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Michel Foucault (2007) deixa claro que apenas durante o período moderno, mais precisamente a partir da Era Vitoriana, a sexualidade foi alvo de “jogos de verdade” e vista

como reveladora da essência do ser de todos os sujeitos. Não obstante, a sexualidade e, com freqüência, o sexo trocado por dinheiro ou outras benesses foram temáticas sobre as quais inúmeras culturas se debruçaram e dissertaram. Como em outros domínios referentes à sexualidade, vastos significados foram atribuídos àqueles referidos câmbios.

Quanto ao utilitarismo das práticas sexuais, Emma Goldman (1977) afirma que o historiador Heródoto (485 e 420 a.C.) proclamava que toda mulher deveria pelo menos uma vez na vida oferecer-se a um desconhecido em troca de dinheiro, sendo esta uma atitude de reverência à deusa Vênus. Outras informações sobre estes primeiros registros remetem-nos à antiga Mesopotâmia. Segundo a historiadora Gerda Lerner (1986 apud SEP29, 2004), nessa região havia cultos que envolviam serviços sexuais, assim como na Babilônia, onde rituais de fertilidade eram constituídos por ofertas de serviços sexuais aos deuses e deusas. Nesse tempo, o sexo transacional era uma prática sagrada, mas logo uma versão secular passou a ser desenvolvida no entorno dos templos. Georg Simmel, em Filosofia do Amor, obra escrita no início do século XX, ratifica as informações dessa historiadora:

Entre os lídios da Antiguidade, segundo Heródoto, as moças se ofereciam por dinheiro, para formar um dote; em muitas partes da África, o mesmo costume prevalece ainda hoje e não debilita o respeito devido às moças – entre as quais encontram-se, não raro, as princesas reais -, como tampouco impede-as de se casarem e se tornarem mulheres absolutamente honradas. [...] E essa conduta se eleva tão alto na ordem moral, que até se vê aparecer uma prostituição cultual – uma entrega de si cuja renda será, de fato, destinada ao tesouro do templo, como Estrabão relata acerca das moças da Babilônia (SIMMEL, 2001: 4). (Grifo meu).

Tendo como referência a sociedade ocidental, pode-se dizer que a transformação das práticas sexuais em objetos imbuídos de um valor de troca é simultânea a seu processo civilizatório. Recorrendo a Havelock Ellis (1910) e tentando exatamente alertar-nos que a relação entre a transação sexual e o sagrado não havia ficado restringida às civilizações da

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antiguidade e/ou às não-ocidentais, Goldman (1977) diz que essa atividade chegou a ser uma instituição organizada pelos sacerdotes católicos do medievo, tendo como objetivo a incrementação da renda pública, o que ressalta a idéia de um aspecto utilitário30. O Cristianismo, percebendo a rentabilidade, bem como visando o controle dos chamados comportamentos desviantes, gerados pela demanda por sexo além da esfera matrimonial, explorou a sua objetificação, assumindo, assim, por certo tempo o papel de “sagrado” e “legítimo” cafetão: o Papa Clemente II (século XI) tolerava esse mercado com a condição de que as mulheres “públicas” doassem parte dos seus ganhos à Igreja, enquanto que o Papa Sixto IV (século XV) taxava diretamente os bordéis (GOLDMAN, 1977).

Todavia, ao contrário do que ocorria naquelas antigas sociedades, a mulher ao prestar tais “serviços sexuais” perdia todo o seu valor no mercado matrimonial, mas, por outro lado, servia para manter e realçar o valor da castidade daquelas que a essa prescrição se subjugava. De fato, mulheres “públicas/comuns”, segundo Jaques Rossiaud (1991), possuíam uma dupla função social: elas saciavam os impulsos sexuais dos homens e evitavam que, devido a esses mesmo “naturais” e incontroláveis impulsos, outras mulheres fossem desonradas, maculadas. Rossiaud ressalta que além dessa responsabilidade social, elas resguardavam também um encargo moral, haja vista que a elas era delegada a manutenção de parte da ordem coletiva.31 As mulheres comuns contribuíam para defender a honra das mulheres de posição, do mesmo modo que tinham como função, assumida sob juramento, denunciar os homens adúlteros, canalizar a energia dos jovens e estrangeiros, evitando que desembocassem em atitudes

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Jaques Rossiaud (1991) faz um estudo mais detalhado sobre como a Igreja Católica e a Administração Pública dos reinos medievais mantiveram íntimas relações com a crescente mercantilização do sexo. Centrando sua análise sobre a sociedade francesa do século XV, ele desvenda como essas duas instituições foram, a um só tempo, usuárias, defensoras e beneficiárias diretas desse negócio. Tais revelações servem para mostrar o quão recente é esse clima de pânico moral que se instaurou no Ocidente diante do mercado de sexo.

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Arriscamo-nos a dizer que ainda hoje são essas algumas das razões que fazem o sexo mercantil ser tolerado e, em outros locais, incentivado.

agressivas ou crimes de maior gravidade, além de tornar público comportamentos indecorosos de mulheres casadas e esposas depravadas (ROSSIAUD, 1991).

