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Nação e identidade brasileiras: ser sujeito no Brasil

CAPÍTULO 2 – BRASIL: HISTÓRIA, LÍNGUA E VERNACULISMO

2.1. O caso brasileiro: o vernáculo na tensão entre discursos

2.1.1. Nação e identidade brasileiras: ser sujeito no Brasil

Discutir conceitos de nacionalidade e de nação é também discutir identidade. Conforme conceitua Fiorin (2009), o processo de formação identitária nacional consiste na determinação do patrimônio de cada nação e na difusão de um culto a este. O autor lembra que, para conceber de fato um mundo de nações, não basta fazer o inventário de sua herança, uma vez que nem sempre ela existe; é preciso, antes de tudo, inventá-la. Isto posto, a ideia de nação surge de um postulado e de uma invenção, que atendem às demandas ditas modernas, nas quais prepondera o paradigma logos, ou seja, a razão e a dialética trabalham para tal construção. É um conceito que se sumariza em um espírito nacional, esse espírito se atualiza por discursos que dão sentido coletivo de unidade; discursos não apenas partilhados pelo grupo, mas também definidores dos laços que fazem do grupo um grupo, e não mera justaposição de indivíduos. Uma nação precisa apresentar um conjunto de elementos simbólicos e materiais: “uma história, que estabelece uma continuidade com os ancestrais mais antigos; uma série de heróis, modelos das virtudes nacionais; uma língua; monumentos culturais; um folclore; lugares importantes e uma paisagem típica; representações oficiais...” (FIORIN, 2009, p.116), ou seja, são necessários discursos que a forjem. A historicização é justamente o(s) sentido(s) que resulta(m) dos discursos que forjam a história.

Em se tratando de história, cultura, língua, nação e vernaculismo, Fiorin (2009) esclarece que “o Brasil representou uma das primeiras experiências bem-sucedidas de criar uma nação fora da Europa” (p.117). Para tanto, foi necessário adquirir uma consciência de unidade, de identidade, e, ao mesmo tempo, ter consciência da diferença em relação aos outros, ou seja, a noção de alteridade. O “outro” é indispensável ao processo de subjetivação, e o grande “Outro” se relaciona com este de maneira vertical, instaurando um universo simbólico de relações como padrão referencial (DUFOUR, 2005). Nessas trocas e inter- relações, o grande “Outro” da criação da nacionalidade brasileira é Portugal. A proposta de Fiorin (2009) é perseguir modelos de descrição da identidade brasileira, e tal abordagem é pertinente a esta discussão por considerar que, na construção da cultura brasileira, da identidade do país, tem de ser levada em conta a herança portuguesa e, ao mesmo tempo, o

brasileiro dever ser apresentado como alguém diferente do lusitano. A ideia de Brasil é fundada a partir da colonização, antes dela, tal espaço não era concebido como unidade, muito menos como nação. A fundação por si só não “herda” necessariamente valores lusitanos, mas funda-se a partir deles, com os traços das tensões étnicas, linguísticas, culturais, sociais, etc., que se estabeleceram no território brasileiro.

A elaboração de um modelo explicativo da singularidade da cultura brasileira é a especificidade que constituiria o Brasil como uma nação, que daria ao brasileiro a possibilidade de ser sujeito no Brasil. Do ponto de vista bakhtiniano, a condição de ser sujeito não implica que este seja completamente assujeitado aos discursos sociais, até porque, se assim fosse, seria negada a concepção de dialogismo, central na obra do estudioso. Poder resistir a todo processo centrípeto e centralizador é a utopia bakhtiniana, já que o ser humano encontra o espaço de sua liberdade e de seu inacabamento no dialogismo incessante; ele nunca é submetido totalmente aos discursos sociais. “A singularidade de cada pessoa no ‘simpósio universal’ ocorre na ‘interação viva das vozes sociais’. Nesse ‘simpósio universal’, cada ser humano é social e individual (FIORIN, 2008, p.28)”. Isso denota que, em cada uma das variadas formações sociais do Brasil contemporâneo, atuam o presente, os múltiplos enunciados em circulação sobre o sujeito, a língua; o passado, os enunciados estabilizados pela tradição, dos quais a contemporaneidade é depositária; e o futuro, os enunciados que falam dos objetivos e das utopias da atualidade.

