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4.1 CANTADOR QUE PERDEU A VISTA

4.1.3 Nível discursivo

Nas estruturas discursivas do enunciado, ou no nível mais superficial do percurso gerativo da significação, investigam-se as relações intersubjetivas, de espaço e de tempo, além da tematização e figurativização que dão concretude ao poema Cantador que perdeu a vista.

As relações intersubjetivas do poema acontecem entre o narrador, o poeta cantador que perdeu a vista, que se projeta como um eu explícito, na superfície discursiva do enunciado, por meio de uma debreagem enunciativa, contando a fatalidade que sucedeu em sua vida a um tu narratário que aparece figurativizado por você. Este, apenas, o escuta; logo, parece ser a representação de um grupo de pessoas que está num determinado lugar, apreciando a desenvoltura poética do cego cantador. O emprego do pronome de tratamento você em vez de tu, na relação

Adj

(consideração ao poeta cego) (conhecidos)

Dário Dor

(pedido do poeta cego)

OV1

(não se esquecer do poeta cego)

narrador versus narratário, evidencia, na discursivização do poema, um traço da oralidade popular ou da escritura de textos populares, visto que, é habitual o uso de “você”, que faz concordância com a terceira pessoa (ele/ela), ao se referir à segunda pessoa, o tu. Examineo verso:

“você que escuta o poema”

Além dos atores eu e você, percebe-se, na contextura discursiva, a presença de mais dez atores que recebem as nomeações seguintes: violeiro, natureza, médicos, Jesus, filhos, povo, amigos, colegas, Deus e conhecidos. Os atores são projetados, ao longo da discursivização do poema, por meio de debreagens enuncivas pelo sujeito produtor do discurso, o poeta cantador que não lhes delega voz. Repare o surgimento dos atores, na superfície discursiva dos versos:

“Me consultei com dois médicos”

“que a natureza me deu” “[...] um violeiro cantar” “cada um peça a Jesus” “Eu sou pai de cinco filho” “meu povo também é pobre” “amigos que me acolheram” “colegas com quem cantei” “você que escuta o poema” “e dê mil graças a Deus” “a todos os meus conhecidos”

Para proclamar o ocorrido, o narrador, submerso numa tristeza intensa, utiliza-se de uma linguagem elaborada, construindo o poema em treze estrofes, contendo, cada uma delas, seis versos denominados de sextilha, que rimam entre si os versos pares, ou seja, o 2º, o 4º e o 6º. Deste modo, conduz o leitor a se envolver na atmosfera trágica de sua vida. Verifique a fala do poeta projetada numa debreagem enunciativa:

“Neste poema eu descrevo

tudo que me aconteceu 2º adoeci de repente

minha vista escureceu 4º foi este o maior desgosto

que a natureza me deu” 6º

Percebe-se que em nenhum verso do poema o cantador faz referência direta à doença que lhe acometeu, ou seja, ele não diz, explicitamente, que a doença é a cegueira, ou que ficou cego. Ela está, implicitamente, enunciada, no poema. O cantador se esquiva em dizê-la de forma direta como que, poupando-se de uma dor, ainda, maior. Logo, a palavra cegueira subjaz à conjuntura discursiva, deixando o narratário conceber pela sua interpretação, mas não pela voz daquele narra, o cantador que perdeu a vista. Este seu comportamento induz o entendimento de que ele não se imagina um cego ou então a imagem de cego é forte demais para quem não enxerga com os órgãos da visão; entretanto, discerne muitíssimo bem com os “olhos da alma”, isto é, pela sensibilidade, uma vez que é um poeta e, assim sendo, tem um dom extraordinário de perceber aquilo que está entorno de seu ser, mas também, dentro dele. Nos versos delineados a seguir, nota-se que ele subtrai o termo cego:

“adoeci de repente minha vista escureceu” “Um mal atacou minha vista fiquei na escuridão”

Negar o termo cego, no discurso, parece, genuinamente, suscitar que o cantador não quer se reconhecer ou ser chamado de cego, uma vez que este termo tem um significado negativo, especialmente, para ele que é conhecido como poeta e cantador repentista. Contudo, ter consciência de ser um artista não tem tanto valor, nesse momento, se não tem mais “os olhos”. Verifique a desolação do cantador, nos versos:

“Só tive prazer na vida quando tinha os olhos meus”

Como forma de enunciar que ficou cego, o poeta escolhe uma figura eufemística para expressar a tragédia. Observe a elocução dos versos:

“É triste para um violeiro

quando perde a sua vista

Sobre as relações temporais do poema, pode-se argumentar que o narrador conta a fatalidade ocorrida em sua vida num presente enunciativo, explicitado por formas verbais que lhes são indicadoras, em referência a um passado consumado, pretérito perfeito, o momento do acontecimento. Verifique a expressão dos versos explicitados a seguir:

