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4. Resultados e discussões

4.3. Morfologia funcional e Biomecânica

4.3.3. Pastadores versus ramoneadores

Ao analisar a função das presas caniniformes, acabamos nos desviando da investigação dos hábitos alimentares de Dinodontosaurus, aos quais elas pouco (ou nada) influenciavam. Alguns aspectos gerais puderam ser elaborados, pela análise da musculatura adutora e a função da mandíbula. Entretanto, essas características ainda não esclarecem as proposições de Cox (1965) ou de Cruickshank (1978), que separam gêneros segundo diferentes modos de forrageio. A única informação até agora mencionada, que poderia indicar um hábito alimentar ramoneador para Dinodontosaurus, é um emprego admissível das presas contra caules ou infrutescências de vegetais.

Antes de seguir enumerando características como essa, em favor de uma ou outra forma de forrageio, é preciso rever alguns conceitos. Os mamíferos herbívoros modernos são habitualmente classificados como pastadores quando se alimentam exclusivamente de gramíneas, enquanto os ramoneadores se alimentam de outras plantas, e há todo um espectro de pastadores-ramoneadores e ramoneadores-pastadores (Jarman, 1974). Nessa classificação, os conceitos de alimentação seletiva ou não-seletiva são superimpostos: tanto formas ramoneadoras como pastadoras podem ser seletivas ou não. Essas categorias não representam características discretas, mas sim um contínuo de variedades ecológicas em herbívoros de uma linhagem. Citando alguns exemplos (dados de Mendoza et al.64

, apud Palmqvist et al., 2003) entre cervídeos modernos, algumas espécies são ramoneadoras de nível elevado (Alces alces), outras são ramoneadoras não- seletivas de vegetação rasteira, em que gramíneas compõem menos de 25% de sua dieta (Capreolus

capreolus, Rangifer tarandus). Outras espécies possuem ainda alimentação mista (Dama dama), com cerca

de 50% de gramíneas na dieta, e existem também pastadores de grama fresca, cuja dieta é composta por

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ROWE, Placerias, an unusual…

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MENDOZA,M., JANIS,C.M. &PALMQVIST,P.2002. Characterizing complex craniodental patterns related to

mais de 75% de gramíneas. Entre bovídeos atuais, há categorias similares: podem ser citados exemplos de espécies ramoneadoras seletivas de nível elevado (Litocranius walleri), herbívoras de alimentação mista (Bos

gaurus, Bos indicus, Gazella dorcas, Damaliscus dorcas) e ainda pastadoras não-seletivas (Alcelaphus buselaphus, Antilope cervicapra, Connochaetes taurinus). É possível utilizar-se de medidas ósseas para se

prever aproximadamente algumas dessas categorias de hábitos alimentares em formas fósseis similares (e.g., Solounias et al., 1995).

Mas se a definição de pastador implica em uma alimentação predominantemente de gramíneas, o que de fato seriam pastadores, no caso dos dicinodontes, se esses tipos vegetais não ocorrem antes do Cenozóico? Se desconsiderarmos essa forma de classificação, argumentando simplesmente que não havia “pasto” na época, mesmo quando se analisa apenas o grau de seletividade de um animal extinto, uma inferência conclusiva também pode ser difícil. O rostro amplo de alguns dicinodontes pode ser um reflexo de herbívoros menos exigentes quanto ao alimento, ou melhor, menos seletivos. Rostros estreitos seriam esperados em herbívoros que selecionam o alimento, dentre uma vegetação variada, evitando, por exemplo, plantas que lhes são nocivas ou de difícil digestão65

. Dinodontosaurus, com seu rostro terminando anteriormente em uma borda retangular, poderia ser considerado menos seletivo que alguns gêneros cujos rostros terminam de forma afilada, em ponta; entretanto, ele poderia ser considerado mais seletivo que animais como Jachaleria, cujo rostro é ainda mais largo.

Mas não seria correto afirmar que as modificações do ciclo mastigatório dos dicinodontes já não são, a seu modo, especializações a determinados tipos de vegetais, ou seja, um reflexo de seleção alimentar? Certamente os dicinodontes marcam um avanço na herbivoria em tetrápodes não-mamalianos e Rayner (1992) sugere que o aparato mastigatório dos dicinodontes, na verdade, os permite serem mais generalistas, capazes de processar tipos de vegetais mais variados que outros animais em sua época. Nesse trabalho, esse autor também propõe que as esfenófitas (descrevendo especialmente a morfologia do gênero Phyllotheca), plantas geralmente associadas a corpos d’água, de porte herbáceo a arbustivo (embora algumas espécies pudessem atingir porte arbóreo; vide Kenrick & Davis, 2004), representariam as forragens rasteiras mais abundantes nos terrenos do Gondwana e poderiam ser consideradas como uma forma de “pasto” para alguns períodos de tempo anteriores ao Cenozóico. Keyser (1971) já supunha que as esfenófitas compunham um tipo vegetal principal na dieta de dicinodontes permianos, embora não exista evidência direta para tanto.