Percebe-se que entre os séculos XIII e XV, a prostituição32 e a alcovitagem não provocavam uma desaprovação social, ao contrário disto, elas eram instituições que serviam para manter a estabilidade financeira e social das unidades administrativas medievais.

A Igreja, nesse mesmo período, distinguia duas categorias de fornicação: a fornicação simples, consumada com mulheres “públicas”, o que não representava uma consequência grave em matéria espiritual, e a fornicação qualificada - que envolvia casos de incesto, sodomia, adultério, bestialidade, rapto etc. -, a qual deveria receber severa reprovação e punição. Para as mulheres, em oposição, não havia essa distinção, sendo que qualquer conúbio realizado fora da instituição matrimonial era digna de todo tipo de reprovação, fosse ela religiosa ou social (ROSSIAUD, 1991), o que mostrava desde já a conformação de um duplo padrão moral (GIDDENS, 1993).

Às mulheres cabiam apenas duas imagens maniqueístas: a de pura e a de puta. A primeira remetia ao simbolismo da Virgem Maria - casta, mãe dedicada e companheira fiel, que não é acometida pelos mesmos mandos da natureza que tanto alvejam os homens e justificam sua sexualidade disparatada. A outra representação estava atrelada à Maria Madalena e, assim como esta, era passível de arrependimento e remissão dos pecados, testemunhos de fé e salvação. Essa divisão se perpetuará ao longo dos séculos, contudo a salvação apresentar-se-á cada vez mais distante para as mulheres “públicas”, à medida que o discurso católico sofre um forte recrudescimento em resposta à Reforma Protestante.

O comércio sexual, que era uma dimensão fundamental da sociedade medieval, passa então a figurar como decadência escandalosa dos valores morais a partir da emergência do

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Colocamos aqui o vocábulo em destaque, pois o conceito de prostituição só irá surgir no século XIX, segundo a socióloga Laura M.ª Agustín (2005). Contudo, em certos momentos não foi possível encontrar um termo que o substituísse sem perder a lógica do raciocínio. Portanto, sempre que tal termo surgir nessas circunstâncias e na tentativa de atenuar essa berrante anacronia, o colocaremos em itálico, como estando “sob rasura” (HALL, 2007).

absolutismo monárquico, da Reforma Protestante de Martinho Lutero, no século XVI, e do apogeu do Renascimento. Essa atividade começa, daí em diante, a ser encarada como uma das responsáveis pela degradação da condição feminina, que lentamente vinha tomando parte do espaço cívico. A Reforma revalorizou o casal monogâmico e forçou a Igreja Católica a rever algumas de suas atitudes e prescrições, o que culminou no movimento de Contra-Reforma, fazendo com que os reformistas do catolicismo apostólico romano regrassem transcendentalmente a sexualidade dos seus fiéis, mais uma vez, com maior ênfase sobre as mulheres33. Além disso, a Contra-Reforma passou a denunciar e punir os casos de padres que viviam em concubinato e a condenar a prostituição e o proxenetismo.

A irrupção da sífilis, o aumento da delinquência e a disseminação da miséria por esses centros urbanos deram o contorno final a esse contexto e serviram de pretexto para as autoridades públicas, em consonância com esse novo ideário cristão, passarem a considerar o comércio sexual um flagelo social, fonte de problemas e punições divinas. Só neste momento, a noção de sexo transacional imbrica-se às de pobreza e marginalidade. Agora, a mulher “comum” é rotulada como um ser impuro, poluidor, para usar os termos de Mary Douglas (2006), que ameaça contaminar todo o tecido social, e é amplamente, com raras exceções no mundo ocidental, empurrada sem cessar para os espaços de exclusão.

Nesta trajetória o catolicismo recorreu então a uma verticalização do seu discurso34, num movimento que visando a eliminação das contradições internas, lançou mão de uma radicalidade, buscando a coerência do dogma, na qual a sexualidade foi, a partir de então, para

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Esse destaque dado à importância do cerceamento da sexualidade feminina deve-se ao fato do senso comum, influenciado pelo discurso religioso, crê que elas eram luxuriosas e insaciáveis por natureza, ao mesmo tempo, que eram as responsáveis pela reprodução e incorporação dos ensinamentos marianos. O moralismo imputado sobre a sexualidade das mulheres era tal que São Tomás de Aquino afirmava serem elas culpadas pelos pecados da carne, mesmo quando eram vítimas de estupro, e as aconselhava a se casarem com seus “sedutores”, caso contrário, o matrimônio tornar-se-ia para elas uma impossibilidade e elas estariam relegadas à lascívia (ROSSIAUD, 1991).

