• Nenhum resultado encontrado

3 A EMERGÊNCIA DO ESPAÇO CULTURAL DA TROPICÁLIA

3.4 QUEREM ACABAR COMIGO E A CANDINHA VAI FALAR: Que

A década de 1960 viu emergir no Brasil a televisão como novo meio midiático de comunicação e de entretenimento. Em princípio, a TV era não um apêndice do rádio, mas repetia em termos visuais o que o rádio propagava em termos de ondas sonoras, ou seja, novelas, programas de auditório, programas humorísticos; e gradativamente foi desenvolvendo uma linguagem própria. Da mesma forma no começo da era televisiva brasileira não existiam redes nacionais, mas somente emissoras nos grandes centros urbanos do país, como Rio de Janeiro e São Paulo, cujos programas eram retransmitidos em videoteipe dias mais tarde em outras cidades menores. Nesse contexto iria nascer aquele que seria o primeiro movimento musical, comportamental da cultura brasileira e que teria rizomáticas influências108 na formulação da Tropicália, e este seria a Jovem Guarda.

Desde meados dos anos cinquenta o rock insinuava-se no Brasil, e foi gravado em algumas versões por cantores do cancioneiro tradicional com Nora Ney e Cauby Peixoto, mas somente nos princípios da década seguinte o rock no país foi se tornando um tipo de música e de comportamento que atraia principalmente os jovens de áreas suburbanas das metrópoles

106

Verso da Canção “Marcha da Quarta Feira de Cinzas” de Vinícius de Moraes.

107

“Querem acabar comigo”, “mexericos da Candinha”, e “Que tudo mais, vá para o inferno” foram grandes

sucessos de Roberto Carlos, líder e maior intérprete da Jovem Guarda; A primeira foi uma resposta aos ataques vindos dos setores universitários ligados à Canção de Protesto, que acusavam sua música de alienada, entreguista, comercial e cópia do rock norte americano. A segunda remete-nos a uma coluna de fofocas escritas na revista “intervalo” que sempre tinha notícias a respeito de Roberto Carlos, e a terceira foi o maior sucesso da Jovem Guarda e a canção icônica do movimento.

108

A conexão que se estabelece entre a Jovem Guarda e a Tropicália tem início com o alerta dado a Caetano Veloso por sua irmã, Maria Bethânia pra que prestasse atenção ao programa, devido a sua vitalidade musical e temática; Outra conexão se estabeleceria pelo desejo da Tropicália trabalhar temas da cultura de massas, da qual a Jovem Guarda era pioneira no Brasil, além do interesse dos tropicalistas no rock’n’roll inglês que fora abrasileirado aqui por aquela.

brasileiras e destes subúrbios saíram dois grandes ícones da Jovem Guarda, os cantores e compositores Roberto e Erasmo Carlos. Eles que em princípio enveredaram pela Bossa Nova, mas que foram rejeitados por puro preconceito da turma da zona sul carioca109, já que não se enquadravam no perfil universitário intelectualizado. Ruy Castro narra em seu livro Chega de

Saudade, a história e as histórias da Bossa Nova que:

Roberto Carlos, dezoito anos, bateu à porta da boate Plaza naquele mesmo ano de 1958 e descobriu um cantor que dava canjas com frequência: João Gilberto. Roberto levou um choque. Aquela voz e aquele violão, no canto mais escuro do fundo da boate, acompanhado por uma simples bateria, o deixaram febril e evaporaram Elvis de sua cabeça por um bom tempo. Quando aprendeu a fazer uma passável imitação de João Gilberto, compôs 'Brotinho sem Juízo' e candidatou-se a participar das canjas. Mas, justamente por parecer uma cópia meio aguada do original, não o deixavam sequer chegar perto do microfone. Nas canjas das quintas-feiras, no clube Leblon, a mesma coisa. Bem que tentava se enturmar, mas ninguém queria saber dele ou de 'Brotinho sem Juízo'. Em certo momento, Roberto Carlos ficou mesmo insistente, e o mínimo de que o chamavam era de chato. Numa dessas, na casa do empresário Lauro Boamorte, no Flamengo, Menescal levou-o a um canto: Olha, bicho, não dá pra você, você quer cantar igualzinho ao João Gilberto - e nós já temos o João Gilberto.

