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2. MULHERES E ESFERA PÚBLICA

2.2. Mulheres na esfera pública

A esfera pública é reconhecida, conforme exposto anteriormente, como o espaço de tomada de decisões, de atuação política e de produção social, a arena democrática. No mundo grego antigo, nesse espaço de igualdade, somente os chefes de família eram admitidos. Já a esfera privada/doméstica, de acordo com Hannah Arendt,87 era permeada por relações

85MESQUITA, Elainne Cristina; ARAS, Lina Maria Brandão de. A desconstrução do público/privado e a

construção do “pessoal é político” na teoria feminista. Disponível em:<http://www.ufpb.br/evento/lti/ocs/index.php/17redor/17redor/paper/download/60/203>. Acesso em: 18 de outubro de 2014. p. 330.

86OKIN, Susan Moller. Gênero, o público e o privado. Estudos Feministas, Florianópolis, v. 16, n. 2, mai/ago,

2008. p. 314.

hierarquizadas. As mulheres, as crianças e os escravos eram submetidos aos chefes de família (os únicos considerados cidadãos). Assim, perpetuou-se uma hegemonia.

Os homens tomaram para si o poder sobre o espaço público e, em contrapartida, determinaram que o espaço doméstico fosse a área adequada às mulheres. Considerando que, atualmente, fazem parte do conceito de esfera pública tanto questões de cunho político quanto econômico,88 as mulheres experimentaram a exclusão tanto do poder institucionalizado quanto do mercado de trabalho.

Por muito tempo, aliás, as mulheres foram invisíveis na esfera pública. Sua entrada nesse espaço deu-se de forma gradativa e, em algumas áreas, a integração da mulher enfrentou maior resistência. No tocante ao exercício de trabalho remunerado, ao ingressar no espaço público, a maioria das mulheres exerceu atividades análogas àquelas que exercia no mundo privado. Assim, era projetado socialmente o trabalho doméstico. Como exemplo, pode ser citada a predominância feminina nas profissões de professora, costureira, enfermeira e cozinheira.89 O mercado de trabalho permaneceu, desse modo, como sendo um dos lugares nos quais se constroem as diferenças e disparidades entre homens e mulheres, cotidianamente.90

Os ofícios mencionados são, em certa medida, pouco valorizados na sociedade. Aliás, os trabalhos realizados pelas mulheres tendem a ser mal remunerados e não reconhecidos do mesmo modo que os masculinos, independentemente da área de concentração. Permanecem as desigualdades salariais, de carreira, de condições de trabalho e as segregações.91 Assim, ainda que as mulheres penetrem mais a fundo no mundo do trabalho, assumindo postos tradicionalmente masculinos e valorizados (como os relacionados à área do Direito92, por

88 “Quanto à esfera privada, ela se reduz cada vez mais à intimidade e à família, uma vez que a economia

moderna sai da esfera doméstica para se tornar social mediante o duplo mecanismo do mercado e da divisão social do trabalho”. LAMOUREUX, Diane. Público/privado. In: In: HIRATA, Helena; LABORIE, Françoise; LE DOARÉ, Hélène; SENOTIER, Danièle (org.). Dicionário Crítico do Feminismo. São Paulo: Editora UNESP, 2009. p. 210.

89 COSTA, Ana Alice Alcantara. As donas do poder: mulher e política na Bahia. Salvador: NEIM/UFBa

Assembleia Legislativa da Bahia, 1998 (Coleção Bahianas; 2). p. 76-77.

90 MARUANI, Margaret. Emprego. In: HIRATA, Helena; LABORIE, Françoise; LE DOARÉ, Hélène;

SENOTIER, Danièle (org.). Dicionário Crítico do Feminismo. São Paulo: Editora UNESP, 2009.p. 86.

91 Idem, p. 89.

92 De acordo com pesquisa publicada pelo Observatório Brasil da Igualdade de Gênero, a participação das

mulheres nos cursos de Direito, na advocacia e no Poder Judiciário aumentou. Entre os magistrados, a porcentagem de mulheres subiu de 2,3% em 1960 para 30% em 2012 e na advocacia, as mulheres representavam no mesmo ano 44,83% das inscrições na Ordem dos Advogados do Brasil. Disponível em:

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exemplo), seu trabalho não é visto do mesmo modo do que aquele realizado por homens. A hierarquia entre os sexos reproduz-se, assim, também no mundo do trabalho, uma vez que dificulta o acesso das mulheres a profissões de “superior prestígio” e perpetua a barreira simbólica, porém, efetiva, da dominação masculina.93

Pierre Bourdieu, em análise acerca das condições de trabalho das mulheres, destaca:

O mundo do trabalho está, assim, repleto de pequenos grupos profissionais isolados que funcionam como quase-famílias, nos quais o chefe do serviço, quase sempre um homem, exerce uma autoridade paternalista, baseada no envolvimento afetivo ou na sedução, e, ao mesmo tempo, sobrecarregado de trabalho e tendo a seu encargo tudo o que acontece na instituição, oferece uma proteção generalizada a um pessoal subalterno, principalmente feminino (enfermeiras, assistentes, secretárias).94

As mulheres são vistas, no mercado de trabalho, como “assistentes”, assumindo, primordialmente, serviços secundários. Para Bourdieu,95 “experimentam dificuldade de se impor ou de impor a própria palavra” e “têm de lutar permanentemente para ter acesso à palavra”. Aliás, é considerado um elogio para alguns dizer que uma mulher trabalha “feito um homem”.96

Acerca da divisão sexual do trabalho, Danièle Kergoat97 atribui a desvalorização do trabalho feminino à perpetuação de dois princípios vigentes universalmente: em primeiro lugar, o princípio da separação, relativo à determinação social de que existem “trabalhos de homem” e “trabalhos de mulher”, sendo que ao homem é atribuído o trabalho produtivo, e à mulher, o reprodutivo. O segundo princípio é o da hierarquização, segundo o qual o trabalho de um homem “vale” mais do que o de uma mulher.