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Essa decisão foi tomada durante o Concílio de Trento, no século XVI, quando, em reação ao movimento reformista do Protestantismo, foi implantada uma série de decretos disciplinadores, onde ratificou-se a unidade da fé e a disciplina eclesiástica, bem como instaurou a confissão como um dos sacramentos católicos.

a Igreja, alvo de inúmeros interditos, devendo ser convertido num elemento de padronização de práticas sexuais das populações e isento do prazer erótico como elemento constitutivo dessas mesmas práticas, o que se deu através da construção de uma filosofia dogmática, baseada numa estrutura confessional, que revela estes mecanismos como um dos veículos encontrados, para secularização de desejos e ações que não se enquandravam neste caráter funcional da sexualidade, constituída pelo, mais do que nunca valorizado, casal hetoressexual, monogâmico e fecundo (FOUCAULT, 2007).

Havia ainda um último fator que contribuiu para a consolidação dessa nova conjuntura: a emergência da burguesia. Este novo estrato social, formado inicialmente por artesãos e comerciantes, e que posteriormente abrigaria também industriários, intelectuais, liberais e as grandes corporações da economia de mercado, foi aos poucos ampliando seu poder e sua área de influência, derrubando leis e privilégios do sistema feudal absolutista, e os ideais da nobreza aristocrática.

Longe de se limitar à dimensão econômica, a burguesia disseminou sua ideologia e invadiu os campos político e social. Um bom exemplo das transformações nos processos de sociabilidade trazidos, à tira-colo, pela ascensão da burguesia, apresentado por Pedro Paulo de Oliveira (2004), é o deslocamento da expressão dos sentimentos do público para o âmbito do privado. A esfera doméstica passa a ser a arena legítima, o lócus par excellence para o florescer das sentimentalidades. O espaço público torna-se, em oposição, o local privilegiado para atitudes que demonstrem contenção, firmeza e auto-controle.

Dessa forma, a casa, usando a metáfora de Roberto DaMatta (2007), é a dimensão em que pode-se e deve-se externalizar as manifestações de amor e os eflúvios do desejo carnal. O amor romântico é o ideal das relações afetivas entre homens e mulheres das sociedades modernas, burguesas, estando embasado na família nuclear monogâmica, instituição que apresenta-se como um dos seus pilares centrais.

Sem a nobreza do sangue aristocrático, que prescindia de outros elementos para ser mantida, a burguesia precisava construir a sua distinção social, assim, instaurou uma nova moralidade, orientada pelos interesses dos ideários capitalista e reformista, que restringia os desejos e as práticas sexuais a uma única expressão: a heterossexual, instalada no seio do matrimônio e com fins reprodutivos.

A sexualidade, além de possuir limitações aconselhadas – que eram recriminadas e punidas, se não cumpridas - pelo discurso religioso quanto às suas práticas, está agora cerrada dentro dos muros do lar, mais precisamente nas confidentes paredes do quarto dos pais. (FOUCAULT, 2007).

É exatamente durante esse período (meados do século XVII) que os ideais de masculinidade e feminilidade são posicionados em pólos diametralmente opostos, não admitindo a transgressão de suas barreiras pelos sujeitos e repudiando qualquer espécie de confluência entre suas representações, assim, foram definidos e cristalizados os papéis e comportamentos que consubstanciariam essas performances de gênero. Portanto, para as sociedades modernas, o sinônimo de um grupo social sadio seria o daquele assentado sobre essa hiperbólica assimetria de gênero, ou seja, seria o da sociedade constituída por homens (hiper) masculinos e mulheres (hiper) femininas (OLIVEIRA, 2004).

Pode-se dizer, no entanto, que até os primeiros passos da era moderna, a Europa se via num período liminar, no qual os antigos valores já não condiziam com a ânsia burguesa por ditar seu próprio destino, e ainda não se haviam disseminado totalmente outros, que embasassem e fossem coerentes com o projeto de uma nova estandardização do comportamento social. Como afirma Michel Foucault (2007),

[...] no início do século XVII ainda vigorava uma certa franqueza. As práticas não procuravam o segredo; e as palavras eram ditas sem reticência excessiva e, as coisas, sem demasiado disfarce; tinha-se com o ilícito uma tolerante familiaridade. Eram frouxos os códigos da grosseria, da obscenidade, da decência, se comparados com os do século XIX. Gestos

diretos, discursos sem vergonha, transgressões visíveis, anatomias mostradas e facilmente misturadas, crianças astutas vagando, sem incômodo nem escândalo, entre os risos dos adultos: os corpos ‘pavoneavam’ (FOUCAULT, 2007: 9).

Como podemos ver, ao longo de todo o período pré-moderno, a sexualidade possuía um maior espaço para sua desenvoltura, afinal os indivíduos ainda não problematizavam seus desejos sob a ótica de uma moral economicista, vivenciava-se uma ars erotica mais que uma sciencia sexuallis, como diria Foucault (2007); o sexo era um fim em si mesmo, seu objetivo era a satisfação de uma pulsão erótica, e se não bradava-se aos quatro cantos os ensinamentos que dele se podia tirar, era exatamente por entendê-lo como uma ferramenta pedagógica, a qual, para não ser banalizada, exigia uma análise prévia da aptidão do pretendente e uma iniciação orientada de perto35.