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NÃO MUDO DE OPINIÃO: O Carcará Pega, Mata e Come Porque o

3 A EMERGÊNCIA DO ESPAÇO CULTURAL DA TROPICÁLIA

3.3 NÃO MUDO DE OPINIÃO: O Carcará Pega, Mata e Come Porque o

A expansão capitalista mundial após a Segunda Grande Guerra em busca de novos mercados atingiu o Brasil com a política de abertura ao capital estrangeiro notadamente no Governo Dutra (1946-1951), e o país, que iniciara a década de 1950 economicamente superavitário, em poucos anos encontrava-se em situação inversa. No governo Vargas (1951-

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BRITTO, Jomard Muniz de. Do Modernismo à Bossa Nova. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira. 1966, p. 127.

100Bossa Nova como expressão In: TÁVOLA, Arthur da.40 Anos da Bossa Nova. Rio de Janeiro: Sextante,

1998, p.93.

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Trocadilho feito com uma estrofe da canção Tropicália, de Caetano Veloso e o acirramento politico das esquerdas, que em busca de reformas sociais, entrou em confronto com os setores nacionais conservadores, responsáveis pelo golpe militar de 1964 no Brasil.

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ROSA, Guimarães. Grande Sertão: Veredas. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 20. Ed., 2005.

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O título se refere ao show Opinião concebido por Paulo Pontes, Armando Costa e Oduvaldo Vianna Filho,

Dirigido por Augusto Boal e teve sua estreia em 11de dezembro de 1964, sendo considerado o 1º espetáculo concebido em resposta ao golpe militar de 31 de março de 1964, encenado no Teatro de Arena no Rio de Janeiro. Carcára, uma das músicas do espetáculo, de autoria de João do Vale tornou-se um hino da Canção de Protesto na voz da cantora Maria Bethânia; Canções sobre os morros e favelas cariocas foram usuais na ambiência da Canção de Protesto; o Morro não tem vez uma das mais expressivas é de autoria de Tom Jobim e Vinícius de Moraes.

1954) houve por partes de setores nacionalistas do governo uma tentativa de controlar em certa medida a influência do capital multinacional, que tinham o apoio das esquerdas, já ilegais no período, mas militantes entre o operariado, e os setores mais esclarecidos da classe média; que foram contestadas pelos grupos mais conservadores da sociedade brasileira, atrelados aos interesses estrangeiros. As contradições de um desenvolvimento industrial concentrado na região sudeste, acossado entre um modelo de desenvolvimento autônomo e nacional e um desenvolvimento dependente de modelos externos, agudizam as tensões sociais que terminam por interagir com a cultura e na virada da década de 1950 e inicio dos anos 1960, época do governo JK, percebe-se paulatinamente uma politização da ambiência cultural.

As contradições sociais, econômicas e políticas do país, todavia, permitiam o surgimento de uma prática cultural de orientação marxista que em certa medida desprezava as pesquisas musicais e estéticas da Bossa Nova, embora se beneficiasse destas notadamente pela redescoberta feita por aquele movimento, das formas tradicionais da canção no Brasil, como o frevo, a marcha e o próprio samba. A prática em questão foi a “política cultural” ligada aos Centros Populares de Cultura, ligados a experiências de educação e arte com camponeses em Pernambuco no período do governo Miguel Arraes, assim como a atuação da

União Nacional dos Estudantes (UNE), através da implantação dos Centros Populares de Cultura (CPC); que no início da década de 1960 formulavam o paradigma da socialização do

país,animados com o êxito imediato das experiências cubanas, pregando que a arte verdadeira seria aquela que fosse inteligível para o povo, que partisse de suas expressões verdadeiras e formalmente ligadas à cultura brasileira.

A questão a ser pensada é a que “povo” esses movimentos estavam a se referir, o que estes consideravam “verdadeiro” e ao mesmo tempo o que era culturalmente chancelado como nacional e brasileiro em sua perspectiva.

Esses setores formularam obras de grande valor, seja uma campanha educacional de alfabetização de agricultores pelo método Paulo Freire no sertão do Rio Grande do Norte no município de Angicos, ou a produção de filmes como Cinco Vezes Favela que seria um dos marcos da produção cinematográfica da época; todavia a visão que era subjacente aos mesmos era formalmente pobre, engajada politicamente, mas infelizmente não de forma dialética como pretendiam, mas num mecanicismo simplificador da realidade, que tipificava a sociedade na velha dicotomia, explorador e explorado e não se dava conta das nuances, rasuras, linhas de forças e por que não pensar em agenciamentos que os próprios grupos sociais urbanos e rurais desenvolviam em suas práticas cotidianas?.

A produção cultural da ortodoxia marxista encontrava terreno fértil entre a juventude universitária brasileira no começo da década de 1960, e a perspectiva era que em curto prazo, o Brasil seria uma nova nação e, politicamente, por que não conjeturar, de caráter socialista. Na ambiência universitária, a arte e a cultura seguiram de perto a ideologia cepecista, mas sua produção musical não somente foi influenciada pela visão do marxismo, mas também pelas formas mais excessivas do jazz, que destoava com o intimismo e a contenção bossanovistas. É interessante perceber que essa canção que começava a ser formatada e que receberia o epíteto de Canção de Protesto também se caracterizaria pela afirmação nacionalista da pujança cultural e geográfica do Brasil. A redenção de nossa condição periférica seria possível, segundo seus formuladores, a partir de nossa riqueza cultural e que seria uma estratégia para reverter o quadro de submissão cultural e alienação política do país. A respeito dessa relação entre produção cultural e uma determinada espacialidade, a Canção de Protesto reificaria as formas folclóricas ditas regionais, reprocessando-as para o público universitário de classe média e de mesma forma os tipos humanos como o “retirante”, o “favelado”, “o suburbano”, buscando uma improvável pureza cultural calcada numa suposta autêntica nacionalidade.

