com mulheres praticantes de crimes e que lança mão de uma lógica não vulnerabilizada da mulher criminosa não é algo que acontece todos os dias e isso pode ter sido visto por algumas interlocutoras, em certos momentos, como uma interessante maneira delas se sobressaírem para seus pares (como prova de força e poder), para si mesmas (como reforço para a autoestima) e para mim, a pesquisadora (como possibilidade de positivar suas práticas constantemente negativadas socialmente).

Tanto as interlocutoras presas quanto as em liberdade acabaram por mostrar algumas especificidades implícitas em seus relatos moldados por questões de classe, idade e situação judicial vivida e que são interpretados ao longo das análises. A forma de falar sobre seus crimes, uma maior assertividade em algumas falas e as relações advindas a partir dos relatos parecem indicar alguns elementos importantes para se compreender as especificidades presentes. O fato de ser mais nova, por exemplo, parece contar na hora de se pensar em um maior desejo de autoafirmação para si, para a pesquisadora e para as jovens também praticantes de crime em posição de liderança ao seu redor, quando dos momentos de grupo focal, onde se está também em jogo a performatização contida no relato das atuações criminosas.

Esse contexto subjetivo das situações implícitas a serem levadas em conta denota certas implicações que podem estar ligadas a condições específicas de garotas específicas: seja a idade e a necessidade de robustecer a posse de forças e poderes exaltados na

criminalidade, seja pela condição de liberdade ou de prisão, fato que posicionaria a memória das práticas ilícitas em um campo mais ou menos recente de lembrança, ou ainda, seja pelo menor ou maior receio de ser apreendida/descoberta, configurado pela situação liberdade ou prisão em que se encontram.

Um segundo aspecto destaca-se pelo fato de que eu lhes proporcionava uma escuta positivada das suas proezas ilícitas que transcendiam as situações em que muitas delas estavam vivendo no momento de nossos contatos, tais como: a não possibilidade da prática de crimes e a obrigação judicial de submeter-se a regras institucionais de controle e castigo.

Essas considerações lembram que pode ter sido possível, por parte das interlocutoras, a construção de certos relatos mais organizados e/ou enfeitados. O estímulo positivo confesso e o menor uso de julgamentos morais tradicionais e normatizadores foi uma escolha aqui posicionada enquanto pesquisadora social e apresenta-se presente no decorrer das análises desta tese, configurando as técnicas adotadas como fundamentais para estimular as interlocutoras a falar de suas escolhas e significados a respeito dos crimes que afirmam praticar, evitando discursos sociais que as reprimam em suas falas a respeito de suas práticas ilícitas supostamente de ousadia e coragem.

Destaco que identifico dentro dessa forma de comunicação, apesar de vantajosa no que se refere à escuta de relatos diferenciados, uma técnica que pode ter anulado algumas possibilidades de perceber com mais clareza incertezas e vulnerabilidades possíveis de estarem contidas nas ações e pensamentos das interlocutoras, e assim, ter facilitado a construção de alguns discursos estereotipados a respeito de suas práticas ilícitas. Nas conversas e entrevistas, não foram enfatizados os sofrimentos ou as fraquezas. Embora estivessem presentes, quando eles apareciam, estavam sempre acompanhados de proezas e feitos que redimensionavam o significado de possíveis sentimentos negativos, positivando-os de alguma forma. Uma das faltas mais enfatizadas pelas interlocutoras era a saudade dos filhos, mas o fato de poder provê-los por meio de atividades criminosas parecia compensar a ausência e a saudade, sendo motivo de orgulho e afirmação da falta de arrependimento em estarem protagonizando uma carreira criminosa. Assim, as mulheres com as quais conversei falam da vida que levam de modo empoderado, mas ter tal poder não significa que ele não seja construído, narrado e encenado a partir não somente das proezas decantadas, mas do sofrimento, do medo, das contradições que permeiam a vida de qualquer ser humano.

Como cientista social, lembro que as realidades não devem ser julgadas simplesmente como leituras verdadeiras ou falsas, mas sim, como representações e expressões tidas e construídas nas interações propiciadas pela pesquisa de campo e mediadas pelo corpo teórico. Assim, em vez de banir tais aspectos, transformo-os em mais uma interessante fonte de análise que pode ser interpretada e reposicionada, possibilitando diversas abrangências que levem em conta as potencialidades e os limites das escolhas teórico-práticas utilizada nesta pesquisa.

Portanto, valoriza-se, neste estudo, mais que simplesmente os dados coletados no ato das entrevistas e grupos focais realizados; o que também está em jogo nas análises são os momentos de compartilhamento, estranhamento, aproximação e significações ocorridas nas interações entre pesquisadora e pesquisadas, tendo o relativismo como ferramenta metodológica e possibilitadora de compreensão do ponto de vista das interlocutoras a partir de suas realidades. Assim sendo, ressalto que contemplo os processos de produção de sentidos das interlocutoras nas condições em que ocorreram e realizo uma mediação teórica a partir deles, pois que minha observação participante envolveu-se dos encontros e diálogos com as interlocutoras nos momentos e situações posteriores e decorrentes de suas práticas criminosas. Como afirmei anteriormente, por mais que a realidade fosse ambígua e comprometedora, não estava numa posição policialesca, nem jornalística, nem mesmo como espiã disfarçada. Estava a realizar uma pesquisa, não me competindo realizar acareações dos fatos relatados.

Por fim, essas questões também ajudarão a pensar sobre os relatos das interlocutoras analisados ao longo deste estudo, por vezes, estereotipados e estandardizados, e que passam a imagem de mulheres bem resolvidas, seguras, valentes e bravas, sem fragilidades, relutâncias, fraquezas ou inseguranças, nos quais não há lugar para o papel da mulher coitadinha, frágil ou triste. Isso não que dizer que elas não possuam tais sentimentos, mas que, há outras questões que precisam ser pensadas e levadas em consideração.