Sem espaço, portanto no âmbito da Bossa Nova, os participantes da Jovem Guarda, notadamente Roberto e Erasmo Carlos, deixaram de lado e por hora suas veleidades intelectuais110 e começaram versionando sucessos do rock internacional argentino, americano e italiano; o tipo mais comercial de música, considerada como lixo pela maioria dos críticos, mas rapidamente adquirindo a competência linguística, criando um rock com cor local e que foi de imediato aproveitado pela TV.

Esse aproveitamento se deu de maneira fortuita, pois o futebol que era transmitido nas tardes de domingo pela TV, foi proibido de ser veiculado pelas federações esportivas do Rio de Janeiro e São Paulo, e a TV Record precisava de um programa para preencher esse inesperado furo em sua grade televisiva111. Como o rock era um produto que pela sua rápida acessibilidade temática e musical vinha num crescendo de popularidade, se configurou como a solução ideal para este problema que se apresentava.

A Jovem Guarda de forma rápida se tornou o primeiro fenômeno pop da cultura de massas no Brasil. Na esteira de sua explosão o movimento se configurou em uma usina sonora e poética da maior intensidade e de alta voltagem, com composições que tematizavam

109

CASTRO, Ruy. Chega de Saudade, a história e as histórias da Bossa Nova. São Paulo: Companhia das Letras, 1990, p.282.

110

Segundo nos conta o historiador e musicólogo Paulo César de Araújo, a turma da Bossa Nova, considerava Roberto Carlos, como um “João Gilberto dos pobres”. Ver em: ARAÚJO, Paulo César. Roberto Carlos em

detalhes. São Paulo: Planeta, 2006, p. 76-77.

111

o espaço urbano adolescente, carros, ruas onde se trafega pela contra mão em busca de lindas garotas, praias, onde se encontra a turma pra a festa de arromba, colunas de mexericos e fofocas de artistas da TV, cinemas onde paixões são rompidas, paradas de ônibus onde sob a marquise e a chuva fina se estabelece a paixão repentina. Todavia, a importância da Jovem

Guarda é que ela criou um espaço cultural e comportamental jovem, algo até então

inexistente no Brasil. O historiador Paulo César de Araújo relata:

Na época não era comum o uso de gírias na televisão. O recomendado era apresentar os programas usando uma linguagem mais formal, bem comportada. Roberto Carlos decidiu subverter essa regra no Jovem Guarda. “Queríamos apresentar o programa da maneira mais natural possível, do jeito que falávamos na rua”, justifica o cantor. [...] Com exceção de “é uma brasa, mora”, nenhuma dessas gírias foi criada por Roberto Carlos ou por alguma agencia de publicidade. O cantor simplesmente adotava e divulgava o que ia ouvindo no seu cotidiano.112

E continuando nessa linha de pensamento, observa o historiador que além de divulgar novas formas de expressão e comunicação, com frases de efeito e muitas gírias, o programa/movimento também servia para denunciar o ambiente repressor que os jovens da época vivenciavam no seu cotidiano.

Um bom exemplo que sintetiza toda essa nova configuração espacial, de modas, gírias, quebra de barreiras e tabus pela juventude, espelhada na Jovem Guarda foi o lançamento da canção Quero que vá tudo para o inferno, e a repercussão foi tanta que assustou os moralistas de plantão de cunho mais reacionário, assim como a esquerda mais empedernida. Nas palavras de Caetano Veloso: “Quero que vá tudo para o inferno foi o fenômeno de massa mais intenso que eu vi na minha geração.”113

