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O CINEMA NOVO: A Terra entrou em transe no Sertão de Ipanema

3 A EMERGÊNCIA DO ESPAÇO CULTURAL DA TROPICÁLIA

3.5 O CINEMA NOVO: A Terra entrou em transe no Sertão de Ipanema

O outro lado convergente da Canção de Protesto foi em certa medida, nos seus primórdios o Cinema Novo, entretanto este avatar da cultura brasileira foi posteriormente o primeiro a reavaliar o projeto nacionalista e populista e seu posterior fracasso ao longo da

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Gilles Deleuze e Félix Guattari afirmam que “território” é uma dimensão subjetiva do agenciamento. O conceito de território decerto implica o espaço, mas não consiste na delimitação objetiva de um lugar geográfico. O valor do território é existencial: ele circunscreve, para cada um, o campo do familiar e do vinculante, marca as distâncias em relação a outrem e protege do caos. Desterritorialização seria deixar esses vínculos e de maneira nômade estabelecer outros, implicando assim no surgimento de um processo de territorializaçao alhures. Territorializar seria tornar expressivo o ato de uma cadência, de um ritmo ou qualificar os componentes de um meio. DELEUZE, Gilles: GUATTARI, Felix. Mil Platôs: Capitalismo e Esquizofrenia. São Paulo: Editora 34, 2007, p. 224-227.v.5.

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O título quer nos fazer lembrar os filmes de Glauber Rocha, Terra em Transe de fundamental importância para a eclosão da Tropicália e Deus e o Diabo na Terra do Sol, que em uma de suas canções emblemáticas da

trilha sonora criada por Sérgio Ricardo, entoava o mote O sertão vai virar mar Este último, por sua vez, nos remete à saga de Canudos e o texto Os Sertões de Euclides da Cunha.

década de sessenta em sua segunda metade, notadamente após a implantação do regime militar de exceção e a de sua tecnocracia socioeconômica.

Nos seus primórdios, o Cinema Novo se alinhava aos ditames marxistas dos CPC da

UNE e pretendia fazer uma leitura realista influenciada pelos valores estéticos provenientes

especialmente do movimento do Neo Realismo Italiano; o tom dos filmes era em sua grande maioria, entre 1960 e 1964, o que questionava a fome, a divisão social, e tinha como subtexto o espaço da revolução, da violência, da mobilização política e a orientação era dada em uma percepção otimista de esperança. Todavia, com raras exceções, muitos desses filmes padeciam de visões esquemáticas a respeito dos espaços sociais, culturais e políticos do Brasil e seu provável potencial crítico se esvanecia.

No início dos anos 60, o Cinema Novo expressou sua direta relação com o momento político em filmes onde falou a voz do intelectual militante, sobreposta à do profissional de cinema. Assumindo uma forte tônica de recusa do cinema industrial- terreno do colonizador, espaço da censura ideológica e estética-, o Cinema Novo foi à versão brasileira de uma política do autor que procurou destruir o mito da técnica e da burocracia da produção, em nome da vida, da atualidade e da criação. Aqui, atualidade era a realidade brasileira, vida era o engajamento ideológico, criação era buscar uma linguagem adequada às condições precárias e capaz de exprimir uma visão desalienadora, crítica, da experiência social. Tal busca se traduziu na “estética da fome”, na qual escassez de recursos técnicos se transformou em força expressiva

e o cineasta encontrou a linguagem em sintonia com os seus temas [...] filmes como

Vidas Secas (Nelson Pereira Dos Santos, 1963), Deus e o Diabo na Terra do Sol

(Glauber Rocha, 1964), e Os Fuzis (Ruy Guerra, 1964)-é o apogeu do Cinema Novo

em sua proposta original. Filmes em diferentes estilos demonstram a feliz solução encontrada pelo “cinema do autor” para afirmar sua participação na luta política e ideológica em curso na sociedade. Dentro do esquema populista apoiado pelas esquerdas, a luta pelas reformas de base define o confronto com os conservadores e, não por acaso, nessas obras-primas citadas, é o campo o cenário, é a fome o tema, é o Nordeste do polígono das secas o espaço simbólico que permite discutir a realidade social do país, o regime de propriedade da terra, a revolução.118