Por conseguinte, uma forma de tratar os pastadores seria considerar como tais os animais que se alimentassem de vegetação rasteira, enquanto os ramoneadores se alimentariam de ramos de vegetais que se elevam mais acima do solo. Na verdade, mesmo essa pressuposição é um tanto arbitrária, mas pode ser utilizada como hipótese de trabalho.

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Isso pode ser reflexo apenas de mudanças ambientais e florísticas, com uma adaptação alimentar, uma vez que, em casos onde as plantas são mais esparsas, como em ambientes áridos, não haveria necessidade de seleção da matéria vegetal. Portanto, esse não seria, necessariamente, um parâmetro classificatório natural, como propunha Cox (1965).

Cruickshank (1978) identifica pastadores e ramoneadores entre os dicinodontes, inicialmente, a partir de comparações com os suídeos, através da relação angular entre palato e occiput. As formas com occiput em ângulo reto em relação ao palato seriam as ramoneadoras, que teriam o rostro voltado para a frente, enquanto as formas em que o occiput era oblíquo ao palato, ascendendo posteriormente, seriam pastadoras, com o rostro se voltando ventralmente. Entretanto, no mesmo trabalho, ao fazer comparações com as preguiças gigantes, ele propõe que as formas ramoneadoras poderiam ser capazes de se erguer nas patas traseiras para se alimentar de vegetação mais elevada. Isso torna o problema ainda mais intrincado, pois se cria um paradoxo: se esses animais tinham crânios adaptados a uma postura horizontal em relação ao solo (como comentado para a reconstrução esqueletal aqui apresentada), ao se erguerem, essa postura deixaria o crânio inclinado, voltado para cima.

É possível observar que algumas espécies de herbívoros modernos que se erguem para alcançar vegetação elevada são capazes de posicionar sua cabeça horizontalmente, ao se levantar, e habitualmente o fazem. O bovídeo africano gerenuk (Litocranius walleri) ergue-se nas patas traseiras, alinhando a maior parte de sua coluna vertebral quase verticalmente, mas seu crânio é mantido horizontal, devido ao posicionamento do occiput quase na base do crânio.

É interessante expor que diferenciações de nicho ecológico entre formas ramoneadoras e pastadoras foram estudadas para preguiças terrícolas, o foco de comparações de Cruickshank (1978), utilizando-se enfoques morfométricos e biomecânicos (Bargo66

, apud Bargo, 2003), mas, até onde foi possível averiguar, essas abordagens não incluíram observações da forma do occiput. Entre essas preguiças, algumas espécies, como Paramylodon e Mylodon (vide Couto, 1979, e Gaudin, 2004), apresentam os occiputs descendentes posteriormente, enquanto outras, como Nothrotheriops, possuem até mesmo occiputs posteriormente ascendentes (vide novamente Couto, 1979, e Gaudin, 2004) (Fig. 51, A e C). Essa última conformação também é observada em pampatérios, os “tatus-gigantes”, que deveriam forragear rente ao solo. Os megateriídeos Eremotherium e Megatherium (vide Toledo, 1989) possuem occiputs praticamente verticais (Fig. 51, B), mas existe grande variabilidade morfológica craniana e, em alguns casos, os occiputs são ascendentes posteriormente. Desse modo, essas espécies, que são mais diretamente associadas com um caminhar bípede, conseguem manter seus crânios horizontalizados ao se erguerem, através do arranjo da coluna, que permite considerável flexão, associada à orientação mais verticalizada do occiput. Esse arranjo, teoricamente, permite que elas mantenham a cabeça mais abaixada, quando caminhando em postura quadrúpede, do que as preguiças que possuem occiputs descendentes posteriormente.

Assim, no caso dos dicinodontes, poderia se esperar que os animais com occiput ascendente e rostros afilados fossem os que se erguessem sobre as patas traseiras, se esse era o caso, para que pudessem manter o crânio horizontalizado enquanto se alimentavam, como ocorre com as preguiças Megatheriidae. Eles poderiam ser considerados ramoneadores seletivos. Já as formas com occiput reto e rostros largos, como

Dinodontosaurus, se alimentariam de vegetação próxima à altura da cabeça, podendo ser ramoneadores

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BARGO,M. S. 2001. El aparato masticatorio de los perezosos terrestres (Xenarthra, Tardigrada) del Pleistoceno de la

não-seletivos. Esse problema precisa ser analisado, portanto, também sob a óptica postural, para aferir se os dicinodontes poderiam, usualmente, posicionar-se de forma bípede.

Fig. 51. – Morfologias cranianas em preguiças terrícolas extintas, evidenciando a variação de orientações do occiput: A, Paramylodon; B, Eremotherium; C, Nothrotheriops (modificados de Gaudin, 2004). Sem escala.