A Canção de Protesto veicula culturalmente a ideia de um espaço humano rigidamente delimitado, e que pode parecer imobilizado em si mesmo, um espaço fechado que não se comunica com outras espacialidades e que possui uma paisagem no mais das vezes intocada, uma noção de espaço curiosamente a-histórica. Um bom exemplo disso pode ser percebido na canção Carcará que afirma que o tal animal é um bicho lá do sertão, que se insere na paisagem árida do Nordeste, ou a música O morro não tem vez que tipifica de maneira contemplativa os morros e favelas cariocas.

Esta mesma expressão musical terminaria por ensejar o surgimento de um construto cultural denominado “MPB” que nos seus primórdios seria o espaço cultural da classe média de extração universitária, que politicamente se fundamentava na vertente populista e economicamente no seu correlato desenvolvimentismo, procurando ser em nível de canção popular uma síntese, nem sempre bem resolvido entre o legado da Bossa Nova e as expressões musicais nordestinas e cariocas.

A Canção de Protesto delimitando esse espaço cultural denominado MPB investiu naquele as forças, esperanças e utopias nacionais populistas ou o que tenha sobrado desse ideário, de uma forma muito intensa, notadamente a partir da emergência da Ditadura Militar, procurando não mais ser o espaço da “transformação” do social, mas o da “resistência” às forças que emergiam no cenário nacional. Da mesma forma, essa tipologia da canção no Brasil veiculava paradoxalmente, e principalmente após a ruptura do estado de direito com o

golpe militar de 1964, a consoladora104 visão de um futuro melhor, que viria surgir no horizonte histórico da nação e que a tudo iria transformar. Curiosamente, a imobilidade do espaço histórico da canção se coadunava com a imobilidade crítica da realidade histórica do país.

Este espaço, agora denominado de MPB não era poroso às mudanças que surgiam, como a maciça entrada do fenômeno televisivo, ou a avassaladora penetração da música pop internacional, que gestava no âmbito local a sua versão doméstica que se intitulava de Jovem

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, um movimento que era fruto direto da nascente indústria cultural de massas e que atingia larga audiência entre as classes suburbanas, que paradoxalmente tinha o nome de uma expressão de cunho marxista-leninista.

O espaço cultural da MPB reduto da intelectualidade de extração universitária procurava demarcar com o fechamento das instâncias sociais e políticas convencionais, em si mesmo um ambiente de resistência e combate aos ditames conservadores que reapareceram com o advento da Ditadura Militar e seus projetos socioeconômicos em consonância aos interesses imediatos do capitalismo transnacional. Este embate no espaço cultural da MPB gerava espetáculos que emulavam em nível dos espectadores o ideário nacional populista pela ótica marxista, dentro de um esquematismo político rígido e estratificado, na maioria das vezes unilateral, repassando mensagens, palavras de ordem, reificando estereótipos espaciais geográficos e seus correlatos discursos culturais, mas em momento algum fazendo uma análise da complexidade da nação, de seus tipos humanos, de seus diversos, múltiplos espaços. A Canção de Protesto neste contexto se afirmava de maneira mais que veemente em espetáculos que misturavam música e teatro, e oficialmente o primeiro que foi realizado neste estilo, em princípios de 1965, foi o célebre Opinião de Oduvaldo Viana Filho, Ferreira Gullar, Paulo Pontes e Armando Costa, que em canções que se tornaram célebres no cancioneiro brasileiro contemporâneo reavivava e retransformava o ideário nacionalista e populista em um apanágio para a classe média, que impossibilitada de uma ação mais concreta contra o regime de exceção imposto pelas forças reacionárias, se confortava com a exortação de um messianismo consolador de caráter utópico e fadado ao imobilismo, que acriticamente não pensava o Brasil, seus espaços em contradição, seus caminhos e descaminhos e nem percebia

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Caetano Veloso de forma bem humorada, iria ironizar tal ideia na canção “Alegria, Alegria”, nos versos “eu tomo uma coca cola/ela pensa em casamento/E uma canção me consola/Eu vou...” ·.

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A frase em questão era “O futuro pertence à Jovem Guarda, porque a velha está ultrapassada”, de autoria de Vladimir Ilitch Lênin, líder maior da Revolução Russa de 1917, que sendo descontextualizada pelo publicitário Carlito Maia, tornou-se nome e referência no Brasil, de um movimento cultural de massas e um programa televisivo da TV Record de São Paulo entre 1965 e 1968.

a emergência de novas configurações espaciais e culturas que daí se produziam, como uma cultura urbana cada vez mais forte e articulada.

O paroxismo da “Canção de Protesto” era tamanho que levava a questão da forma artística a ser negligenciada em detrimento da mensagem que deveria ser divulgada para o grande público, e o importante era “marcar” uma opinião sobre a situação do país, mesmo que a crítica não fosse muito longe das salas de espetáculo, dos bares onde a classe média tramava revoluções siderais ou o apaziguamento das consciências medianas, e, no entanto afirmava que “mais que nunca era preciso cantar” 106.

3.4 QUEREM ACABAR COMIGO E A CANDINHA VAI FALAR: Que Tudo O Mais Vá