“Neste poema eu descrevo

tudo que me aconteceu

Concebe-se, pois, que os dois versos indicam que há uma relação de anterioridade e posterioridade entre os fatos. A anterioridade, pretérito perfeito, diz respeito ao momento em que o cantador perdeu a vista e a posterioridade, presente do indicativo, está relacionada à instância da enunciação do poema. Passado e presente conferem ao tempo linguístico do poema uma debreagem temporal enunciativa. As formas verbalizadas no passado fazem vir à tona as lembranças do cantador. Vejao exemplo:

“Um mal atacou minha vista

fiquei na escuridão”

Por outro lado, as formas expostas, verbalmente, no presente dão a impressão de que a enunciação está acontecendo no agora. Atente para os versos referidos a seguir:

“me tranco dentro de um quarto

choro sem consolação

porque agora é difícil”

Destarte, deduz-se que o cantador poetiza o acontecimento no presente, por meio de uma de debreagem temporal enunciativa, para persuadir o narratário de que aquilo que enuncia é de fato verdadeiro. Vale dizer que tal procedimento é uma simulação da circunstância da enunciação acontecida no passado e trazida à tona para o enunciado, como efeito de verdade, pelas debreagens enunciativas, uma vez que o narrador se projeta como um eu, num aqui e agora.

Ao longo do enunciado, aquele que enuncia continua projetando sua fala, no presente linguístico, ratificando, assim, a concepção de uma debreagem enunciativa temporal, ou seja, o discurso do cantador, num momento enunciativo denominado de agora, tenta recriar o momento real. Contudo, quando utiliza o tempo passado, o pretérito perfeito, sanciona que o fato está consumado. Esse jogo dialético entre presente e pretérito perfeito evidencia o estado de tensão interior do cantador, levando-se a deduzir que a tragédia, isto é, a cegueira, deixou-lhe traumatizado. Percebaa melancolia dele, nos versos:

“Ando sem ver a estrada como não vejo a comida não vejo a face do povo bebo sem ver a bebida este é o maior desgosto que sinto na minha vida”

O encadeamento das ideias se dá numa sequência organizada, permitindo que se verifique o passar do tempo crônico através das marcas linguísticas do passado e do presente que indicam, respectivamente, uma anterioridade e uma posterioridade.

A astúcia enunciativa do cantador, ao utilizar terminologias indicadoras dos tempos presente e passado, delineia uma relação de aproximação e uma de distanciamento entre enunciação e enunciado. Evidencia-se a aproximação, nas expressões temporais linguísticas do presente, enquanto engendramento do tempo real, e o distanciamento, nas formas temporais do pretérito.

No final do poema, o narrador, ao utilizar, sabiamente, uma forma verbal no infinitivo e outra no gerúndio, que indica ação não finalizada, deixa evidente que seu sofrimento não tem fim, permitindo a percepção de que sua dor vai além do poema declamado. Oberve a figuração dos versos:

“o jeito é me conformar embora achando ruim”

Nas relações espaciais, compreende-se que o lugar axial ocupado pelo narrador, na discursivização, é concebido por um aqui versus aí e um lá/alhures, que representam, concomitantemente, uma debreagem espacial enunciativa e outra enunciva. Os espaços tópicos que caracterizam os pontos de referência em torno

dos quais o narrador posiciona os atores discursivos, são figurativizados como quarto, cama, lar, consultório médico, pista, espaço celeste, céu, lugares/cidades, praia e sertão. O espaço tópico onde ele descreve o poema, não figurativizado no discurso, entende-se por um alhures, pressupondo-se que seja uma sala ou um até mesmo um clube para eventos sociais, visto que o poeta se dirige a você, seu narratário textual que, por pressuposição, pode ser o público que lhe assiste.

A debreagem espacial enunciativa indica uma proximidade entre o eu que narra e os atores natureza, médicos, filhos, povo, você e conhecidos. Entretanto, evidencia-se um distanciamento entre o eu e os amigos, colegas, violeiro, Jesus e Deus que ocupariam um alhures, já que se refere a estes num tempo passado. Logo, essas relações espaciais configuram, respectivamente, o que a Semiótica das Culturas nomeia de relação espacial identitária, proximal e distal, evidenciadas entre o eu e os atores do enunciado. Percebe-se, além dos espaços linguísticos e dos tópicos, a existência de um outro lugar, ao qual se denomina espaço interior; nele, ocorre o conflito interior, isto é, o desgosto do cantador.

As relações intersubjetivas, espaciais, temporais e modais do poema Cantador que perdeu a vista podem ser vislumbradas no gráfico:

Com o intuito de revelar a semântica discursiva do poema Cantador que perdeu a vista, faz-se oportuno investigar os dois procedimentos de concretização do sentido: a tematização e a figurativização. Neles, exploram-se os temas, que são investimentos semânticos de natureza conceptual, e as figuras, que são termos que

Entorno humano Zona identitária Eu Agora Aqui Certo Zona proximal Você, filhos, meu povo, amigos, conhecidos, colegas, e natureza Em seguida Aí Provável Fronteira empírica Zona distal Médicos, violeiro, amigos, colegas Jesus e Deus Passado, eternidade Alhures, céu Possível Mundo ausente Mundo óbvio Fronteira transcendente

remetem a algo que existe no mundo natural; mas também, no mundo natural construído.