Nas formações sociais brasileiras, operam as forças centrípetas e centrífugas: aquelas atuam no sentido de uma centralização enunciativa do plurilinguismo da realidade; estas buscam erodir essa tendência centralizadora (FIORIN, 2008, p.30). Por exemplo, quando uma política de língua postula a existência de uma língua oficial como única válida e verdadeira, esta atua no sentido das forças centrípetas; enquanto a fluidez da língua em uso representa a ação das forças centrífugas, flagrando-se a tensão entre as duas forças. Os conceitos de forças centrípetas e centrífugas, propostos por Bakhtin (1934-35/1993) revelam o fato de que a circulação das vozes, numa formação social, está submetida ao poder, não há neutralidade no jogo em que estão envolvidas. Como afirma Fiorin (2008), esse jogo tem como característica um aspecto político, já que as vozes não transitam fora do exercício do poder e não se diz o que se quer, quando se quer, como se quer. Aí estão envolvidas todas as relações de poder, desde as do dia a dia até aquelas do exercício do poder do Estado.

Para tratar de um sujeito brasileiro, aproveita-se da noção de subjetividade concebida pelo pensamento bakhtiniano, a qual é constituída pelo conjunto das relações sociais de poder das quais o sujeito participa. Logo, este não é assujeitado, submisso às estruturas sociais, nem

é uma subjetividade independente em relação à sociedade. Sendo a realidade heterogênea, o processo de subjetivação não incorpora apenas uma voz social em seus discursos, mas várias, que estão em relações diversas entre si. Portanto, tal conceituação vai ao encontro do fato de que a linguagem é constitutivamente dialógica: seu mundo interior é composto de diferentes vozes em relações de concordância ou discordância. Ademais, por estar sempre em relação com o outro, o mundo exterior não está nunca acabado e fechado, mas em constante vir a ser, em um embate entre estabilização e desestabilização.

No processo de construção da condição de ser sujeito, as vozes discursivas são assimiladas de diferentes maneiras:

Há vozes que são incorporadas como a voz de autoridade. É aquela a que se adere de modo incondicional, que é assimilada como uma massa compacta e, por isso, é centrípeta, impermeável, resistente a impregnar-se de outras vozes, a relativizar-se. Outras vozes são assimiladas como posições de sentido internamente persuasivas. São vistas como uma entre outras. Por isso, são centrífugas, permeáveis à impregnação por outras vozes, à hibridização, e abrem-se incessantemente à mudança. (FIORIN, 2008, p.56)

A construção do sujeito brasileiro contemporâneo está relacionada à possibilidade de simbolizar/significar a brasilidade, construindo-se e localizando-se entre esses dois tipos de vozes, em sua história. Sendo a consciência formada de discursos sociais, cada indivíduo tem uma história particular de constituição de seu mundo interior, a partir do que resulta do embate e das inter-relações desses dois tipos de vozes. Fiorin (2008) explica que quanto mais a consciência for formada de vozes de autoridade, mais ela será monológica e estabilizada; quanto mais for constituída de vozes internamente persuasivas, mais será dialógica e mutável. O mundo interior é a dialogização da heterogeneidade de vozes sociais. Os enunciados construídos pelo sujeito são constitutivamente ideológicos, porquanto são uma resposta ativa às vozes interiorizadas. Assim sendo, ainda que em meio à desestabilização e a processos de valorização da individualidade, como ocorre no paradigma métis, que prevalece na contemporaneidade, eles jamais são expressão de uma consciência individual, isolada da realidade social, dado que tal consciência é formada pela incorporação das vozes sociais em circulação na sociedade. Todavia, ao mesmo tempo, o sujeito não é completamente assujeitado, já que participa do diálogo de vozes de uma forma particular, pois a história da constituição de sua consciência é singular (VOLOCHNOV, 1929/30; 1988).

Ainda, conforme Fiorin (2009), ocorre, entre outros, um processo de autodescrição da cultura brasileira, que é, evidentemente, parcial; no entanto, ele é visto como “uma explicação totalizante e real da cultura” (p.118). Em vista disso, os modelos explicativos das autodescrições culturais cumprem um papel muito importante nas diferentes formações sociais brasileiras, uma vez que, frente às forças dispersadoras de caracterização, isto é, a historicização sem intervenção planejada, estes agem como forças centrípetas, que trabalham centralizando, unindo, coletividades por meio de laços socioculturais, discursos e valores comuns.