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Uma das situações de contato passíveis de ocorrer em contextos de viagens de turismo é a interação afetivo-sexual entre visitante e visitado. Esses encontros, até pouco tempo, eram descritos homogeneamente como sendo empreendidos por homens viajantes e por mulheres

locais, profissionais do sexo. Outros elementos eram resgatados para envolver essas parcerias com uma atmosfera de exploração. Dessa forma, destacavam-se o fato das mulheres serem geralmente provenientes de classes menos abastadas, negras, naturais de países periféricos e com baixa formação educacional. Em contraposição, os homens são caracterizados por sua branquitude, por serem originários dos países centrais e pela aparente estabilidade financeira. Frequentemente, conclui-se que esses turistas viajam tendo a perspectiva da concretização de fáceis intercursos sexuais como principal motivador de seus deslocamentos, valendo-se da força de suas moedas e das precárias condições sociais dos países que visitam.

O fenômeno tornou-se conhecido globalmente como turismo sexual e é representado, com o auxílio dos veículos midiáticos, como sendo emocionalmente neutro e fria e diretamente mediado pelo dinheiro, mobilizando um grande aparato jurídico, pois o associam ao tráfico internacional de mulheres e à exploração sexual infanto-juvenil.

Estudos sobre a questão do turismo sexual, por exemplo, costumeiramente abordam o tema caracterizando-o como uma exploração de pessoas - geralmente mulheres, que não possuíam muitas perspectivas econômico-profissionais - por parte do turista (geralmente homens), assim, vitimizando uma das partes e criminalizando a outra63.

O Estado brasileiro, entretanto, durante mais de duas décadas explorou e divulgou o corpo da mulher brasileira, ressaltando sempre a mulata64, como uma das principais belezas naturais do país e, semelhante a outros atrativos turísticos, passível de ser apreciado e consumido. Com a emergência e popularização do debate sobre o turismo sexual, houve uma mudança radical no contexto da política brasileira em relação ao turismo. Guiados pela idéia

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“Uma moral democrática deveria julgar os atos sexuais pela forma como os parceiros tratam um ao outro, pelo grau de respeito mútuo, pela presença ou ausência de coerção e pela quantidade e qualidade dos prazeres que eles propiciam. O fato de o ato sexual ser gay ou não, aos pares ou em grupo, sem roupa ou com roupas íntimas, comercial ou não, com ou sem vídeo, não deveria ser objeto de preocupações éticas.” (RUBIN, 2003:

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Um trabalho que faz uma análise profunda e muito interessante das campanhas publicitárias da Embratur e seu forte apelo sexual é o de Louise Prado Alfonso (2006).

de vulnerabilidade das mulheres (posto em debate pelo movimento feminista) e por um imaginário que conserva o estigma brasileiro de colonizado, órgãos públicos ligados à atividade turística, prefeituras, governos estaduais e presidência da República passaram a caracterizar o turismo sexual como invasivo, desrespeitoso aos valores da nação e não- lucrativo, e o turista sexual, personificado na figura do estrangeiro, como persona non-grata.

A ex-ministra do Turismo, Marta Suplicy afirmou em uma entrevista: “Combaterei com todas as minhas forças o turismo sexual e todas as formas de exploração. Esse tipo de turista não queremos aqui, e de preferência, queremos preso atrás das grades.”65. Entretanto, apesar da já assumida mea-culpa, pelo governo atual e o marketing turístico feito no exterior - que sempre recebeu maior atenção do que o doméstico - ter mudado de configuração, até o início da década de 1990, a Embratur (Instituto Brasileiro de Turismo) vinculava, como chamariz do turismo internacional, imagens de paisagens naturais acompanhadas por mulheres seminuas, transmitindo uma idéia de carnavalidade e erotismo, que seriam inerentes ao brazilian way of life. Todavia, esse tipo de marketing, apesar de abandonado pelas campanhas publicitárias federais e por boa parte dos governos estaduais e municipais, continua a ser praticado por algumas agências de viagens, tanto no que tange às agências de receptivo (localizada no destino da viagem) quanto de emissivo (ou seja, que se encontram no local de residência do turista), e constatamos que essas imagens continuam a circular pela web.

Destarte, já há alguns anos, vem ocorrendo uma série de campanhas de combate ao turismo sexual em nível nacional e local, que trazem slogans explícitos quanto à criminalização (ilegal, pois não consta na legislação brasileira) do turista que se acredita viajar por motivações sexuais, à vigilância constante da população (cabendo a ela denunciar

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os casos) e a vitimização das trabalhadoras do sexo, tidas como exploradas, nunca como profissionais66.