Uma provável exceção seria a obra de Glauber Rocha que pelo seu olhar pessoal extremamente alegórico, de vertente barroca, fugia dessa visão unilateral e foi ao lado de Paulo César Sarraceni quem começou a questionar o esquematismo das esquerdas, que era em boa parte fruto das considerações do Partido Comunista Brasileiro; demonstrando a necessidade de se estabelecer um novo espaço cultural, não somente na cinematografia, que englobasse uma visão mais pluralista da sociedade brasileira. Nesse instante, Glauber Rocha começava a ver o Brasil não somente como um espaço unitário, um espaço estratificado, mas uma nação contraditória, buscando seu lugar no mundo, repleta de platôs e sem genealogia,

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buscando de maneira rizomática entender a complexidade deste mesmo mundo em que se encontrava inserido.

A essa mudança de eixo não necessariamente temático, mas de abordagem, deve-se necessariamente a ruptura do estado democrático de direito pelo golpe militar de 1964. O trauma provocado pela ação da direita conservadora provocou múltiplas indagações; uma o porquê da falta de engajamento das massas, sua apatia na hora mais necessária, ou seja, a luta contra o reacionarismo político, outra, a ausência da burguesia nacional no reformismo em questão, preferindo uma modernização conservadora tutelada pelos militares e onde a questão social fosse obliterada, não impedindo os ganhos desta mesma burguesia.

Assim, o Cinema Novo passa a elaborar outras questões, e o espaço fílmico tende a refletir as questões da indústria cultural de massas, ou tematizam de maneira frontal o golpe militar. A produção cinematográfica nesse período após 1964, notadamente no biênio de 1967 e 1968, se empenhou em discutir a ilusão que permeou muitos intelectuais, a respeito de uma improvável proximidade e aliança com as classes populares, e da mesma forma fez uma crítica acerba ao populismo anterior ao golpe, seu aspecto político e seu instrumental estético e pedagógico que se mostrou ineficaz no processo de conscientização das massas. É desenvolvida por parte dessa cinematografia uma análise dos intelectuais em sua representação da experiência política da derrota do pensamento de esquerda, ganhando corpo a questão do espaço urbano, percebendo um deslocamento para esta área, não mais a negando ou esquecendo-a como anteriormente, onde a inflexão histórica era dada em função do campo e dos espaços rurais e ao mesmo tempo surgindo uma reflexão a respeito das identidades urbanas e da mídia.

A expressão mais contundente dessas novas temáticas e/ou preocupações do Cinema Novo, foi a película realizada pelo cineasta baiano Glauber Rocha, lançada no Rio de Janeiro em 08 de maio de 1967, intitulada “Terra em Transe” e que de forma seminal difundiu inúmeras influências sobre o que viria a se constituir a Tropicália119.

Terra em Transe é antes de qualquer anamnese, a sintomatologia de um grande mal-

estar, da perda das ilusões políticas, a ausência de um chão onde se pisar, a abertura de uma grande chaga, a dor mais profunda da nação Brasil.

O filme elabora uma visão grotesca e carnavalesca do espaço nacional, mas projeta nossas fantasmagorias também à América Latina, na medida em que no período de sua realização e posterior exibição, o continente assim como o nosso país estavam imersos em

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regimes ditatoriais e policialescos. O Brasil é representado em um espaço alegórico, barroco, produto de choques, atrações, justaposições, espaço sem origem precisa; muito embora as primeiras imagens do filme remetam ao descobrimento do país pelos portugueses, uma improvável cena de origem e ao mesmo tempo o momento da nossa queda, a simbologia de um paraíso perdido. É em sua essência uma fratura hodierna do espaço nação, um platô instável onde as certezas se esboroam na areia da praia onde a cena se processa. A articulista Ivana Bentes assim se expressa:

