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3 APORTE TEÓRICO

3.4 MULTIMODALIDADE E MULTILETRAMENTOS

Há um processo antielitista de desconstrução do grafocentrismo contemporâneo quando se reconhece que diversos grupos socioculturais recorrem a variados sistemas semióticos para preencher as funções que a escrita alfabética desempenha (ou desempenhava) na sociedade padrão, majoritária (em ralação ao acesso e uso de diversos bens), tecnológica, urbana e contemporânea.

(Angela Kleiman e Luanda Sito, 2016)

O processo antielitista supramencionado toca na questão de um enfrentamento, empreendido por membros de grupos socioculturais diversos, para alertar os(as) que superestimam a primazia gramatical da língua quanto à existência de outros modos de comunicação, há muito legitimados. Esse enfrentamento se assenta na ideia de que ter algo a comunicar e ter também a impressão de que um modo não é suficiente para efetivar uma dada comunicação significa dizer que a união de mais de um modo permite que a comunicação pretendida seja feita da melhor forma possível (Kress, 2013). Em outras palavras, há elementos temporais e móveis, visuais e espaciais associados à escrita, que é um elemento

estacionário, permitindo que tenhamos ideia do que desejamos comunicar com a união desses elementos. Ou seja, modos de comunicação são dispostos de acordo com o propósito comunicativo de quem os manipula, numa interpretação de “modos diferentes fazem coisas diferentes” (Kress, 2013, s.p.). Isto leva a uma correspondência: a disposição de modos em mais de um espaço que propulsiona a geração de sentido normalmente acontece para tornar os modos mais prazerosos e memoráveis; então, a utilização de recursos semióticos existentes para a comunicação deve atrelar-se, intimamente, à análise de quais são as especializações desses recursos.

Precisamente, definimos modo como uma categoria da multimodalidade aplicada a imagens, à escrita, a gestos e à fala, de tal maneira que podemos falar em elementos produzidos social e culturalmente, como considera Kress (op. cit.). Em razão disso, a utilização de mais de um modo de comunicação é resultado da possibilidade de juntar distintamente os “recursos pelos quais tornamos o significado material” (s.p.) para indicar como se deve compreender, ver, escutar, sentir e até tocar os significados produzidos. Atualmente, no campo dos estudos linguísticos, devemos pensar como a cor, a escrita, a imagem, o som, entre outros recursos, unem-se e formam um todo coerente para comunicar (op. cit., s.p.).

Para Souza (2006), salvaguardada por Dionisio (2005), a multimodalidade é um traço constitutivo a todos os gêneros escritos e orais. Conceber aspectos multimodais nos gêneros textuais implica conceber também a disposição gráfica desses aspectos nos textos. “O modo como os gêneros são organizados, ou a disposição gráfica do texto em uma página, é um recurso do qual o leitor se apropria para identificar um gênero e ativar seu processamento” (p. 81); isso porque a disposição gráfica é um recurso visual que proporciona uma capacidade abundante de reconhecimento dos gêneros textuais – ainda mais agora, acrescemos, em tempos de “novos” gêneros que emergem com frequência no meio digital. Destacamos a expressão “novos” gêneros para observar, tal qual observa Souza (2006), que a disposição gráfica muitas vezes revela uma intergenericidade, sendo, portanto, importante atentar para o fato de que o novo, na verdade, se apropria de aspectos multimodais já existentes em outros gêneros textuais, dando provas a todos(as), desta vez numa amplitude digital, do efeito dialógico da linguagem.