Todavia, apesar da persistência dessas campanhas, há cerca de duas décadas esses discursos vitimários e criminalizantes começaram a ser confrontados por uma série de estudos que trazem à tona o relato dos que se encontravam inseridos nesses roteiros de sociabilidade e como eles, através de suas narrativas de vida, significavam as suas parcerias afetivo-sexuais67. É nesse novo contexto que o presente trabalho se enquadra.

A antropóloga Dolores Juliano (2005) contribui para essa nova tomada de consciência ressaltando que não se pode confundir prostituição adulta com a infanto-juvenil, nem correlacioná-la sempre a uma idéia de exploração. Para o Grupo Davida (2005), essa é uma característica de quem não consegue discernir pesquisa científica de militância política, tomando como referência algumas alas radicais do movimento feminista. Fernando Bessa Ribeiro (2008), por seu turno, fazendo eco às considerações de McClintock (1993), argumenta que é preciso tratar a questão como inserida no debate sobre o acesso à cidadania e à universalização dos direitos e liberdades individuais.

A complexidade que os novos estudos apontam põe abaixo todas as tentativas de essencialização das representações relativas ao gênero e à sexualidade, baseadas na construção normativa de sujeitos internamente coerentes e dispostos em uma lógica binária, a um só tempo, excludente e complementar.

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Para exemplificar o que se está aqui problematizando, podemos observar esse discurso em uma das campanhas federais, que diz: “Turismo sexual: o Brasil está de olho!”. E uma outra realizada pela Prefeitura do Natal alerta, em inglês: “Stop sex tourism!”. O jornal Diário de Natal, em matéria publicada no dia 03 de novembro de 2006, diz que essa campanha “aposta fortemente no constrangimento do visitante que vem com a intenção de praticar

o turismo sexual [...] os textos estão sendo veiculados em cartazes, panfletos, adesivos, outdoors e filme publicitário.” Este último exibido na área de desembarque de vôos internacionais do aeroporto Augusto Severo.

Tal iniciativa vem sendo considerada exemplar e modelo a ser disseminado em outras capitais que “sofrem” com o mesmo “problema”. Ver Anexo II, pois traz alguns panfletos dessas campanhas de combate ao turismo sexual. 67

Esse reconhecimento era uma exigência dos movimentos sociais formados pelas trabalhadoras sexuais como o Grupo Davida (2005) e expresso internacionalmente pelo Sex Workers Manifesto (2005), que apontam as condições de marginalidade e o desprezo social como os principais problemas que envolvem o sexo mercantil, entendido por suas protagonistas como sendo uma interação necessariamente consensual.

A estruturação dicotômica da sociedade, em que um dos objetivos é o controle e a produtividade, vai rapidamente cedendo lugar a uma multiplicidade de formas, que se entrelaçam numa dinâmica que torna infrutíferos e irrelevantes quaisquer projetos de compartimentalização e categorização da realidade. Pensar o mercado de sexo como tendo parceiros bem definidos (mulheres como profissionais do sexo e homens como clientes) e contornos bem delineados demonstra somente a incapacidade de abarcar sua pluralidade de combinações e a fluidez de seus enquadramentos (AGUSTÍN, 2005).

No entanto, a maleabilidade e processualidade dessas posições de sujeito nos discursos de gênero (MOORE, 2000) são verificadas com maior nitidez nos trabalhos que mesclam o mercado de sexo ao turismo sexual. Existem vários estudos sobre homens que disponibilizam serviços sexuais para mulheres que estão em viagem. Autores como Kamalla Kempadoo (2004), Klaus de Albuquerque (1999), Julia Davidson & Jaqueline Taylor (1999) e Laura Agustín (2007) realizam estudos sobre essa variante do mercado de sexo e destacam países como Jamaica, Cuba, República Dominicana e Barbados. No Brasil, quem fomenta essa interface é Adriana Piscitelli (2000).

Essas constatações ainda causam surpresa, pois atividades como o sexo mercantil e a viagem em busca de sexo foram-nos por muito tempo apresentadas como generificadas. O primeiro cabia à mulher, o outro era marcantemente masculino, ou melhor, fazia parte do repertório da dominação masculina (BOURDIEU, 2003).