Também o discurso sobre a paisagem tropical, nesse filme, oscila entre a grandeza luxuriante, “mar bravio que me envolve nesse doce continente”, “o milagre da minha pele morena-índia”, e as idéias recorrentes de Paulo Prado no livro Retratos

do Brasil, idéias presentes no “vômito poético” de Paulo Martins que descreve uma

“paisagem imutável”, “jardins de males tropicais”, “anemia” que contamina o povo, “uma passiva fraqueza típica dos indolentes”. Discurso da grandeza impossível do determinismo geográfico e da revolta: “Até quando suportaremos?”. Se podemos falar de tropicalismo em Terra em Transe,trata-se de um tropicalismo trágico e dilacerado, um carnaval desesperado.120

Em Terra em Transe, a natureza, o espaço físico e geográfico se confunde com a cultura, o espaço fabricado, platô de rizomas, a carnavalização dos espaços e da própria história se fundem numa heurística tropicalista barroca, onde todos os efeitos diversos e contrastantes das multiplicidades se fazem presentes. Locações exuberantes e minimalistas, figurinos neutros e fantasias, espaços naturais e construídos, retóricos, saturados, rarefeitos; cenas onde os espaços são atravessados pelos discursos histéricos, hesitantes ou tendentes ao silêncio. No espaço fílmico, a alegoria do país se fundamenta numa polifonia, que nos lança a uma dilacerada vertigem.

Ao espelhar as fraturas do espaço nacional, as certezas históricas que as fundamentavam, Terra em Transe abriu caminho para a instauração definitiva da Tropicália. Caetano Veloso assim assinalou:

Se o tropicalismo se deveu em alguma medida a meus atos e minhas ideias, temos então de considerar como deflagrador do movimento, o impacto que teve sobre mim o filme Terra em Transe, de Glauber Rocha, em minha temporada carioca de 66-67. Meu coração disparou na cena de abertura, quando ao som do mesmo cântico de candomblé que já estava na trilha sonora de Barravento-o primeiro longa-metragem de Glauber-,se vê, numa tomada aérea do mar, aproximar-se a costa brasileira. E, à medida que o filme seguia em frente, as imagens de grande força que se sucediam confirmavam a impressão de que aspectos inconscientes de nossa realidade estavam à beira de se revelar. [...] Essa hecatombe, eu estava preparado para enfrentá-la. E excitado para examinar-lhe os fenômenos íntimos e antever-lhe as consequências.

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BENTES, Ivana. Multitropicalismo, Cine-sensação e Dispositivos Teóricos. In: BASUALDO, Carlos (Org.). Tropicália, Uma Revolução na Cultura Brasileira (1967-1972). São Paulo: Cosac Naify, 2007, p. 104.

Nada do que veio a se chamar de “tropicalismo”, teria tido lugar sem esse momento traumático.121

Caetano Veloso, segundo depoimento do próprio Glauber Rocha teria visto o filme

Terra em Transe pelo menos umas seis vezes, e continuando a sua argumentação afirmou

também que o compositor baiano havia sido sensibilizado pela encenação da peça de Oswald de Andrade, O Rei da Vela. Todas essas cadências resultariam como impulsos para a formulação da canção Tropicália que, da mesma forma, que havia estabelecido agenciamentos com o cinema e o teatro, também os formulava em direção às artes plásticas, especificamente a obra de Hélio Oiticica, Penetrável Tropicália PN2. Nas palavras do próprio Glauber: “O tropicalismo nos liberta das manias européias e nos lança no pânico carnavalesco do nosso Brasil, onde a bossa convive com a palhoça. Somente da consciência em chagas nascerá alguma coisa”.122

Coincidentemente as palavras de Glauber Rocha soaram proféticas e em meados de 1967 as chagas abertas na sociedade brasileira permitiriam aflorar a Alegria, Alegria da

Tropicália.