O curto circuito provocado pela Jovem Guarda nos ditos setores bem pensantes da cultura brasileira terminou forçando a redefinição do espaço que esta simbolicamente ocupava e representava. A Jovem Guarda era acusada de servir aos propósitos do imperialismo e da dominação americana, que era uma impostura formulada por empresários e executivos de gravadoras internacionais e em tempos de arbítrio e exceção ditatorial, um elemento de alienação que era usado apenas para manipular a população, e ao mesmo tempo impedir aquela de entender a realidade política e social do país. Sem sombra de dúvida era uma carga de violência ideológica e de sectarismo político que assolava o país e atingia a Jovem Guarda. A divisão das hostes era tamanha que houve “confronto” nos programas televisivos, onde a

112

Araújo, Paulo César. Roberto Carlos em detalhes. São Paulo: Planeta, 2006, página 137. 113

ala dita “autêntica” da música brasileira conclamava a luta aberta contra a Jovem Guarda, ou seja, delimitar um espaço que fosse da verdadeira cultura brasileira e não permitir nenhuma ação que representasse algum tipo de abertura ou espaço para a cultura estrangeira anglo- americana.

O desespero dos nacionalistas, puristas, conservadores e outros ciosos da “pureza” da cultura nacional, chegava a tal paroxismo, que alguns intelectuais tradicionalistas pregavam que só deveria ser feita música no país com formas folclóricas autênticas como o samba, o frevo, a embolada, e que também se renegasse qualquer tipo de instrumental elétrico, pois a

Jovem Guarda teve a ousadia de abrir espaço pra uma temática tida por muitos como informe

e alienígena e de maneira sacrílega introduzir o que para muitos era o símbolo do imperialismo, a guitarra elétrica. O curioso é observar que a guitarra elétrica já havia sido nacionalizada, pois era utilizada desde a década de 1950, no carnaval de Salvador, no Trio elétrico baiano por Dodô e Osmar com a denominação de “Pau Elétrico”.

Esta atitude só revela uma posição defensiva, territorialista, esquecendo que ao longo dos séculos a cultura nacional foi construída sob a inflexão de diversas influências, locais ou externas, num constante devir, formando cadeias rizomáticas de inúmeros elementos culturais. A postura defensiva contra a Jovem Guarda chegou a provocar situações, que na atualidade, seriam minimamente preconceituosas e já na época foram encaradas como fascistas. A passeata contra a guitarra elétrica e em defesa da pureza da música nacional, desencadeada por alguns artistas como Edu Lobo, Elis Regina e Geraldo Vandré saiu às ruas mirando atingir a Jovem Guarda, não sabendo os artistas envolvidos que por trás desta articulação, estava à cúpula da TV Record que apenas procurava alavancar o ibope dos seus programas televisivos como O Fino da Bossa, reduto dos autênticos da MPB e o próprio

Jovem Guarda. Algumas testemunhas oculares como Nara Leão e Caetano Veloso

repudiaram tamanha ação sectária, e segundo o historiador Paulo César de Araújo:

Caetano Veloso que acompanhou a passeata de uma janela do Hotel Danúbio, que ficava na mesma avenida. Ao seu lado, a cantora Nara Leão também acompanhava boquiaberta a passeata dos colegas. Nara, eu acho isso esquisito, comentou Caetano. Esquisito? Isso é um horror. Está parecendo uma passeata do Partido Integralista. Para Caetano, esse comentário de Nara lhe deu mais gás para se opor àquela atitude dos colegas. Eu não fui à passeata, não iria mesmo, mas não tinha uma formalização crítica tão nítida do que era aquilo. Hoje, é muito óbvio, mas na hora não tanto assim e Nara me ajudou a compreender o absurdo daquela posição.114

114

Nesse sentido, a Jovem Guarda foi fundamental para a emergência do lócus tropicalista na proporção em que contribuiu para relativizar a validade das dicotomias como aquelas entre alta e baixa cultura, folclore e indústria de massa; A Jovem Guarda demonstrou que os produtos massificados ou qualificados como da baixa qualidade intelectual tem potenciais elementos de beleza, modernidade e poder de comunicação, e que a discussão a respeito do objeto artístico uno era algo defasado.

