• Nenhum resultado encontrado

4. Resultados e discussões

4.2. Reconstituição morfológica dos tecidos moles

4.2.2. Musculatura da região cervical

A constituição da musculatura cervical é fundamental para o suporte de um crânio robusto como o de

Dinodontosaurus. A musculatura da região mastóide, em mamíferos atuais, especialmente predatórios,

também adquire funções primordiais em suas técnicas de apreensão de alimento.

Infelizmente, para a reconstituição da musculatura cervical em Dinodontosaurus, diversas suposições precisam ser feitas, uma vez que a estrutura da própria coluna cervical não é bem preservada em nenhum dos espécimes observados. Isso dificulta a identificação de alguns sítios de inserção muscular importantes, mas, ainda assim, é possível indicar as posições aproximadas dos principais músculos envolvidos. Parte da informação é recuperável a partir do próprio crânio, em sua região occipital, onde residem diversas áreas de origem muscular. Informações para a coluna foram complementadas utilizando-se inferências a partir do que se conhece em outros dicinodontes.

Normalmente, os autores que reconstroem essa musculatura, nos dicinodontes, tendem a adotar um padrão saurópsido modificado (e.g., Cluver, 1971; King, 1981) ao invés de um arquétipo puramente saurópsido ou mamaliano, em parte com o argumento do desenvolvimento do côndilo occipital e

incipiente rotação dos arcos do atlas sobre o processo odontóide do áxis. A musculatura do pescoço é diferenciada nos mamíferos, em relação ao padrão saurópsido, enquanto que nos lissanfíbios ela é geralmente simplificada. A musculatura dorsal apresenta as maiores similaridades entre todos os grupos coronais, enquanto a ventral (musculatura hipobranquial) se diferencia de forma complexa.

Dorsalmente, os músculos do pescoço são apenas uma continuação anterior da musculatura epaxial do tronco (Romer & Parsons, 1985). Entre saurópsidos e mamíferos, três grupos musculares principais estão presentes na região cervical: o sistema transverso-espinhal, o longuíssimo e o iliocostal (do medial para o mais lateral). Nos mamíferos e em alguns saurópsidos, o último grupo deixa de fazer contato com o crânio, inserindo-se apenas na série de vértebras cervicais (Cluver, 1971).

Medialmente, entre o sistema longuíssimo e os espinhos neurais, encontra-se o complexo sistema transverso-espinhal, que engloba uma série de músculos entrecruzados que se associam aos processos transversos e às sucessivas apófises espinhosas. Entre os músculos que o compõem estão o M. semispinalis

capitis, além dos principais músculos que fazem conexão do crânio com o atlas-áxis, a partir do que se

observa em saurópsidos: os complexos dos músculos reto e oblíquo da cabeça. As denominações específicas dos diferentes ramos desses últimos complexos são variadas; King (1981) utiliza o padrão saurópsido como referência, com as designações de Mm. recti capitis dorsales major et minor, M. rectus capitis lateralis, M.

rectus capitis ventralis, e o Mm. obliqui capitis superior, inferior et magnus (embora esse último ramo possa

estar ausente), enquanto Cluver (1971) utiliza as designações mamalianas correspondentes (Mm. recti

capitis posteriores major et minor, M. rectus capitis lateralis, M. rectus capitis anterior, e Mm. obliqui capitis cranialis, caudalis et magnus). As designações no presente trabalho seguirão as utilizadas por King (1981).

Não é possível identificar todos os locais de inserção muscular no occiput de Dinodontosaurus. As cicatrizes deixadas no occiput são sutis ou mesmo duvidosas e, embora sejam observadas, texturas diferenciadas na superfície óssea (que supostamente participavam da base das inserções musculares) em alguns locais, a exata extensão dessas inserções é difícil de precisar. Alguns recessos e áreas onde o osso adquire uma textura esponjosa coincidem razoavelmente com as áreas de inserções de alguns dos músculos do sistema transverso-espinhal, apresentadas, por exemplo, em Cluver (1971) e King (1990), e foram interpretadas como tais (Fig. 40, A). No complexo atlas-áxis de Dinodontosaurus (Fig. 40, B), todas as reconstituições das origens desses músculos são especulativas, transportadas dos modelos dos autores supracitados, uma vez que esses ossos não se encontram completamente preservados em nenhum dos espécimes estudados.