Esses fatos tornam-se ainda mais complexos quando nos recordamos que homens, homossexuais e/ou heterossexuais mesmo prostituindo-se, não despertam um interesse público sobre questões como exploração infanto-juvenil, tráfico de pessoas e condições socioeconômicas que os impelem a tal atividade68. Talvez isso ocorra pelo simples fato de

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No caso dos homossexuais, particularmente, pode-se supor que este desinteresse público pela situação em que eles se inserem no mercado de sexo traz, em seu bojo, razões ligadas a algum grau de homofobia, posto que a carga moral da sociedade brasileira tende a vê-los como desviantes, evitando, assim, o debate aberto e não- valorativo sobre eles.

serem homens, naturalizando, dessa forma, seu poder de decisão e seu ingresso voluntário no mercado de sexo, o que parece ser impensável quando se trata de mulheres. Do mesmo modo, as turistas sexuais não são alvejadas por campanhas de tom xenófobo, pois as mulheres não são vistas nem como exploradoras, posto que estão subordinadas ao poder do falo, nem como consumidoras de serviços sexuais, pois existe uma crença difundida em nossa sociedade de que elas só se “entregam” a um homem quando envolvidas pelo romance.

As “cruzadas morais” são forjadas para criar inquietações na sociedade referentes a determinados temas, na tentativa de implementar regras para enquadrá-los. As campanhas nacionais e locais de combate ao turismo sexual procuram introduzir um clima de ojeriza no seio da população contra o falo estrangeiro69. Esse “pânico sexual” ganha força, tomando proporções apocalípticas, pois a viseira da moralidade e do controle dos corpos e dos desejos impede uma análise crítica da questão (GRUPO DAVIDA, 2005).

Os capítulos a seguir pretendem contribuir para esse profícuo campo de análise, pois se prendem a um estudo aprofundado dessas novas configurações do mercado de sexo e do turismo sexual em um destino turístico do nordeste brasileiro: a Praia da Pipa, no Rio Grande do Norte.

Além de dar voz aos parceiros diretamente envolvidos nessas interações, busca-se dialogar também com as pessoas que participam indiretamente destas parcerias binacionais, para saber, no caso em estudo, como os demais representantes da comunidade pipense interpreta-os e significa-os, em outras palavras, levando em conta o olhar daqueles que se encontram fora desses circuitos de sociabilidade. A análise da versão pipense dos intercursos afetivo-sexuais em contexto de viagem enfatiza, ainda, não só a percepção do turista sobre o hospedeiro, mas também, e sobretudo, as representações que os visitados fazem dos visitantes.

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É, de fato, uma expressão de “xenofobia genital”, como bem captou Nelson Motta (2005). Pois o pênis estrangeiro, implicitamente, representa uma ameaça, que põe em perigo a pureza das vaginas nacionalizadas. Para melhor compreensão das noções de pureza e perigo ver: Douglas (2006).

Em suma, a análise dos dados etnográficos dedica-se a uma complexificação e desconstrução das interpretações doxas sobre o mercado de sexo e o turismo sexual, indicando possíveis saídas para os nós teórico-metodológicos que as configurações em estudo impõem. Para além duma revisão dos conceitos e categorias talvez seja necessário exatamente o abandono destas, haja vista, por exemplo, a fluidez da noção de turista sexual, bem como a constante defasagem que o (a) turista apresenta entre suas motivações e seus reais comportamentos no destino de viagem, o que parece deixar poucos elementos que os (as) diferenciem de outros tipos de turista.

A partir desse momento do trabalho, entrar-se-á mais diretamente nos registros e análises frutos do estudo etnográfico. Contudo, antes ainda de apresentar o foco central da pesquisa, faz-se mister explorar como era o cotidiano, as relações interpessoais e a organização social, na comunidade da Praia da Pipa, precedentes ao advento do turismo para, logo em seguida, apresentar sua atual conjuntura, destacando as mudanças vindas juntamente com as levas de forasteiros que se espraiam por toda parte do distrito e como a comunidade local foi adaptando-se e também tomando parte nessas transformações. Assim, tornando-se mais fácil visualizar, a posteriori, as manipulações e reformulações simbólicas realizadas pela comunidade receptora do destino turístico de Pipa, que objetivam tirar proveitos da chegada dessa atividade, com destaque aqui para a manufatura das representações locais de gênero empreendida por alguns homens autóctones e adventícios. Vale frisar que serão exatamente as relações e representações de gênero que desempenharão a função de eixo norteador e termômetro dos câmbios sociais também neste capítulo.