Uno e múltiplo eram categorias que não davam conta da realidade cultural nacional naquele instante, na medida em que apenas reificava mais uma dicotomia115. A resposta seria pensar a cultura em multiplicidades, que na perspectiva deleuziana possibilita ir além dos maniqueísmos e a romper os lugares de enunciação, produção ou consumo de elementos culturais, levando-os a ligações rizomáticas de variadas formas e níveis, e consequentemente permitindo-os o estabelecimento de espaços provisórios em constante deslocamento territorial, o total embaralhamento de “fronteiras”, a formação de platôs, numa perspectiva anti genealógica.

A concepção de anti genealogia é uma ideia associada ao Rizoma. Como este último é derivativo e associativo e não tem um começo ou um fim, podemos pensar a cultura contemporânea brasileira através desta perspectiva, que não há um nascimento deste ou daquele elemento cultural, mas sua erupção pelo adensamento de várias emanações, provenientes do social, do econômico, do externo, do âmbito da própria cultura, etc. assim e desta forma, podemos segmentar estas emanações e vê-las em separado e de mesma forma em sua imbricação, gerando um todo que vai se relacionar com outros elementos, formando um contínuo cultural. A Bossa Nova, a Jovem Guarda e a Tropicália são resultados destas práticas e não só estabeleceram conexões entre si, como tenta evidenciar nossa argumentação, como legaram continuidades na senda musical brasileira, anos depois de seus momentos de maior intensidade.

115

Os conceitos de uno e múltiplo pertencem ao âmbito do racionalismo filosófico que pensa a realidade por dicotomias, oposições. Portanto aquilo que é considerado singular estaria em oposição a aquilo que é por natureza, diverso; desta forma busca-se criar uma teoria geral para compreender o que se concebe como real. Gilles Deleuze rejeita tal concepção, pois ela não daria conta dos diálogos e intercambiamentos das ideias, seres e objetos no mundo. Passando ao largo dessa dicotomia, prefere investir no conceito de multiplicidades; Uma multiplicidade é composta de dimensões que se englobam umas às outras, cada uma recapturando todas as outras em um outro grau, segundo uma lista aberta que pode ser acrescida de novas dimensões. “A multiplicidade não deve designar uma combinação de múltiplo e de um, mas, ao contrário, uma organização própria do múltiplo enquanto tal, que não tem necessidade alguma da unidade para formar um sistema.” DELEUZE, Gilles. Diferença e repetição. São Paulo: Graal, 1998, página 236.

A insurgência de multiplicidades que de maneira exaustiva seriam usadas de forma hiperbólica na Tropicália, se confirmaria na época de sua maior virulência na obra inaugural do fenômeno, a instalação “PN2”, parte do penetrável Tropicália de Hélio Oiticica que grafava em grandes letras o dístico “A pureza é um mito”, reafirmando a anti genealogia da cultura brasileira e seu caráter híbrido de rizoma.

A Jovem Guarda, assim como a Bossa Nova estabeleceram radículas rizomáticas que se cruzaram e curiosamente em campos não totalmente opostos assim; os dois movimentos, apesar de serem acusados de miméticos em relação ao jazz e à pop music respectivamente, pelo tradicionalismo de alguns intelectuais marxistas ortodoxos, se irmanavam pela concisão lingüística, pela reflexão sobre as espacialidades urbanas nacionais em processo de construção e expansão, ou seja, em rizomas que determinavam em termos culturais novos platôs, pela hibridação de influências diversas, musicais e extras musicais e de mesma forma pela expressividade de uma sensibilidade social moderna.

Os caminhos que iriam configurar a Tropicália se esboçavam cada vez mais, o espaço tropicalista ia se delineando cada vez de forma mais intensa, a cultura brasileira na segunda metade da década de 1960 em constante processo de territorialização e desterritorialização116, confabulando com o político e o social, iria ser modificada por esse platô tropicalista e se estabeleceria em futuro próximo em uma nova dinâmica, todavia outras cadeias rizomáticas ainda necessitariam ser estabelecidas para tal processo ser efetuado em sua completude.