<http://www.observatoriodegenero.gov.br/menu/noticias/participacao-das-mulheres-no-judiciario-aumentou/>. Acesso em: 14 de abril de 2015.

93ACHIN, Catherine. Un métier d’hommes? Les représentations du métier de deputé à l’épreuve de sa

féminisation. Revue Française de Science Politique, v. 55, p. 477-499, 2005. p. 479. Disponível em: <http://www.cairn.info/revue-francaise-de-science-politique-2005-3-page-477.htm>. Acesso em: 28 de abril de 2015. p. 2.

94BOURDIEU, Pierre. A dominação masculina: a condição feminina e a violência simbólica. 1 ed. Rio de

Janeiro: Bestbolso, 2014. p. 86.

95 Idem, p. 87.

96 Em estudo apresentado por Saraiva e Irigaray a respeito das práticas no mundo corporativo acerca da

diversidade, foi destacado o discurso de determinado entrevistado nesse sentido: “A Joana (nome fictício) é ótima profissional, trabalha feito um homem”. (SARAIVA, Luiz Alex Silva; IRIGARAY, Hélio Arthur dos Reis. Políticas de diversidade nas organizações: uma questão de discurso? Revista de Administração de Empresas (RAE), São Paulo, v. 49, n. 3, jul/set.2009. p. 337-348. p. 345).

97 KERGOAT, Danièle. Divisão sexual do trabalho e relações sociais de sexo. Disponível em:

<http://poligen.polignu.org/sites/poligen.polignu.org/files/adivisaosexualdotrabalho_0.pdf>. Acesso em: 21 de outubro de 2014. p. 1.

Característica primordial dessa divisão, segundo Kergoat e Hirata, 98 seria a apropriação, feita pelos homens, das funções com maior valor e admiração social (políticos, religiosos, militares etc.). Ainda que o tempo tenha promovido evoluções nas situações práticas acerca do exercício das mencionadas funções pelas mulheres, segundo as autoras, a distância entre os grupos de sexo permanece.99

Todavia, não é apenas no âmbito do mercado de trabalho que as mulheres experimentaram dificuldades de integração. Acerca da entrada das mulheres no mundo político, Kathleen Jones100 destaca três etapas que podem ser consideradas em relação à participação feminina na prática e teoria políticas. A primeira delas é a da invisibilidade, caracterizada pela ausência de mulheres nesse ambiente. A segunda é a visibilidade limitada, momento em que as práticas sexistas foram evidenciadas nos estudos teóricos e, finalmente, a etapa da visibilidade: com o desenvolvimento de uma ciência crítica feminista.

Entretanto, mesmo antes de colocarem-se em evidência no mundo político, as mulheres já atuavam em movimentos sociais. Em busca de melhorias na qualidade de vida da sociedade e de direitos civis e políticos, diversas organizações contaram com o protagonismo feminino para se desenvolver, como aquelas em defesa da abolição da escravatura, as Comunidades Eclesiais de Base da Igreja Católica e o Movimento Feminino pela Anistia, entre tantos outros exemplos.101 Grupos operários e sindicais também devem às mulheres muitas conquistas, mas suas presenças foram omitidas e menosprezadas,102 reforçando a ideia de baixa participação política feminina.

Como se pode perceber, o padrão de concentração de poder em mãos masculinas se reproduz nas democracias. Seus reflexos são percebidos, do mesmo modo, no âmbito da

98 KERGOAT, Daniéle; HIRATA, Helena. Novas configurações da divisão sexual do trabalho. Cadernos de

Pesquisa/FCC, v. 37, n. 132, set/dez.2007, p. 595-609. p. 599.

99 Idem, p. 600.

100 JONES, Kathleen. Hacia una revisión de la política. Política y cultura, Xochimilco/México, v. 1, 1992, p.

277-298. p. 288.

101 BERTOLIN, Patrícia Tuma Martins; BENEDITO, Alessandra. Efetiva participação das mulheres na política:

necessidade urgente da democracia brasileira. In: SCALQUETTE, Ana Cláudia Silva; NETO, José Francisco Siqueira (coord.). 60 Desafios do Direito: Política, Democracia e Direito. São Paulo: Atlas, 2013. v. 3. p. 158.

102 COSTA, Ana Alice Alcantara. As donas do poder: mulher e política na Bahia. Salvador: NEIM/UFBa

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política institucionalizada103 e questões relativas ao tema serão exploradas na próxima seção, dedicada à participação feminina na política partidária.

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