Souza (2006) ainda assevera que a multimodalidade emprega recursos visuais como cores, colunas, fontes tipográficas, imagens e seus posicionamentos, legendas, títulos etc.,

para que outras linguagens e outros gêneros se coadunem à modalidade escrita da língua e construam significação. Sem falar, ademais, da alta informatividade dos layouts e da organização retórico-visual30 (Mozdzenski, 2008) dos textos. As imagens, tão costumeiras a nós, mas muitas vezes encaradas como adorno de textos, desempenham funções para as quais a gramática visual de Kress e van Leewen (1996 apud Souza, 2006) já chamava atenção: a “função interativa”, para complementar informações e interagir com leitores, e a “função composicional” para constituir informações dadas (imagens dispostas à esquerda), representar informações novas (imagens dispostas à direita) e confluir para si (imagens centralizadas) elementos restantes de um texto.

Como consequência disso, a combinação de recursos visuais proporciona a quem os lê informações diversificadas por meio de linguagens igualmente diversificadas (Souza, op. cit.). Tomamos como base tais assertivas para entrevermos que a multimodalidade, constituinte dos textos, não coopera para a existência de leitores(as) desavisados(as), muito menos não passíveis a sua sedução, uma vez que haverá sempre o convite de ler e sentir os textos (Dionisio, 2013) – ainda mais agora, com a celeridade com que os textos são publicados na

internet, bem como com a complexidade com que são urdidos, despertando constantemente o

hábito de ler de uma forma não linear. Em outras palavras, “aspectos verbais e pictoriais se complementam de tal forma que a ausência de um deles, mesmo sendo o de menor incidência, afeta a unidade global do texto” (Dionisio, 2011, p. 140-41).

Nessa conjuntura está o hipertexto e a nova ordem de avanços tecnológicos. Xavier (2013b) esclarece-nos que o texto digital ou a cultura de ler em tela digital se insere numa conjuntura de Pós-Modernidade, ou seja, numa forma de viver em sociedade em que um sujeito adota com celeridade as novas tecnologias e se sobressai ao cultivar “teorias, hábitos e práticas pluralistas” (p. 26), confrontando diretamente à sedimentação da capacidade humana, imposta historicamente. As tecnologias recém-criadas demandam um sujeito que desvie da rota de valores e saberes consolidados, revisando-os ou até mesmo reelaborando-os. Portanto, a nova ordem de avanços tecnológicos implica em modos de organização da linguagem, com o verbal, o visual, o auditivo e o sensorial entremesclados, e em tecnologias como condicionantes, não como determinantes, das mudanças sociais; ela tende, assim, a potencializar processos humanos e conferir-lhes resultados efetivos.

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De acordo com Mozdzenski (2008, p. 86), os textos estão dispostos em um contínuo: de um lado, textos pouco informativos, com maior carga verbal que visual, e do outro, textos altamente informativos mediante traços visuais como espaços em branco, gravuras, desenhos, sinais gráficos, marcadores, numeração, entre outros.

Da diversidade de recursos visuais e modos de significação, bem como da diversidade “linguístico-cultural” (Kleiman e Sito, 2016, p.170) somada às renovações do ensino de línguas e das práticas de letramento (The New London Group, 1996 apud Rosa, 2016), surgem os multiletramentos. Após repararmos bem na epígrafe desta seção, afirmamos que está nela a essência do que propõe o Grupo de Nova Londres em seu convite à reflexão sobre a diversidade de práticas linguísticas e culturais. Com base nisso, os multiletramentos - ou a

pedagogia dos multiletramentos - são, grosso modo, um manifesto em favor de novas

conjunturas sociais. Singularmente, eles têm a ver com modos de ensinar e aprender mais adequados às exigências do “novo mundo do trabalho, da cidadania e da vida” (Rosa, 2016, p. 36), em que pessoas fatalmente são solicitadas a estabelecer relações mais horizontais e colaborativas.

Os multiletramentos reconhecem que as pessoas mudaram, elas também são / estão mais “multiculturais”, circulam em diferentes esferas, culturas e comunidades, atravessam fronteiras (reais e simbólicas) o tempo todo e, por isso mesmo, constituem-se multifacetadas, possuem identidades diversas e híbridas. A velha escola e os velhos letramentos convencionais e exclusivos “das letras” e “dos cânones”, que almejavam moldar os aprendizes a uma determinada “forma social” considerada mais adequada já não fazem mais sentido no século XXI [...] (ibidem, p. 37).

