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Não existe pecado do lado de baixo do Equador, Vamos fazer um pecado, rasgado, suado, a todo vapor... (Trecho da letra da música de Chico Buarque e Ruy Guerra)

Essa idéia do Sul como um centro de diversões para o Norte econômico mundial, alegoricamente retratada por Chico Buarque e Ruy Guerra (compositores de uma periferia, no Sul econômico), envolve não só o imaginário masculino, a exemplo da música. Muitas mulheres dos países centrais também se deslocam para o Sul em busca de diversão e prazer. O filme Em Direção ao Sul (2005), uma produção franco-canadense, versa sobre a procura por novas e autênticas experiências afetivo-sexuais de três mulheres estadunidenses: Sue, Brenda e Ellen, que viajam a turismo para o Haiti, por volta de 1990.

A homogeneização da pobreza local é rompida pelos hotéis de luxo que se esparramam pela beira-mar. Isso atrai algumas pessoas da população fixa para aquela área, seja para trabalhar ou para seduzir e se envolver com a população flutuante. Dentre elas, os homens autóctones ganham destaque e são disputados pelas turistas, que, nessa versão fílmica do turismo sexual feminino, são bem mais velhas que os haitianos.

As três mulheres brancas passam a discutir sobre como os negros locais são atraentes e que perto deles os brancos não têm nenhum charme. Contudo, todas revelam que em seus lugares de origem, elas sequer se interessam pelos negros. Mas no Haiti, eles são diferentes. Será que é devido à natureza? Será que é por causa do calor e do sol? “De qualquer modo, eles são mais graciosos.”, diz Brenda. Mas Ellen arremata: “A razão é porque aqui, você os vê praticamente nus.” O motivo da viagem àquele paraíso turístico é a expectativa de vivência de experiências afetivo-sexuais ímpares. Nenhuma delas está ali pela primeira vez, já

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Título da música da epígrafe, que traduz de certa maneira os contatos amorosos e sexuais que ocorrem com maior freqüência nos destinos turísticos dos países periféricos, muitos deles localizados ao sul da linha do Equador.

conhecem os roteiros e os protagonistas dessas redes de sociabilidade. Ellen provoca sarcasticamente Brenda: “Você não veio aqui atrás de um bronzeado. Veja quantos rapazes bonitos. E vêm em dúzias. É só escolher.” Por fim, ela lhe dá um conselho, que parece ter chegado aos ouvidos de algumas turistas estrangeiras que freqüentam Pipa: “Se tem vergonha de pagá-los, dê presentes!”164.

Assim como o Haiti, o Brasil, e principalmente as praias do litoral nordestino, há alguns anos, encontra-se na rota internacional de viajantes, implícita ou explicitamente, em busca de sexo. Corriqueiramente chamam esse fenômeno de turismo sexual. De maneira geral, os discursos midiáticos e políticos (governamentais e não-governamentais) levam-nos a crer que se trata de uma atividade homogênea, praticada por homens dos países centrais (leia- se dos Estados Unidos e da Europa Ocidental), consumidores e estimuladores da prostituição de mulheres, crianças e adolescentes (em sua maioria, também do gênero feminino). Esses turistas sexuais empreendem, segundo aqueles mesmos porta-vozes, relacionamentos que exploram e aproveitam a situação de exclusão social desses indivíduos, estabelecendo parcerias momentâneas e puramente comerciais, em que vingam a noção de utilitarismo, a reprodução de imagens estereotipadas e o reforço das desigualdades globalmente estabelecidas. Rotineiramente, somos bombardeados por manchetes que disseminam clichês e alimentam o ódio sobre tais turistas, como visto na introdução.

Porém, quando nos deparamos com a realidade, assustamo-nos com sua diversidade165 e notamos que aquela é apenas a versão mais visível e divulgada do turismo sexual, posto que é interessante reproduzir papéis sociais, especialmente vinculados ao regime de gênero, que

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Todas as falas são diálogos literais retirados do filme, cujo título original é Vers le Sud , que é dirigido por Laurent Cantet (2005).

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“Essa diversidade se expressa na existência de várias modalidades de turismo sexual; em significativas distinções entre turistas sexuais – homens e mulheres – e no amplo leque de relacionamentos estabelecidos entre estrangeiros/as e nativos/as, envolvendo tanto contatos múltiplos, anônimos e imediatamente remunerados, como ligações duradouras e atravessadas por emoções românticas que, embora não excluam o interesse econômico, não incorporam pagamento monetário direto.” (PISCITELLI, 2001: 591).

mantêm correlações deterministas como homem - explorador - turista sexual e mulher – vítima - prostituta. De acordo com essas configurações, nesses encontros, o homem, mais expressamente o estrangeiro, vem saciar suas “perversões” com mulheres desempoderadas, que ingressam na prostituição com vistas a conquistas materiais. Essa reducionista noção deixa, assim, à margem qualquer interpretação desses intercâmbios como meios de construção de relacionamentos afetivos e incorporação de status por ambos os parceiros.

O registro e a análise de fenômenos como os que ocorrem em Pipa e no Haiti demonstram a presença desses elementos ignorados e têm como principal função, e daí sua importância, ampliar o foco analítico da discussão, desfazendo-se de qualquer rasgo determinista e interpretação positivista, e trazer à tona a multiplicidade de sentidos atribuídos a tais encontros binacionais e a pluralidade de fatores e atores que os constituem.