É provável que esses músculos tenham sido geralmente pouco expressivos, a julgar pelas dimensões observadas nas vértebras. Um dos principais pontos de discussão sobre a musculatura transverso-espinhal se refere ao M. obliquus capitis magnus, que não está presente nos mamíferos, e que pode restringir os movimentos de rotação do complexo atlas-áxis. Filogeneticamente, sua inferência é ambígua, mas King (1981) observa feições osteológicas em Dicynodon que indicariam suas áreas de inserção. Para essa autora, esse músculo seria reduzido, permitindo assim os movimentos de rotação. Não temos como averiguar essa situação em Dinodontosaurus e, portanto, como em Cluver (1971), esse músculo não foi reconstituído.

Fig. 40. – Musculatura do complexo atlas-áxis e região cervical em Dinodontosaurus: A, vista occipital do crânio, com

as possíveis áreas de inserção muscular associadas; B, atlas e áxis apresentando os principais músculos reconstituídos tentativamente, em vista lateral; C, vista lateral esquerda da região cervical e imediações, com a reconstituição da musculatura lateral e ventral. A e C desenhados à mesma escala.

Lateralmente ao sistema transverso-espinhal desenvolve-se o sistema longuíssimo, cujos principais músculos, na região cervical, são o M. longissimus cervicis e o M. longissimus capitis. O primeiro corresponde a uma série de feixes musculares restritos à porção posterior do pescoço, associados aos processos transversos e, em parte, às porções superiores das costelas cervicais (das quais há poucas informações para Dinodontosaurus, ainda mais em se tratando de inserções musculares). Já o segundo se origina da base das pré-zigapófises das vértebras cervicais e se insere na região occipital do crânio, nos esquamosais e parietais em saurópsidos e no processo mastóide em mamíferos (Cluver, 1971). Em outros dicinodontes (e.g., como em Lystrosaurus, de acordo com Cluver, 1971), o M. longissimus capitis foi reconstituído inserindo-se na porção dorso-lateral dos esquamosais, após a fossa temporal. Entretanto, devido à configuração do occiput de Dinodontosaurus, na qual a margem dorsal posterior da fossa temporal é ligeiramente rebaixada em relação às cristas temporais e sagital, esse músculo se localizaria mais dorsalmente, com menor componente lateral. Trechos com foramina muito pequenos sugerem a presença de uma inserção que pode ser associada ao M. longissimus capitis, entre a porção lateral do interparietal e a margem dorsal do esquamosal no occiput, posteriormente à fossa temporal (Fig. 40, A).

Não foi possível observar marcas de inserção muscular do sistema iliocostal no occiput de

Dinodontosaurus, mas apenas devido a fatores relacionados com a preservação do material, além da própria

Nos saurópsidos e mamíferos, diversos músculos que partem da cintura escapular e compõem os flancos do pescoço apresentam consideráveis transformações, assim como ocorre com a musculatura hipobranquial, o que torna a maior parte das inferências para terápsidos ambíguas ao se tentar utilizar suporte filogenético. Por exemplo, o M. levator scapulae superficialis dos saurópsidos (que se origina da face lateral dorsal da escápula e se insere no occiput), dá lugar ao M. rhomboideus, M. atlanto-scapularis e M.

atlanto-acromialis nos mamíferos. O grupo do M. trapezius apresenta alguma similaridade superficial, com

origens se mantendo nos occiputs e fáscias dorsais, mas suas inserções também são distintas, especialmente devido à redução ou desaparecimento da clavícula e cleitro, onde deveriam se posicionar primitivamente (Romer & Parsons, 1985). Huene (1990) sugere a origem do M. trapezius na área vertical anterior do processo acrômio em Stahleckeria.

A parte ventral do pescoço apresenta a musculatura hipobranquial. Nos urodelos, a musculatura ventral do tronco se estende quase continuamente até a parte inferior do pescoço, mas isso provavelmente é uma característica derivada, relacionada com a perda da cintura escapular dérmica (Romer & Parsons, 1985). Entre saurópsidos e mamíferos ocorrem novas diferenciações. O M. omo-hyoideus parte da face interna da clavícula e está associado ao M. sterno-hyoideus nos saurópsidos, enquanto sua origem se posiciona na face superior externa da escápula e se encontra bem individualizado nos mamíferos (Romer, 1922); ao menos as inserções se mantém constantes, indo para a cartilagem tireóide da laringe e osso hióide, e desses para a sínfise da mandíbula (Romer & Parsons, 1985).

A morfologia da cintura escapular dos dicinodontes sugere mais similaridades com o padrão saurópsido, que será tentativamente adotado aqui (Fig. 40, C), embora Romer (1922) tenha utilizado padrões transicionais na reconstituição de alguns terápsidos. Cicatrizes de inserção dos músculos hipobranquiais na cintura escapular e crânio de Dinodontosaurus não são claras, impossibilitando maiores conclusões a esse respeito.