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A multirreferencialidade é uma perspectiva epistemológica do conhecimento que nega a existência do conhecimento de um ponto de vista purista e monológico, compreendendo os fenômenos em sua complexidade, relacionando-os à dimensão do imaginário. Para Ardoino (1998) há uma necessidade da leitura plural dos objetos (teóricos ou práticos), pois eles existem em um contexto

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Educação do corpo: um olhar multirreferencial para integralidade do sujeito de heterogeneidade, assumindo a hipótese da complexidade, até mesmo de uma hipercomplexidade. Para o autor “[...] a exuberância, a abundância, a riqueza das práticas sociais proíbem concreta- mente sua análise clássica por meio da decomposição-redução.” (ARDOINO, 1998, p. 26).

Um olhar multirreferencial para o papel do sujeito na sociedade não é restrito às representações estratificadas, mas também não nega a existência desse imaginário. Essa visão para compreender a instituição escolar é fundamental, pois nos aponta para uma concepção que tende a perceber a escola em sua complexidade, mas sabendo que nenhuma leitura global, totalizante, é suficiente para estagnar o fluxo de transformações constantes que ocorrem em torno das instituições.

Para a multirreferencialidade, as interações do sujeito dentro da sociedade estão ligadas a um processo de autorização, que segundo Berger (2012, p. 27) “[...] a prática de Ardoino é sempre práxis, quer dizer: ela é uma prática que não é a ação de um sujeito transformando o mundo, mas a ação de um sujeito transformando- se no processo de transformar o mundo”. Sendo assim, a educação e a Educação Física devem se colocar como instituições que se autorizem, para que o sujeito possa exercer sua função de autor, pois: De certa forma, uma das finalidades da educação (escolar, profissional, familiar, social) poderia heuristicamente ser definida como a contribuição de todos aqueles que exercem essa função, segundo o que cada um de seus parceiros em formação (crianças, adultos, alunos, estudantes formadores, etc.) possa progressivamente conquistar, adquirir, constituir, desenvolver nele a capacidade de se autorizar, quer dizer, de acordo com a etimologia, de se fazer, de se tornar seu próprio autor. (ARDOINO 1998, p. 29).

Mackson Luiz Fernandes da Costa, José Pereira de Melo

Essa visão da educação corrobora com Freire (1977, p. 69), ao dizer que “[...] a educação é comunicação, é diálogo, na medida em que não é a transferência de saber, mas um encontro de sujeitos interlocutores que buscam a significação dos significados”. Pode-se dizer que o olhar multirreferencial para as práticas educativas está em torno do indivíduo, das relações, dos grupos, da organização e instituição.

Ancorar-se na multirreferencialidade não é produzir algo novo, mas voltar o olhar com uma leitura plural, reconhecendo a complexidade dos fenômenos e o que está atrelado a eles em sua totalidade. Soares (2006), ao escrever o prefácio do livro “Educação do corpo na escola brasileira”, apresenta uma análise que encaminha para a perspectiva multirreferencial, ao dizer que a educação do corpo na escola se aproximar de uma compreensão de que ela é intermediada por saberes e práticas diversas, perpassando todas as dimensões da vida. É na materialidade dos corpos que se atesta essa diversidade e polissemia na condição de existência do humano. É nesse contexto de múltiplos saberes e práticas na educação do corpo na escola que a Educação Física se encontra e é, a partir da educação do corpo em seus vários contextos sociais repletos de sentidos e significados, que o fazer pedagógico vai sendo constituído.

Partimos ainda, da representação da Educação Física como um componente curricular que tem como matriz a educação do corpo, e nesse sentido, defendemos um olhar multirreferencial, pois existem inúmeras referências aos corpos e a sua educação, assim como as maneiras de pensar os corpos vivos, carnais, suas dores e prazeres, além de inúmeras maneiras de representá-los e de dar-lhes formas, de registrar as formas múltiplas e plurais. Isso implica o reconhecimento da Educação Física como uma prática cultural, na qual os corpos se inscrevem de “[...] todas as regras,

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Educação do corpo: um olhar multirreferencial para integralidade do sujeito todas as normas e todos os valores de uma sociedade específica, por ser ele o meio de contato primário do indivíduo com o ambiente que o cerca.” (DAOLIO, 2013, p. 36). Pois devemos reconhecer que:

[...] antes da educação escolarizada, fazíamos e fazemos o uso do nosso corpo em diferentes atividades, sem as amarras ou controles das nossas expressões corporais e, muito menos, imaginávamos que tais vivências nos acessavam a um conheci- mento corporal que contribuía para o nosso desenvolvimento e, por conseguinte, oportunizava a descoberta das nossas possibilidades de ação e as relações sociais que podem ser estabelecidas a partir do nosso corpo em movimento. (MELO, 2008, p. 55).

A Educação Física tem um papel fundamental para o sujeito se reconhecer no mundo, tendo em vista seu trato com o movi- mento, que está atrelado à existência corporal. Nesse sentido, o corpo passa pela mesma situação do movimento. “Ninguém ou poucos se perguntam sobre o seu significado. Dificilmente o corpo é pensado como a condição humana de situar-se no mundo, de estar presente com os outros e de poder perceber as coisas.” (SANTIN, 2001, p. 99). Nessa multiplicidade de sentido, é que defendemos a multirreferencialidade como referência para uma prática pedagógica que reconhece o sujeito em sua integralidade. Diante do princípio da formação integral, o corpo é funda- mental, pois todo o processo formativo é corporal, implicando em uma aprendizagem que é corporificada. Para Santin (2001, p. 97):

O corpo humano em movimento é uma riqueza incalculável que pode ser explorada diferentemente pela educação física dependendo da intencionalidade de professores e alunos. O corpo pode ser reduzido a um objeto disciplinado e

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explorado como um utensílio qualquer, ou pode ser visto como um organismo vivo a ser desenvolvido, vivido e cultuado com equilíbrio e harmonia.

A compreensão de corpo dos atores do espaço escolar é explicitada no currículo, que por sua vez implica e é implicado na ação pedagógica do professor, atribuindo uma identidade ao componente curricular. Essa identidade se metamorfoseia, pois “[...] as reformas curriculares estão diretamente vinculadas com a constituição de identidades culturais desejáveis para a consolida- ção dos interesses em voga.” (NUNES; RÚBIO, 2008, p. 57). Esses interesses seguem as representações simbólicas do imaginário da sociedade, da escola, dos professores e alunos. Todas essas representações podem sofrer transgressões de cada uma dessas camadas de atores sociais, o que revela a multirreferencialidade como possibilidade de pensar as relações dos sujeitos na condição de sua existencial corporal.