Sabemos que a atividade turística ou, melhor dizendo, o ato de viajar para um lugar distante, desconhecido, diferente, permite, àquele que viaja, forjar durante um curto espaço de tempo uma “nova vida”, desligada das obrigações cotidianas, como trabalho e família, e experimentar novos ares, climas, paisagens, sabores, sons, sensações e amores. Uma coisa é inegável, todo indivíduo quando viaja, deseja vivenciar momentos experienciais ímpares e, assim, busca mudar de rotina de vida num período de, geralmente, 15 a 30 dias166, e isso pode incluir também novas experiências afetivas e sexuais, que não necessariamente estão inseridas em roteiros prescritos que seguem uma noção determinista de busca de sexo – trocas sexuais pagas e impessoais.

[...] pesquisas contestam a adequação da idéia de prostituição, concebida em termos de serviços sexuais remunerados, indiscriminados e emocionalmente neutros, para pensar no conjunto de relações que surgem desses encontros sexuais entre turistas (homens ou mulheres) e locais. [...] algumas abordagens têm procurado conceitualizar o turismo sexual confrontando a associação linear, que se tornou habitual nos estudos sobre o tema, entre turismo sexual e prostituição. Nessa linha de pensamento, [...] o turismo

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Esse é o período médio que as turistas estrangeiras costumam passar em Pipa. No entanto, algumas chegam a passar três meses, enquanto outras permanecem por menos de uma semana.

sexual é conceitualizado como experiência de viagem na qual a prestação de serviços sexuais da população local, em troca de retribuições monetárias e não monetárias, é um elemento crucial para a fruição da viagem (PISCITELLI, 2001: 591-592).

Os relacionamentos envolvendo práticas sexuais e elementos afetivos, de acordo com uma série de pesquisas (majoritariamente debruçada sobre os destinos turísticos “terceiro- mundistas”), iniciada a partir da década de 1990, funcionam como elementos constituintes da atividade turística, instrumentos para o desfrute das férias dos viajantes, bem como do cotidiano de alguns membros da comunidade receptora. Ao viajar busca-se o diferente, o novo, o inusitado, o outro, assim, não há encontro mais efusivo e revelador da alteridade do que o contato entre pessoas de distintos povos. Compartilhando da análise feita acima por Piscitelli (2001), dois interlocutores naturalizam os conúbios em contexto de viagem:

Pô chegar num lugar e não fazer um amor com uma pessoa do lugar é merma coisa que não ter ido. Uma coisa que marca aquele lugar é fazer um love

story lá, tá ligado? (Pessoa).

Quando você tá de férias, que vai prum outro país, lógico que você tem uma tendência a mais ou menos o quê? Aproveitar a praia, curtir a balada e procurar alguém, né? Isso é normal pra todo mundo, isso é do ser humano mesmo (Bento).

Dessa maneira, percebemos que, pragmaticamente, os intercursos sexuais em contextos de viagem são muito mais comuns167 e mais freqüentes do que propalado pelas campanhas governamentais de combate, em tom criminalizante e xenófobo, ao turismo sexual. Ademais, não definem que posições os parceiros irão assumir, nem determinam que eles estejam inseridos numa dinâmica puramente mercantil. No entanto, não podendo abandonar o termo, pois não existe ainda outro que o substitua e abranja a complexidade atual

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Um argentino, chamado Pablo, que se encontrava de namorico com uma natalense foi enfático: “Tiago, se

do fenômeno, optamos por deixá-lo sob rasura (HALL: 2007) e por ampliar sua concepção prosaica, como sugerido por Fernando Bessa Ribeiro e Octávio Sacramento:

[...] o turismo sexual diz respeito à circulação de pessoas em tempo de lazer que tem por base, ainda que não exclusivamente, motivações que se prendem com a expectativa de concretizar relacionamentos amorosos e/ou sexuais, de natureza comercial ou não, com outras pessoas que se encontram nos destinos turísticos (RIBEIRO E SACRAMENTO, 2006: 162).

Visando dar conta de sua complexidade, mas sem torná-lo esvaziado, quer dizer, buscando trabalhar sua dimensão crítica frente ao senso comum, é necessário frisar que encaramos as interações afetivo-sexuais em contextos de viagem turística como um movimento que: vai de encontro a essa tentativa de controle dos corpos e dos desejos; desordena os discursos de gênero; possibilita a aquisição de poderes a sujeitos, em outros contextos, vulnerabilizados; e que, informalmente, atua, para muitos (as), como um mecanismo de redistribuição de renda e “democratiza” a possibilidade de deslocamentos internacionais e de viver uma vida mais digna, podendo sentir-se como atores inseridos neste mundo globalizado (cf. AGUSTÍN, 2005).

De todo modo, os encontros afetivo-sexuais em contexto de viagem diferem apenas quanto ao fato deles serem ou não premeditados, se a possibilidade de realizarem intercursos sexuais é um dos objetivos dos (as) viajantes, anterior à sua partida, ou se é uma conseqüência incalculada dela. Contudo, existe em todos os casos uma grande defasagem entre as motivações e o comportamento real do (a) turista no local da viagem em si, por isso as interações afetivo-sexuais tornam-se imprevisíveis e, ao mesmo tempo, são esperadas, pois a libido e a errância sexual são estimuladas e intensficadas pelo imaginário da viagem turística, ainda mais quando o destino se localiza num país que se apresenta como permissivo e sexualizado, cuja população possui a fama de ser “sensual por natureza”.