Cegueira é o tema a partir do qual se produz o poema. Emerge, nas estruturas discursivas, como o maior desgosto da vida do cantador. O narrador não o proclama de forma figurativa, deixa-o, portanto, subentendido, no contexto do discurso. Percebe-se que o poeta também não diz, diretamente, que ficou cego ou que é cego. Aquele que poetiza utiliza expressões brandas para relatar a sua cegueira, a partir do título do poema. Perceba este tema, na configuração dos versos:

“Cantador que perdeu a vista” “minha vista escureceu” “fiquei na escuridão”

“quando tinha os olhos meus”

O tema sofrimento está presente em todo o percurso do narrador. Aparece, de forma mais intensa na configuração da estrofe citada a seguir, quando ele diz que não consegue mais fazer coisas que são consideradas essenciais para um humano. Constateseu dizer:

“Ando sem ver a estrada como não vejo a comida não vejo a face do povo bebo sem ver a bebida este é o maior desgosto que sinto na minha vida”

A tristeza, decorrente da perda na qualidade de vida, é um tema que permeia toda a discursivização, evidenciando o estado de espírito do poeta cantador. Ao relatar o acontecimento que marcou sua vida, para sempre, o narrador não consegue disfarçar sua tristeza e a expõe, diretamente, na superfície discursiva. Observe a figurativização da estrofe:

“A grande dor da tristeza permanece· no meu lar fico triste quando escuto um violeiro cantar

me deito na minha cama começo logo a chorar”

Como consequência do estado de tristeza do cantador, insurge, no discurso, o tema desânimo, revelador da perda de interesse do enunciador por coisas que antes da cegueira faziam-lhe sentido. Perceba esta temática, na figuração da estrofe:

“Pra mim não existe lua o sol desapareceu as estrelas se apagaram e o mundo escureceu cada um peça a Jesus pra não ficar como eu”

Nela o cantador deixa transparecer o ápice de sua agonia. A angústia é tamanha que a lua, o sol, as estrelas e o mundo, coisas importantes para ele, anteriormente, não o envolvem mais. Nos dois últimos versos, quando se refere a Jesus, recomenda a “cada um” para pedir-lhe proteção, visto que acredita Nele enquanto Misericórdia Divina, Aquele que pode, pela compaixão, defender a todos do mal que lhe acometeu, a cegueira.

Fé é um tema que eclode, na superfície discursiva, pela voz do narrador, o cantador que perdeu a vista, quando ele se refere a Jesus e a Deus, figuras místicas da religiosidade cristã. Deus é concebido como o Pai e Jesus é o Filho enviado por Ele para salvar a humanidade de todo o mal. Crente nessa realidade doutrinal, o poeta deixa transparecer sua fé, nos versos:

“cada um peça a Jesus pra não ficar como eu” “você que escuta o poema se tiver os olhos seus

levante as mãos para os céus e dê mil graças a Deus”

Concebida como a primeira das três virtudes teologais, a fé pode ser intuída como adesão e anuência pessoal a Deus e as suas criaturas. Consoante citação bíblica a seguir, a fé é “um modo de já possuir aquilo que se espera, é um meio de conhecer realidades que não se vêem” (PAULO, 1990, p. 1556).

Pobreza surge como tema para expor a situação econômica do cantador. Ele é pobre e seu povo, ou seja, sua família, também o é; por isso, não pode ajudá-lo.

Consciente dessa realidade, o cantador enuncia seu desequilíbrio emocional. Observe a figurativização da estrofe:

“o meu ganho é muito pouco não dá para mim passar meu povo também é pobre não pode me auxiliar eu começo a pensar nisto não posso me controlar”

Para consolação do poeta, resta-lhe sentir saudade, tema figurado na estrofe referida a seguir:

“Me resta agora as saudades dos lugares que andei

amigos que me acolheram colegas com quem cantei são estas coisas da vida que jamais esquecerei”

Conforme suas palavras, o cantador se apega ao passado feliz de sua vida para preencher a dor que o presente lhe causa devido à cegueira, ou seja, a escuridão que tomou conta de sua existência.

Nas suas recordações, abrolha a amizade, tema que pode ser apreciado na figurativização da estrofe:

“Eu tenho muitos amigos da praia até o sertão

também tenho bons colegas exercendo a profissão se pudessem salvariam a minha situação”

Visto que a cegueira é irreversível e que o cantador é consciente dessa verdade em sua vida, aparece, no final do poema, o tema conformação. Entendendo que não tem perspectiva de cura para sua vista, o poeta diz:

“o jeito é me conformar embora achando ruim”