Essa multiplicidade de culturas e identidades está na mesma direção da multiplicidade de textos, discursos e letramentos, por isso que interessa à pedagogia dos multiletramentos dinâmicas de transformação, não de reprodução ou assimilação, já que cânones e eruditos perderam território para linguagens e culturas marginais e populares, permitindo posicionamentos mais críticos sobre certos objetos da educação (Rosa, 2016). Isso equivale a dizer que os multiletramentos são exigidos pela multimodalidade, ou pelos diversos modos de comunicação, por apontarem para múltiplas culturas em que se cruzam diferentes letramentos e para múltiplas semioses textuais em circulação na sociedade (Rojo, 2012).

E como ficam nisso tudo os letramentos? Tornam-se multiletramentos: são necessárias novas ferramentas – além das da escrita manual (papel, pena, lápis, caneta, giz e lousa) e impressa (tipografia, imprensa) – de áudio, vídeo, tratamento da imagem, edição e diagramação. São requeridas novas práticas:

a) de produção, nessas e em outras, cada vez mais novas, ferramentas; b) de análise crítica como receptor.

Em resumo, Rojo (op. cit.) observa que é necessário introduzir nas escolas novas mídias, tecnologias e linguagens com uma ética de recepção e produção baseada em letramentos críticos, bem como novas estéticas para analisar os textos multimodais. Apoiada em Lemke (2010 [1998]), essa pesquisadora não considera – e nós também – os textos multimodais, ou “hipermidiáticos”, como desafiadores. O desafio está totalmente voltado para gestões pedagógicas e docentes quando escolhem aulas de língua materna menos interativas e colaborativas, que não rompam com relações de poder instituídas nem aproximar “linguagens, modos, mídias e culturas” (ibidem, p. 23). O desafio está em instituir nas práticas pedagógicas uma lógica “interativo-colaborativa” (ibidem, p. 24) que não conceba, por exemplo, a utilização do laboratório de informática como “novo” lócus de uma aula carregada de letramentos tradicionais / convencionais.

Além disso, os multiletramentos requerem que a cultura dos(as) estudantes – que não é exclusivamente deles(as) – seja tomada como referência, principalmente no que tange à experiência com TDIC porque são elas que possibilitam mais evidentemente o contato com textos multimodais e hipermidiáticos. Ora, se todos(as) têm contato com esses textos pela “força dos acontecimentos” na contemporaneidade, o primeiro passo já foi dado. Isto é, já temos elencados certos conteúdos didáticos a serem trabalhados nas aulas de Língua Portuguesa; então, o próximo passo deve ser o de desenvolver em nós, docentes, e em especial nos(as) estudantes, letramentos críticos para a análise desses conteúdos. Em vez de considerar estudantes como leitores(as) que compartilham textos sem julgar a fonte, podemos preparar leitores(as) que que façam o inverso; em vez de criticá-los por causa das séries assistidas ou do tempo dispensado a jogos online, podemos tornar essa experiência de expectadores(as) para a de produtores(as) de séries; de jogadores(as) online por diversão para jogadores(as) que saibam brincar seriamente com a linguagem.

Em vez de impedir / disciplinar o uso de internetês na internet (e fora dela), posso investigar por que e como esse modo se expressar por escrito funciona. Em vez de proibir o celular em sala de aula, posso usá-lo para a comunicação, a navegação, a pesquisa, a filmagem e a fotografia

(ROJO, 2012, p. 27).

O que vimos, em seções anteriores deste capítulo, desembocam nos multiletramentos e na sua nova forma de enxergar práticas linguísticas, culturais, sociais e econômicas como aprimoradoras do ensino de línguas. Mas, quais TDIC e como elas podem interferir no ensino e na aprendizagem de Língua Portuguesa? Abordaremos essa questão na seção seguinte.